Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A ética na curadoria digital

Um veículo jornalístico consegue entrevista exclusiva e publica em seu site. Rapidamente, começam a proliferar na internet matérias sobre a dada entrevista em outros veículos jornalísticos, em blogs e em agregadores de conteúdo. É o que chamamos de curadoria digital. Segundo Tarcízio Silva (2012, p. 75), “quando pensamos em curadoria digital, na qual a facilidade (financeira, prática e política) de publicação e disseminação de conteúdos aumenta, este termo parece merecer um papel central no entendimento da comunicação”.

A partir dessa perspectiva, indagamos: o ato de filtrar e republicar conteúdo é eticamente questionável? Ou o que importa é a disseminação da informação por tantos canais quanto possíveis? Para além da questão do direito autoral, que é bastante complexa, nosso objetivo é refletir sobre as formas pelas quais a curadoria é feita, atentando para alguns detalhes que podem garantir um compartilhamento mais ético e profissional.

Vamos então a um exemplo concreto. Em maio deste ano, o cantor e escritor Chico Buarque concedeu entrevista exclusiva ao webjornal El País Brasil . Por se tratar de uma personalidade importante no país, seria esperado que a entrevista repercutisse em outros veículos. No entanto, destacamos algumas distinções na circulação dessa entrevista:

– Edição com link para a fonte original: Foi o que fez o Jornal do Brasil  e a Revista Fórum . Após destacar os principais pontos, os veículos direcionam o leitor para a íntegra da entrevista, por meio de link no final da matéria. Em nossa avaliação, essa é a forma mais correta de curadoria digital, pois o conteúdo é reescrito (inclusive com modificação no título e no enfoque dado pelo El País), ao mesmo tempo em que instiga o leitor a conferir o restante da entrevista no veículo original.

– Edição sem link para a fonte original: Apesar de mencionar a entrevista dada ao El País, a revista Carta Capital não inclui o link para a fonte. Há outros hiperlinks no corpo da matéria, mas nenhum deles leva o leitor à entrevista. O problema desse formato é que o veículo se aproveita de uma entrevista exclusiva que não é sua, sem direcionar o leitor para o conteúdo original. O blog ‘Conversa afiada’, do jornalista Paulo Henrique Amorim, teve atitude idêntica à da Carta Capital: reproduz falas inteiras de Chico Buarque, mas não inclui o link para a matéria do El País.

– Cópia do título e foto, com link para a fonte original: Tal procedimento é feito por agregadores de conteúdo como o Scoopnest , que filtra as notícias mais importantes do dia veiculadas no Twitter, sem edição de conteúdo, levando o leitor diretamente para a fonte original. Apesar de serem criticados por não criarem conteúdo inédito, os agregadores têm o importante papel de filtrar informação relevante para determinado público, preservando a autoria.

– Cópia sem link para a fonte original: Trata-se da forma mais questionável eticamente, pois nesse caso o conteúdo é inteiramente copiado. Foi o que fez o portal independente EntreFatos , que copiou título, fotos e entrevista. Mesmo com link para a fonte original no início da matéria, o portal põe, no final da página ‘Por: Redação’, o que pode confundir o leitor quanto à autoria. Nesse caso, não há uma edição ou remix do conteúdo original. Há a cópia na íntegra. Destacamos que todo o conteúdo do jornal El País é aberto para o leitor, não há paywall.

Fazer jornalismo custa e demanda muito trabalho. Não é fácil conseguir uma entrevista exclusiva, deslocar-se até a fonte, fazer apuração, edição e publicação. Nesse sentido, buscar formas mais éticas de curadoria digital não é censurar a circulação da informação, mas valorizar o trabalho jornalístico. Quando outros veículos jornalísticos não inserem o hiperlink para a fonte original, estão eles mesmos enfraquecendo a própria profissão.

Portanto, não é apenas uma questão de ‘roubar’ cliques de quem tem a autoria da notícia. Este é apenas um ponto, mas não o mais importante. A relação de transparência do veículo com o leitor, indicando e direcionando para a fonte original, permite uma curadoria digital mais ética, essencial para todos que prezam pelo exercício de um jornalístico de qualidade.

Referência:
SILVA, Tarcízio. Curadoria, mídias sociais e redes profissionais: reflexões sobre a prática. In: CORRÊA, Elizabeth (Org.). Curadoria digital e o campo da comunicação. São Paulo: ECA/USP, 2012

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Lívia Vieira, é doutoranda no POSJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS