Friday, 26 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

Nem elogio à prudência podia sair



Para a edição seguinte à que noticiara a morte de Vlado, o então diretor de
redação da Veja, Mino Carta, mandou fazer uma reportagem sobre a conduta
dos jornalistas diante da tragédia (e da farsa do suicídio).


A idéia era destacar o papel desempenhado por dois deles: Audálio Dantas, em
São Paulo, e Prudente de Moraes, neto, no Rio — e manter o assunto na ordem do
dia, quando já teriam se passado mais de duas semanas do crime.


A matéria deveria ser escrita de tal forma a ter uma chance de passar pela
censura prévia a que estava submetida a revista. Editor-assistente da seção
Brasil, fui escalado para apurá-la e redigi-la – minha primeira incumbência na
volta ao trabalho, depois de oito dias no DOI-Codi e no Deops.


O resultado é exemplo de um exercício fútil: o de fazer jornalismo com
meias-palavras e contenção em dobro, na vaga esperança de driblar o censor e se
fazer entender ao menos pelos bons entendedores.


Naturalmente, embora fizesse a apologia do ‘jornalismo responsável’ e
advertisse para as ‘armadilhas da provocação’, o texto final foi destroçado pelo
censor a ponto de torná-lo impublicável. Pensando bem, ele sabia o que
fazia.


Transcrevo-o agora, aos 30 anos do assassínio do Vlado, na expectativa de que
contribua para que se entenda como eram aqueles dias e como homenagem pessoal ao
Audálio, que foi o que a matéria diz – e muito mais. Lá
vai:


Na sexta-feira passada, às 5 horas da tarde, o presidente do Sindicato dos
Jornalistas de São Paulo, Audálio Ferreira Dantas, foi para casa dormir. Desde a
morte do jornalista Vladimir Herzog, no Departamento de Operações Internas
(DOI), do II Exército, no dia 25 de outubro, dormir foi o que menos ele pudera
fazer.


A privação do sono e dos pequenos confortos habituais também fez parte do
cotidiano de muitos outros jornalistas – dirigentes sindicais ou não. Convocados
pelo Sindicato, eles desenvolveram, durante esses quinze dias, um intenso
trabalho que incluiu contatos com autoridades, a realização de seguidas reuniões
e a divulgação de informações a jornais e emissoras de rádio e televisão.


Mais importante, porém, do que o sono perdido, foi o fato de que eles
souberam escrever sua intensa, angustiada participação nos acontecimentos
segundo o melhor estilo do jornalismo responsável. Esse comportamento exemplar
acabou por merecer o elogio indireto, mas cristalinamente claro, do próprio
secretário de Imprensa do presidente da República, Humberto Barreto, que se
declarou ‘orgulhoso’ da função que exerce.


E não faltaram oportunidades para que as emoções vencessem o mandamento do
equilíbrio. ‘Muita gente não acreditava, por exemplo, que fosse possível
realizar ordeiramente o culto ecumênico à memória de Vladimir’, comentou depois
o presidente do Sindicato.


A serena combatividade do alagoano Audálio Dantas, 45 anos e 25 de profissão,
atualmente editor da revista Realidade, ajudou a transformá-lo nos
últimos dias numa figura nacional. ‘O senhor é um iluminado’, telefonou-lhe,
comovido, o pai de um jornalista que se encontrava preso. ‘Você e seus
companheiros de Sindicato agiram como estadistas’, cumprimentou-o o presidente
da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o septuagenário Prudente de Moraes,
neto.


Foi ele o primeiro a pedir ao comandante do II Exército, general Ednardo
D’Ávila Mello, abertura de inquérito para apurar as circunstâncias da morte de
Vladimir Herzog (e o acesso da imprensa às investigações). E foi ele quem
decidiu realizar, na sede da ABI, no Rio, um ‘ato de silêncio’, em lugar da
cerimônia religiosa na Igreja de Santa Luzia, proibida pelo cardeal-arcebispo do
Rio de Janeiro, Dom Eugênio Salles.


Prudente de Moraes, neto, ex-diretor da sucursal carioca de O Estado de
S.Paulo
, onde assina uma coluna quase diária sob o muito conhecido
pseudônimo de ‘Pedro Dantas’, não se limitou a isso. Na última quarta-feira,
visitou as redações e o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, conversou com o
cardeal Dom Paulo Evaristo Arns sobre as dificuldades que enfrenta O São
Paulo
, editado pela Cúria Metropolitana, e com o governador Paulo Egydio
Martins, em audiência ‘reservada’ de meia hora, sobre a morte de Vladimir Herzog
e a situação dos jornalistas ainda presos no II Exército.


‘Não conheço nada melhor para acabar com boatos do que franquear a verdade’,
disse Prudente de Moraes, neto, ainda no Rio, a Veja. Essa convicção,
rigorosamente compartilhada por Audálio Dantas, tem muito a ver com a maneira
pela qual os jornalistas se conduziram, longe ao mesmo tempo das armadilhas da
acomodação e da provocação.’


***




[A matéria deveria sair com as fotos de Prudente de Moraes, neto, e de
Audálio Dantas. A legenda da primeira dizia, depois da identificação do
fotografado: ‘Franquear a verdade’. A da segunda, ‘como um estadista’. Postado
às 8h34 de 23/10/2005]