Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Porque a imprensa deve conhecer melhor o significado das titulações acadêmicas

(Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Recentemente, veio à tona mais um caso de currículo forjado dentro do governo Bolsonaro: o economista Carlos Alberto Decotelli da Silva, indicado ao cargo de ministro da educação, foi apresentado pelo próprio presidente da República, em seu perfil no Twitter, como “bacharel em Ciências Econômicas pela UERJ, Mestre pela FGV, Doutor pela Universidade de Rosário, Argentina e Pós-Doutor pela Universidade de Wuppertal, na Alemanha”. Todas essas informações constavam no currículo do então novo ministro na Plataforma Lattes, do CNPq, e foram amplamente divulgadas. No espaço de poucos dias, porém, diversas inconsistências no currículo de Decotelli ficaram evidentes, dentre as quais o fato de ele não ter concluído o doutorado, mas apenas completado os créditos das disciplinas – o que, diga-se de passagem, equivale a uma parcela ínfima do que é necessário para se tornar doutor. Diante dessa polêmica, o economista sequer chegou a tomar posse no cargo (convém lembrar que Damares Alves e Ricardo Salles também inventaram títulos acadêmicos em seus currículos e, ao contrário de Decotelli, continuam como titulares em seus ministérios).

Independentemente das implicações éticas, morais e até legais da publicação de informações falsas em currículos acadêmicos, há, nessa história, um outro ponto que merece ser discutido: a incapacidade de boa parte da imprensa brasileira ao lidar com os títulos do universo acadêmico. É preciso ter em mente que, no âmbito da pós-graduação stricto sensu, existem apenas dois títulos possíveis: o de mestre e o de doutor. Nesse sentido, chama a atenção, no anúncio do presidente Bolsonaro, a utilização do termo pós-doutor, largamente reproduzido pelos órgãos de imprensa na sequência da nomeação do então novo ministro. É um nome pomposo, imponente… mas para um título que, simplesmente, não existe.

Um pós-doutorado, também chamado de pós-doc, é um estágio de pesquisa, geralmente de caráter temporário, realizado por portadores do título de doutor. Inclusive, seu “nome oficial” é estágio ou residência pós-doutoral. Não se trata de um curso e sequer possui um formato padrão: pode ser uma visita com duração de poucos meses ou, ao contrário, se estender por vários anos. Em alguns casos, o estagiário pós-doutoral ministra cursos, coorienta alunos e realiza outras atividades na instituição que o acolhe, mas uma coisa é certa: ele não sairá dali com um diploma a mais ou com um grau acadêmico mais alto. Em reportagem publicada pela CNN Brasil sobre o currículo de Decotelli, consta que “a universidade [de Wuppertal], assim como outras na Alemanha, não emite certificados de pós-doutorado”. Não deveria haver a menor surpresa nisso – afinal, se não há titulação, não há certificado ou diploma. E, sem grau acadêmico envolvido, não faz sentido atribuir o título de “pós-doutor” a quem quer que seja.

Outro equívoco comum no Brasil se refere à sigla PhD, que vem do latim philosophiae doctor. Esse título equivale a doutorado, não a pós-doutorado, como muitos pensam. Assim, dizer que “fulano é PhD em História” é rigorosamente igual a dizer que “fulano é doutor em História”. Se há alguma diferença, é apenas geográfica: o termo PhD é mais usado especialmente em países de língua inglesa, mas equivale ao nosso doutorado, ao doctorat francês, ao doctoraat neerlandês etc.

E por que isso deveria importar tanto assim aos profissionais de imprensa? Não se trata apenas de uma reles questão terminológica, sem grande relevância? Definitivamente, não. Em primeiro lugar, isso é pertinente, claro, para que a informação seja passada de forma correta. Além desse, porém, há outro aspecto: é fundamental que a imprensa brasileira pare de enaltecer currículos de forma equivocada. Um “pós-doutor” (que, como vimos, não existe) não é mais qualificado academicamente do que um “simples” doutor. Apresentar alguém como “pós-doutor” é apenas uma forma enganosa e fraudulenta de dar a esse indivíduo um destaque extraordinário, como se ele fosse mais gabaritado do que seus pares.

No Brasil, o número de detentores dos mais altos graus acadêmicos tem aumentado consideravelmente nos últimos anos, tornando cada vez mais comum que mestres e doutores ocupem cargos na administração pública ou sejam entrevistados. Por isso, é importante que os profissionais da imprensa estejam capacitados para informar sobre a qualificação acadêmica dessas pessoas e, também, para questionar quando dados duvidosas são divulgadas – inclusive pelos vários acadêmicos que, buscando inflar seus próprios egos, se apresentam como “pós-doutores”.

Como recomendação final, fica aqui uma sugestão de como uma minibiografia acadêmica pode ser apresentada na imprensa: “graduado/bacharel/licenciado em X pela Universidade A, mestre em Y pela Universidade B, doutor em Z pela Universidade C, com realização de estágio/residência pós-doutoral na Universidade D [quando for relevante]”, sem o termo enganoso pós-doutor. Simples assim.

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Evandro L.T.P. Cunha é professor substituto na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É graduado em Letras e mestre em Ciência da Computação pela UFMG, além de ser doutor em Linguística pela Universidade de Leiden (Países Baixos) e em Ciência da Computação pela UFMG (em regime de cotutela).