Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Bolsonaro x imprensa: ataques, fake news, seletividade, desrespeito, cerceamento

Bastaram seis dias. Já no domingo, seis de janeiro, houve o anúncio que o twitter do presidente passaria a ser de responsabilidade da Secretaria de Comunicação da Presidência. Foi após uma sexta-feira e um fim de semana de grande atuação do Bolsonaro nas redes sociais, onde respondeu diretamente jornalista, criticou e atacou Fernando Haddad e o PT, retuitou ministro com acusação, contra o Ibama, que não procedia e, o mais grave, compartilhou vídeo antigo de apedrejamento de mulheres infiéis para criticar os muçulmanos, o que causou revolta e reação da comunidade islâmica brasileira.

A atuação da Secom na divulgação pelo twitter da opinião presidencial deve tentar reduzir o tom agressivo sempre adotado, o compartilhamento de vídeos e notícias falsas, mas não mudará a realidade de que, assim como Trump,  Bolsonaro continuará criticando a imprensa, atacando a esquerda e o PT, desviando a atenção dos temas polêmicos e interpretando e divulgando as ações do governo que agradem os seus seguidores.

No primeiro twitter, sob “supervisão” da Secom, dois alvos preferenciais do governo são citados. O BNDES e a Funai. No BNDES, o antigo chavão: vou abrir a “caixa-preta”. Na Funai, algo mais preocupante. Foi anunciado o cancelamento de um contrato de R$44 milhões que, segundo o presidente, criaria a “criptomoeda indígena”. O contrato barrado, suspeito por ter sido feito sem licitação com a Universidade Federal Fluminense e assinado nos últimos dias do governo Temer, tinha um amplo escopo voltado para a organização  da Funai: desenvolvimento e funcionamento, gestão, fiscalização e acessibilidade em terras indígenas, desenvolvimento tecnológico orientado a licenciamento, seguridade social e valorização da produção indígena. A criptomoeda não aparece no resumo do projeto e a antiga direção da Funai argumentou que não se trata de um contrato sujeito a licitação, mas de um termo de execução entre duas entidades federais, que foi fechado quando os recursos foram liberados no fim do ano. A Secom reproduziu, com assinatura presidencial, notícia, no mínimo, distorcida e reproduzida com estardalhaço por inúmeras páginas de fake news, de que os R$44 milhões seriam destinados a criação de uma moeda para os índios. O resumo do contrato assim ficou e assim será reproduzido: milhões para os índios, no apagar das luzes do governo, “liberados” de forma irregular.

Além do uso massivo das redes sociais, com um discurso propagandístico e sem aprofundamento, a primeira semana demonstrou que ao utilizar os canais tradicionais, como entrevistas exclusivas e coletivas, foi difícil discernir a verdade da mentira.  O próprio presidente anunciou, na sexta-feira pela manhã, em entrevistas, decisões do governo como o aumento do IOF e a redução de alíquota do Imposto de Renda, desmentidas por seus auxiliares na tarde do mesmo dia. Ao explicar e criticar a confusão no governo, a imprensa virou telhado. Parecia que a confusão tinha sido criada por ela.

Desde a campanha eleitoral e o período de transição, a imprensa foi escolhida como um dos inimigos a ser combatido e a relação é tensa, com tendência a piorar.  Mas nem o mais pessimista poderia imaginar a lista de arbitrariedades planejadas para a posse no dia 1° de janeiro, em Brasília e o desrespeito a que os jornalistas foram submetidos.

O confisco de uma maçã de uma jornalista, porque poderia ser usada como arma e ferir o  presidente, fica como símbolo dessa posse, que com a justificativa da segurança, cerceou enormemente a cobertura, a concessão de credenciais, a liberdade de circulação dos jornalistas, as entrevistas e os prendeu em ambientes sem mínimas condições de trabalho. Foram demonstrações de má vontade e provação contra os profissionais, obrigados a comparecer ao Centro Cultural do Banco do Brasil – CCBB horas e horas antes dos acontecimentos que iriam cobrir, para serem levados em ônibus, acompanhados por assessores como nas ditaduras, para os locais da cobertura.

Houve protestos de entidades representativas dos jornalistas, mas a não ser a Folha de S.Paulo, que fez uma matéria contando o acontecido, e alguns correspondentes estrangeiros que abandonaram os locais, o desrespeito e o cerceamento sofrido na cobertura foram omitidos pela maioria dos jornais, rádios e TVs. Acharam normal?

A imprensa pouco mostrou, mostra ou reage aos insultos, ao impedimento de acesso a entrevistas e coberturas e aos ataques de Bolsonaro, de seus filhos e seguidores, que chegaram a agressões físicas e ameaças de morte a jornalistas. Na posse dos novos ministros, muitos deles repetiram a postura do chefe, ignorando os jornalistas, mantendo-os longe em seus “cercadinhos”. O governo pouco esclarece as decisões e o que  pretende com elas, a não ser generalidades de discurso de campanha ou coletivas para desmentir os anúncios equivocados. A situação permite, por exemplo, que o decreto sobre a posse de armas receba a singela interpretação do ministro de Segurança Institucional de que ter uma arma será como ter um carro.

Quando os jornalistas e a imprensa são criticados ou têm sua ação cerceada, os eleitores de Bolsonaro aplaudem. Acham que a mesma imprensa que apoiou o impeachment da Dilma, o governo Temer na sua agenda econômica, que incensou a Lava Jato, ignorando as ilegalidades, que defende a prisão do ex-presidente Lula,  é comunista, de esquerda, só divulga fake news. Os que ficaram sabendo do tratamento dado aos jornalistas, na posse, acharam tudo normal, e as reclamações demasiadas. É sintomático o coro dos brasileiros que estavam na Praça dos Três Poderes na posse: “Globo lixo… Folha lixo. Whatsapp, whatsapp.. Facebook, Facebook… ”

A pressão contra jornalistas e veículos vai continuar. Ao contrário dos EUA, modelo do atual governo, não temos imprensa com credibilidade e instituições fortes. Em época de fake news, concorrência das redes sociais, quedas de audiência e tiragens, o noticiário sofre ainda com o vai e vem nas decisões e com a ameaça, pública, de que verbas publicitárias serão cortadas para aqueles veículos que divulgarem denúncias contra o governo. Críticas  aparecem no meio artístico e em programas de entretenimento, mas o noticiário, principalmente no rádio e na TV, continuará omitindo notícias, esquecendo pautas polêmicas, reproduzindo declarações e mensagens do governo e apoiadores nas redes sociais. Praticamente todos os grandes veículos, alguns de forma mais escancarada como a Record, o SBT e a rádio Jovem Pan, vão continuar apoiando o governo, principalmente os ministros Paulo Guedes e Sérgio Moro, para garantir a manutenção do “otimismo” da população, a tranquilidade no mercado financeiro, do qual são porta-vozes, e a implementação das reformas econômicas que sempre defenderam.

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Nereide Lacerda Beirão é jornalista. Foi Diretora de Jornalismo da EBC e da TV Globo Minas, além de professora. Ocupou também a diretoria do Centro de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais. É autora do livro “Serra”, publicado em 2012.