Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Vamos falar de ética!

(Foto: Ricardo Stuckert/Reprodução)

Durante a entrevista do ex-presidente Lula, a jornalista Mônica Bergamo mencionou a condenação referente ao sítio de Atibaia. Sem entrar no aspecto jurídico, ela indagou se o ex-presidente teria alguma autocrítica a fazer. Com retórica brilhante e excelentemente preparado, Lula desconversou e foi rápido no arremesso da bola de volta para a jornalista, sugerindo: “Vamos falar de ética!”. Esse trecho da entrevista veio ao encontro de uma ânsia que me acomete há muitos meses. Foi o empurrãozinho que faltava para refletir sobre algo com o qual me vejo confrontada todos os dias como uma jornalista carioca que vive em solos prussianos.

Dicotomias

Na Alemanha, a falta de cumprimento de uma obrigação, seja em âmbito pessoal ou corporativo, terá, sempre, represálias como desdobramento; elas podem ser faladas, escritas ou silenciosas, cravadas num código de ética que todos conhecem, mas que não está escrito em lugar algum. Não responder e-mails em tempo hábil ou chegar atrasado para um encontro ou compromisso gera grande desconforto. Um reles “Desculpa aí qualquer coisa” não amenizará nada e irá sucumbir num abismo semântico. Além do desconforto, existe o transtorno que envolve pessoas e situações. Informações faltantes podem travar o processo de trabalho, criar um vácuo no fluxo produtivo. O atraso gera frustrações, ansiedade e também problemas para terceiros. O pagamento atrasado não existe na Alemanha. A realidade de deixar servidores públicos esperando durante 6 meses para receber salário, fazendo-os depender do favor de família e amigos, é uma realidade que não existe aqui.

Os alemães são ensinados, desde criança, a evitar erros, atropelos, transtornos e a fazer planejamento a longo prazo. Um ditado popular ensina: “Planejamento é a metade do aluguel”. Para um povo que é fissurado em rituais, esse modus vivendi é uma coerência natural e lógica. Esse raciocínio se espelha também nas redações de jornais e revistas. Mesmo que a Alemanha não esteja fora da galopante mudança de paradigma no âmbito jornalístico, seus desafios, concorrências e grupos pagos para soltar fake news, a ética ainda é uma pilastra mór também no âmbito competitivo, como o setor da mídia.

A dificuldade para jovens jornalistas conseguirem um contrato fixo é imensa. O processo de auto-exploração a todo o custo para se manter “jornalista” não é algo raro por aqui. Mesmo assim, não pode se comparar com o desafio que a imprensa brasileira vem enfrentando nos últimos anos, especialmente em 2018, nas semanas anteriores às eleições, entre o primeiro e o segundo turno, para alguns jornais, e depois de divulgado o resultado oficial, para outros.

Depois das eleições vencidas por Donald Trump em 2016 – ajudado, entre outros, pelos grupos de fake news -, o jornal The New York Times lançou uma campanha de apoio, alertando para a necessidade do jornalismo independente. Em 2018, foi a vez do The Intercept Brasil fazer o mesmo. O momento jornalístico é um desafio para jornalistas do mundo todo e a ética precisa ser sua principal âncora.

Há meses, o jornalista alemão Claas Relotius (33) publicou matérias com inúmeras inverdades, cometendo fraude jornalística. A pressão por cliques e por prestígio interno dentro da redação também rege aqui. Foi seu colega, o jornalista Juan Moreno, quem desconfiou, foi investigar e descobriu as fraudes. Claas trabalhava há muitos anos para o semanário Der Spiegel e havia sido premiado muitas vezes.

Esse escândalo causou um reboliço no espectro midiático na Alemanha e colocou à baila exatamente a questão da ética no exercício da profissão, quanto de pressão é possível aguentar e quanto desse percentual vem do caráter e da ética da pessoa.

Fica cada vez mais difícil ter contrato fixo. Esse fato pode gerar um processo de “hora da xepa” e de “competição” nivelada por baixo, mas esse desdobramento não representa a maioria. Ao contrário do Brasil, a imprensa como quarto poder no Estado continua determinante. Um político corrupto é desmascarado num dia. No dia seguinte, ele nega tudo. Na sequência, ele renuncia a todos os cargos e tem sentenciada sua morte política. A revista Der Spiegel já derrubou governos, ministros e levou políticos para o ostracismo eterno e, mesmo assim, o nível das reportagens do portal Spiegel Online declinou até chegar ao nível do sensacionalista Bild: temas como inveja social e financeira são os que geram mais cliques, mais ibope.

