Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Reforma universitária e inclusão social

Dentro do cenário legislativo brasileiro, o sistema de cotas para o ensino superior está sendo tratado de forma separada da reforma universitária propriamente dita. São dois projetos de lei separados. O que trata das cotas, diferente do outro, já foi encaminhado ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo.

Se sob os olhos da lei a situação ainda está restrita aos corredores de Brasília, na prática o assunto adquire cores muito mais fortes. Não só porque várias universidade federais já decidiram sobre qual caminho vão seguir, mas também porque essa reserva para as minorias raciais não pode ser desligada de toda a reforma que está sendo proposta para o ensino superior no país.

‘Nosso conselho acabou de aprovar o sistema de cotas. No vestibular do fim do ano vamos reservar 10% das vagas dos nossos cinco cursos para negros e índios’, disse Ulysses Fagundes Neto, reitor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), à Agência Fapesp. O dirigente afirma que chegar à decisão foi difícil. ‘Haviam muitas dúvidas, muitos pontos foram debatidos até que pudéssemos decidir. No começo, eu mesmo era um pouco contrário, mas agora tenho certeza que a decisão foi correta’, afirma.

A Unifesp é a primeira universidade federal a tomar essa decisão em São Paulo. Nos outros Estados, o sistema de cotas entre as federais está sendo feito pela primeira vez no vestibular da Universidade Federal de Brasília (UnB), que terminou domingo (27/6). ‘Esse é um momento histórico. O assunto das cotas sempre foi polêmico e difícil de ser tratado’, disse Lauro Morhy, reitor da UnB. Em Brasília, um dos problemas enfrentado pela responsáveis da seleção ocorreu antes mesmo dos exames.

A universidade não optou pelo sistema de autodeclaração, no qual o candidato, ao se inScrever no vestibular, declara ser negro. As 4.385 pessoas que pleitearam as vagas para afrodescendentes tiveram suas inscrições analisadas por uma comissão, por meio de fotos e entrevistas. Do total, a UnB recusou a opção pelas cotas de 212 candidatos. Desses, 34 fizeram o pedido de reconsideração, sendo que 21 foram aceitos. Os demais tiveram que concorrer às vagas normais. Ao todo, 27.389 pessoas se inscreveram no vestibular, que tem disponível 1.994 vagas.

‘É papel do Estado regular essas distorções históricas e a UnB, como universidade pública, adota essa perspectiva’, disse Morhy. Com esse argumento, a universidade resolveu oferecer cotas para negros e índios em seus cursos. Os responsáveis pelas medidas afirmam que nenhum dos temores dos críticos dessa política preocupa a instituição. Entre essas questões estão o nível desses novos alunos quando ingressarem nos cursos superiores e, até, a constitucionalidade da medida.

Alternativas para minorias

A não opção pela autodeclaração por parte da UnB, diferente da escolha da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade do Estado da Bahia, que também implementaram o sistema de cotas em seus vestibulares, foi alvo de críticas por parte da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

Segundo comunicado divulgado pela entidade, a iniciativa ‘constitui um constrangimento ao direito individual, notadamente ao da livre auto-identificação. Além disso, desconsidera o arcabouço conceitual das ciências sociais, e, em particular, da antropologia social e antropologia biológica’.

A UnB discorda. Para a universidade, formar uma comissão responsável por avaliar os pedidos de inscrições e as fotos tiradas pelos candidatos é a forma mais eficiente de se coibir a chamada ‘distorção da distorção’.

Não é apenas a questão racial que está em debate tanto no Congresso como nas ruas. O projeto de lei encaminhado pelo Executivo propõe um sistema de cotas ainda mais amplo. As vagas com a finalidade de equilibrar a histórica desigualdade racial que existe no Brasil estariam inseridas no total destinado às parcelas menos favorecidas na população que, dizem as estatísticas, estão presentes nas escolas públicas.

O que o governo federal pretende é que 50% das vagas do ensino superior do Brasil, tanto nos segmentos público como no privado, sejam preenchidas por alunos provenientes de escolas não particulares.

Segundo José Walter Pereira dos Santos, diretor executivo da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup), as universidades que a associação representa – quase 80% do total – apóiam a reserva de vagas para o ingresso no ensino superior. Segundo ele, é fundamental que qualquer sistema de cotas leve em conta também a questão do mérito. ‘Mas, para isso, são necessários mais debates e reparos no texto do projeto de lei’, disse à Agência Fapesp.

Nessa balança entre cor de pele ou condição econômica e mérito, as opiniões também são diversas. Para Carlos Henrique de Brito Cruz, reitor da Universidade Estadual de Campinas, a questão das cotas nem chegou a ser discutida no conselho da instituição que dirige.

A opção, segundo Brito, foi por fazer a inclusão de uma outra forma, investindo em cursos pré-vestibulares para que a maior parte dos interessados em ingressar nos cursos da Unicamp possam ter acesso ao conhecimento. ‘Temos em nossos cursos 30% de alunos que vieram da escola pública. Essa é a mesma proporção do número de inscritos em nosso vestibular’, disse em debate sobre reforma universitária realizada na Unifesp, no início do mês.

Rendimento igual

Levantamento feito pela Uerj, que adotou o sistema de cotas em 2003, mostrou que 48,9% dos beneficiados tiveram média acima de 7 no final do primeiro ano de aplicação do sistema. Entre os demais alunos, 47,1% tiveram média similar. Ou seja, houve um empate técnico.

Se os números vindos da Universidade Estadual do Rio Janeiro mostram – pelo menos dentro da realidade daquela instituição – que o nível dos cursos não cai por causa da inclusão das minorias raciais, exemplos vindos de outra parte do mundo podem ajudar o Brasil nessa discussão e na redação de um projeto de lei que realmente funcione.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a Justiça deu ganho de causa para pessoas brancas que alegaram não ter entrado na faculdade por terem sido discriminadas pelo sistema de cotas. Isso sem falar na questão da autonomia universitária, que também, no entender de alguns juristas, pode estar sendo ferida no momento em que existe uma lei que determina como a realização dos exames vestibulares devem ser feitos.

Apesar da polêmica sobre o assunto, dois consensos existem. O primeiro é que o assunto ainda precisa ser muito discutido. O outro ponto com o qual todos concordam é que o sistema dificilmente estará pronto em pouco tempo, o que significa que a almejada inclusão social na educação também não será conseguida tão cedo.

******

Editor da Agência de Notícias da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo)