Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A morte trágica, o gosto e as bolhas

Crédito da imagem: Medium | Texto Bolhas e Redes Sociais

“Como se formam os gostos? Até que ponto as escolhas por eles orientadas são livres, autônomas, conscientes? Ou o contrário?”

Essas perguntas, que abrem o longo ensaio de Marco Schneider sobre A dialética do gosto – informação, música e política (ed. Circuito/Faperj, 2015), me vieram à cabeça diante de certas reações à morte trágica da cantora Marília Mendonça, no acidente de avião do último dia 5.

Desastres aéreos sempre chocam, por sua raridade, por sua gravidade, pelo abalo emocional que a súbita interrupção de tantas vidas provoca. Normalmente, a cobertura jornalística se divide entre a exposição — que frequentemente resvala para a exploração sensacionalista — de aspectos da vida das vítimas e o empenho na identificação das causas e das responsabilidades pela queda. Porém, quando o acidente envolve uma celebridade, a comoção se sobrepõe a todo o resto, e nesses casos é muito difícil fugir à espetacularização, mesmo que seja essa a intenção — e dificilmente será —, diante do apelo sentimental que a situação provoca.

Uma análise da cobertura da morte de Marília Mendonça, com vários ingredientes que realçam esse apelo — uma mulher jovem, no auge da carreira, mãe de um menino de 2 anos —, certamente fornecerá bons elementos para os estudos sobre emoção no jornalismo. Mas há outros aspectos importantes a se considerar, relativos à repercussão dessa tragédia nas mídias sociais. Aqui me concentro no que mais me chamou a atenção, e que remete a duas questões essenciais: a da necessidade de se discutir o gosto e, mais uma vez, a formação das bolhas, que dificultam qualquer debate, quando não o inviabilizam.

Como costuma acontecer nessas horas, houve quem resolvesse exibir seu orgulho por ignorar solenemente a existência da cantora, numa indisfarçável manifestação de arrogância empenhada em sublinhar uma espécie de superioridade moral pelo cultivo de um gosto musical mais sofisticado. Isso provocou a proliferação de posts que expressavam de diferentes maneiras a indignação em relação a esse comportamento, ora ironizando, ora ofendendo — mandando enfiar nas partes o tal “gosto erudito” —, ora tentando alguma ponderação, mostrando que desconhecer uma artista que mobilizava multidões significava desconhecer o que “é” o Brasil, e que depois ninguém reclamasse dos resultados eleitorais, etc, etc. (Mesmo que Marília tenha sido também lembrada como rara, talvez única exceção no universo da música sertaneja, ao se manifestar contra Bolsonaro na campanha do #elenão: a reação negativa de seus fãs e as ameaças que recebeu de grupos bolsonaristas na época indicam alguns limites para a intervenção política das celebridades, a depender do sentido dessa intervenção e do público ao qual se dirige).

Mas essas críticas se generalizaram e abrangeram também aqueles que simplesmente diziam nunca terem ouvido falar da cantora — o que era tomado como evidência de absoluta alienação — ou que ousaram fazer reparos ao gênero que a tornou famosa, como se isso também expressasse desprezo pelo gosto popular. A única atitude válida seria, portanto, apenas lamentar a tragédia, exaltar a coragem do posicionamento político à contracorrente e silenciar qualquer comentário não elogioso sobre a qualidade do repertório.

Não é preciso dizer que essa reação, quando não já orientada nesse sentido, despertou as clássicas e sempre latentes manifestações de desprezo aos “intelectuais” e “acadêmicos”, sempre arrogantemente isolados em seus círculos elitistas.

O anti-intelectualismo não é de agora, e contemporaneamente expressa o relativismo pós-moderno que desde os anos 80 do século passado desdenha da qualificação intelectual como opressora e silenciadora de outros saberes, populares e periféricos, tanto nas artes e na cultura de modo geral como na ciência – por isso, aliás, não deveria causar espanto o comportamento negacionista durante a pandemia, para ficar apenas num exemplo mais atual e evidente.

O que espanta, sim, na reação aos críticos ou aos ignorantes da cantora, é a ausência absoluta de qualquer menção aos interesses da indústria fonográfica e dos empresários e políticos do latif… perdão, do agronegócio, agora tão moderno que é pop, na promoção de determinado gênero musical e de artistas que se tornam celebridades. É como se o gosto popular fosse autêntico e espontâneo, expressão genuína de uma cultura e, mais ainda, necessariamente bom. Porém, como escreveu em seu perfil no Facebook o jornalista Jamari França, um dos alvos dos que chamou de “patrulheiros”, “ser amado por milhões é um sinal de popularidade, mas não de qualidade”. Crítico musical de larga experiência, ele abriu seu post de maneira contundente: “O sucesso da música sertaneja baseada em fórmulas nauseantes de letra e música é uma prova da indigência cultural da maioria do povo brasileiro, a quem é negado acesso à educação e à cultura por um modelo excludente de dominação”. Distinguia Marília da grande massa de cantores sertanejos bolsonaristas, inclusive pela temática de suas canções — contra o machismo, especialmente —, mas não da estética que define esse gênero musical.

A afirmação do jornalista sobre o sucesso do sertanejo está longe de reproduzir o clichê comum a um certo pensamento de esquerda, derivado de uma simplificação dos debates sobre cultura popular e cultura de massa, ou entre cultura popular e erudita, tão em voga nos anos 1960, que enxerga o público como vítima da manipulação do capital. Mesmo porque, é claro, essa manipulação não surtiria efeito se não lidasse com alguma tendência já existente. Mas manipulação existe, e não é possível ignorá-la.

A captura do gosto

É disto que Schneider trata quando fala da “captura do gosto pelo capital” em seu livro. A resposta à sua pergunta sobre a formação dos nossos gostos exige a análise do “papel dos fluxos comunicacionais na formação das preferências e escolhas dos sujeitos, da música à política” e parte da compreensão de que “o gosto é expressão e medida do valor de uso dos bens, materiais e simbólicos, e ao mesmo tempo o substrato sensível das ideologias”. O autor, como é claro nesse trecho, adota a conceituação marxista e explica que optou “por empregar a noção de gosto para pensar o problema do valor de uso porque ela conserva a noção de necessidade e ao mesmo tempo a transcende, pois envolve também os aspectos culturais presentes na atribuição de utilidade a um bem qualquer”.

Se os grandes conglomerados de mídia já eram fundamentais para a formação do gosto — e para a reprodução e consolidação da ideologia dominante — antes da chamada “revolução digital”, hoje esse papel é ainda mais significativo com a constituição do complexo de infotelecomunicações (ITCs). Importa apreendê-lo como mediador fundamental da luta ideológica e também no aspecto econômico, como sistema produtor de mercadorias e de consumidores.

Ao longo do livro, Schneider conjuga o duplo significado da palavra “gosto”, no sentido de “sabor” e “saber”, e sintetiza como, na condição de porta-vozes do capitalismo financeiro globalizado, as ITCs lidam com esses dois significados, acentuando a separação dos fins, dos meios e da inspiração, reforçando a perpetuação da sociedade em classes:

“1) Promovendo o sabor sem saber, na esfera do consumo, e o saber sem sabor, meramente instrumental, na esfera da educação formal, da reprodução social, legitimando assim a divisão trabalho (alienado)/lazer (consumista); 2) subordinando toda produção simbólica socializada a imperativos econômicos de ganhos de escala; 3) retroalimentando, de modo reificante, gostos e padrões de comportamento; e 4) construindo um imaginário coletivo que é em grande parte comum, apesar de desprovido de um lastro em experiências concretas comuns, borrando as fronteiras entre vivência e representação, homogeneizando gostos, práticas e mundivisões através de um processo de recalcamento da produção simbólica, que existe em potência e em ato nas experiências concretas extra-midiáticas — não comuns em escala massiva, mas fragmentadas em classes e frações de classes, gêneros, etnias, faixas etárias, nacionalidades etc. —, mascarando assim a luta de classes e seus desdobramentos culturais”.

Na orelha do livro, Muniz Sodré resume: “O gosto massivo de agora é imposto pela teodiceia do mercado com o peso inexorável das mídias. Daí o imperativo de avaliarmos a extensão e o alcance dessa suposta liberdade de escolha dos gostos que a comunicação e a informação disponibilizam a título de uma democracia dos apetites e das emoções”.

Bastaria pensar agora no papel dos algoritmos a direcionar nossas buscas por informação e a nos oferecer o que supostamente desejamos para perceber as limitações dessa liberdade de escolha.

Mas talvez seja mesmo difícil discutir o gosto porque isso exige uma reflexão que colide com os afetos, que estão no mais íntimo de nós e que não queremos perturbar. Daí é mais fácil repetir o dito popular de que “gosto não se discute”, e assim escapar do incômodo.

O Brasil é Marília?

Foi também recorrente, especialmente entre pessoas de esquerda, a surpresa pelo desconhecimento de uma artista tão popular, acompanhada de uma espécie de autopenitência pela própria alienação, que talvez revelasse um insuspeito ou disfarçado preconceito de classe. Mas o que dizer, então, quando pegamos um motorista de Uber com o rádio ligado numa estação evangélica que toca ininterruptamente canções de louvor, entremeadas por anúncios de cultos em igrejas diversas e de sites disseminadores de fakes, que entretanto prometem informar apenas a verdade?

Há muito tempo, para contestar a onda de exaltação da internet como tecnologia libertária, capaz de dar finalmente a oportunidade de todos se expressarem em pé de igualdade, escrevi que o novo ambiente virtual não teria essa capacidade democratizadora, porque apenas refletiria as relações de poder já existentes na sociedade. Mas não são só as relações de poder, no sentido mais amplo: são as relações cotidianas. O fechamento em bolhas é decorrência lógica do comportamento que já adotávamos no mundo pré-internet, porque sempre procuramos nos relacionar com quem temos afinidade, e não o contrário. Entretanto, antes estávamos expostos ao contraditório, através das fontes de informação disponíveis e reconhecidas como referenciais. A promessa de alargamento de horizontes alardeada pelos entusiastas da nova tecnologia veio a significar precisamente o contrário: a internet explicitou e ao mesmo tempo incentivou um comportamento que já existia no cotidiano, e que talvez não percebêssemos, que é o de fincar pé e reiterar as próprias convicções.

Por isso não cabe apenas perguntar em que mundo vivem os que ignoravam ou desprezavam uma cantora de tamanha popularidade: porque a recíproca também é verdadeira. Em que mundo vivem os seus fãs?

Dizer que “o Brasil é Marília” pode ser uma forma de sacudir quem está acomodado em sua própria bolha, mas é um erro: o Brasil é Marília, é Nelson Freire, é Jaider Esbell.

Nos últimos anos, passou a ser também Bolsonaro.

Vai custar muito a deixar de ser.

Texto publicado originalmente por objETHOS.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora aposentada da UFF, pesquisadora do ObjETHOS