Desgoverno

Em tempos de desafios às democracias frágeis e inexperientes, como a do Brasil, a imprensa como quarto poder no Estado sofre muitas sequelas, comete irreparáveis enganos, fica em cima do muro e trilha por caminhos tortuosos. O efeito paralelo é a perda de credibilidade e de força política na sociedade; com essa pressa toda, se esquece de pesquisar e analisar o que realmente é notícia, da forma mais estreita possível.

Vimos um jornal paulista ventilando ao ter em frente a escolha entre “peste e cólera” no segundo turno das eleições presidenciais. O jornal que vinha, sistematicamente, demonizando o PT durante anos, vangloriando o PSDB, ficara entre a corda e a caçamba. No editorial, publicou sobre “uma escolha difícil” que seria entre Haddad e Bolsonaro.

O resultado dessa escolha foi uma subserviência por medo de represálias, um jornalismo de freio de mão puxado. Esse mesmo jornal não “somente” deu uma forte escorregada para a direita, saindo do “centrão” do PSDB e PMDB, mas foi também abdicando das vozes femininas, feministas. Essas não são bem vistas quando o país começa a ser ocupado por militares em cargos de confiança no governo.

A escritora, jurista e colunista Ruth Manus teve seu contrato rescindido devido a um artigo que se resumia numa crítica a Jair Bolsonaro. O texto da paulistana residente em Lisboa desagradou o jornal por seu posicionamento político, segundo texto publicado pela própria Ruth em sua página aberta no Facebook. “Saio do Estadão com tranquilidade e com a certeza de que fui absolutamente coerente com aquilo em que acredito. Tenho orgulho da minha trajetória lá dentro, ao longo de quase 5 anos, assim como tenho orgulho da minha saída, sobretudo no momento que o Brasil atravessa. Agradeço a todos os que trabalharam comigo no jornal, agradeço pelo espaço que tive ao longo desses anos e lamento profundamente que a liberdade de expressão já esteja sendo tão relativizada no Brasil.”

Antes de Ruth Manus, a portuguesa Margarida Vaqueiro Lopes, que oferecia conteúdo no blog “Sambando em Lisboa”, já havia parado de escrever desde outubro de 2018. Por algum motivo que não foi comunicado, voltou 6 meses depois.

Um jornalista carro-chefe do mesmo jornal pediu demissão no início de 2018. Não somente o Brasil ficou mais preocupado com o próprio umbigo: além da predominância de vozes masculinas conservadoras, a imprensa também desceu ladeira abaixo exatamente no momento de remar contra a maré, dar vozes a mulheres, especialmente as com perspectiva diferenciada e com outras referências, como as que estão fora do Brasil, ou a outras vozes tidas como minoritárias. O fato é que a escorregada de grande parte da imprensa clássica tem desdobramentos terríveis para a liberdade do setor para instigar o discurso de subjetividade ao invés de estrangular todo o potencial de senso crítico. Ser feminista virou uma afronta ao establishment, mulheres com opinião política ou até mesmo mulheres querendo se firmar no âmbito político têm tarefa ainda mais árdua nesses tempos de repressão de um discurso libertário, do seu fomento das artes e da liberdade de expressão.

O ex-presidente Lula, na entrevista, quando falava do clima de ódio no país, deu o exemplo de que antes, era possível um torcedor do Corinthians ir ao estádio com um diretor do Santos e do São Paulo. Hoje isso é infactível. O ódio em dicotomia com o bom senso e com a ética em respeito pelo outro.

Todos os caminhos levam a Berlim

Nessa leva de espaços excluídos está a autora deste texto. Entre 2013 e 2015, disponibilizei conteúdo para um blog da editoria Internacional do Estadão. Depois de 5 anos de colaboração com pautas diversas e, de fato, atuando como uma correspondente, me foi enviado um e-mail por uma pessoa que eu nem conhecia. O e-mail continha 3 linhas, como tivesse sido escrito en passant, entre uma reunião e a hora do almoço ou do lanche. Nenhuma justificativa, nenhuma abertura para diálogo, nenhuma janela aberta para conversas e/ou perguntas e nenhuma informação de quanto tempo eu teria para me despedir dos leitores. Foram necessários vários e-mails com várias pessoas diferentes até chegar a uma informação concreta, o que me fez supor que a redação estaria passando por várias modificações e, definitivamente, não para melhor. O canal de comunicação já mostrava muitas falhas, mas havia se tornado, ao longos dos anos, inexistente.

Grandes flutuações e instabilidade

Mudanças repentinas em editorias quebram a continuidade do fluxo do trabalho e da equipe. Nos últimos meses, a flutuação nas redações dos jornais paulistanos vem exibindo uma odisseia de cabra-cega, que ninguém sabe onde dará. Acertos feitos anteriormente não valem mais sob a nova gestão. A transparência em âmbito corporativo, mas também frente aos leitores, se perde pelo caminho. Uma conduta ética não se expressa dentro da redação. Ela vem de casa e da escola. Com a imprensa brasileira sob seu maior desafio das últimas décadas, a ética se mostra ainda mais imprescindível.

Quando alguma pauta brasileira repercute “na imprensa estrangeira”, são exibidos artigos do NY Times, The Guardian e, quando muito, Le Figaro como exemplo. Especialmente da perspectiva europeia- midiática, o mundo é bem mais amplo e bem mais complexo. Existe uma gama de jornais, das quais relevância, os protagonistas da imprensa brasileira, desconhecem.

O olhar da imprensa brasileira para Berlim, a capital política da Europa, é mínimo. Só sobrou uma correspondente brasileira, atuando para a GloboNews. A percepção midiática do Brasil em relação à Europa ainda insiste em manter a Velha Ordem Mundial e a subserviência, agora ainda mais forte frente aos EUA, também se espelha nas pautas dos noticiários de TV e da imprensa digital.

Nem tudo está perdido

O jornal Folha de S.Paulo não se isenta de equívocos, mas nomeou a jornalista Paula Cesarino Costa para “estimular diversidade nas reportagens” num âmbito interdisciplinar. Por outro lado, o ex-chefe da editoria Mundo, Fábio Zanini, jornalista de visão ampla e vasta experiência no exterior (incluindo correspondente na África do Sul), é responsável pelo conteúdo de um blog dedicado à direita no Brasil e no mundo, uma excelente tacada da Folha em pleno zeitgeist de avassalador crescimento da direita no Brasil, nos  EUA e na Europa. Zanini é a melhor escolha para essa empreitada da Folha em busca de novos segmentos. Além de muito viajado, incluindo uma jornada de 4 meses e meio por 13 países do continente africano, já mostrou várias vezes ter um horizonte aberto, um faro jornalístico ímpar. Em 2014, Zanini deu abertura para minha matéria sobre o recém-fundado partido Alternativa para a Alemanha, na época de direita radical, contra a UE e o euro. Hoje, o partido debandou para a extrema-direita com estreitas ligações com a cena neonazista. Esse, decerto, foi o primeiro artigo fundido da pauta na imprensa brasileira. Zanini foi astuto em aceitá-la, além de confiar no meu faro jornalístico. Esse trabalho de mão-dupla é uma das coisas mais prazerosas e gratificantes em fazer jornalismo.

Carrossel

Nesse tsunami pelo qual atravessa a imprensa brasileira, pode-se constatar um discurso raso, pautas pueris. Será mesmo necessário um blog sobre cães? Será mesmo necessário um artigo diário sobre franquias de hambúrgueres e mais padarias que vendem coxinhas de 1 kg?

Ser jornalista, para a imprensa brasileira, é subir num coqueiro por dia, mas desde as eleições que levaram ao Palácio do Planalto um extremista de direita, o clima no país ficou mais árido e o clima nas redações mais duro – e, como eu pude perceber, bem mais caótico. Os assinantes cancelam, os salários dos funcionários atrasam. Uma bola de neve.

A luta da imprensa brasileira frente a desafios que bateram à porta com a mudança de paradigma e um período de convulsões políticas não deve comprometer a profissão e muito menos a escolha por ela. Ademais, ser ético no âmbito privado e no corporativo não é somente uma obrigação, mas facilita a vida de todo mundo.

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Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.