Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Guerra de smartphones

A pauta das revistas e publicações especializadas em tecnologia da informação voltou a incluir a guerra das patentes entre a Apple e a Samsung na telefonia móvel. No final de julho (30/7), a revista AllThingsD publicou um resumo das acusações e processos recíprocos que as duas empresas andam a trocar sobre quebra de patentes. Este é o primeiro grande caso da disputa do mercado de smartphones a ir a julgamento depois de seguidas disputas, informou o periódico. A empresa americana acusa a sul-coreana Samsung de copiar seu iPhone e lançar um aparelho muito semelhante por uma fração do preço que ela planejou para seu novo iPhone. Segundo a Apple, a Samsung copiou inovações patenteadas pela Apple e as incorporou em seu aparelho.

O sucesso global do produto sul-coreano, que popularizou o smartphone no mundo, incomodou muito a Apple e sua tradição de produtos caros. E a companhia americana partiu para a guerra. A empresa sul-coreana revidou, processou a Apple e a seleção do júri começou no dia 30 de julho para o julgamento que acontecerá em corte federal na cidade de San José, Califórnia. O caso deverá “arrastar-se até o meio de agosto”, informou a publicação. A Samsung luta para refazer a conta dos royalties que lhe são devidos e as bases que definem sua cobrança. A Apple acredita que o valor dos royalties deverá estar atrelado ao valor das patentes dos componentes que o aparelho. A Samsung defende que o valor do produto no mercado em que este é usado é que deve orientar o pagamento dos mesmos.

Esperança frustrada

Dias depois (3/8), a revista apresentou outra reportagem com poucas palavras e muita ilustração. As queixas da Apple são principalmente contra o desenho do produto concorrente, que ela afirma ter sido descaradamente copiado do iPhone. As imagens realmente confirmam uma desconfortável semelhança entre os dois aparelhos. Mas é ingenuidade da Apple transferir quase toda sua produção para países com boa base tecnológica e não esperar algum tipo de engenharia reversa de seus produtos. A Apple é uma empresa que não cede, transfere ou aceita qualquer tipo de colaboração em suas criações. É uma empresa moderna, com uma concepção de propriedade herdada do século passado e que teve o que mereceu: os coreanos copiaram seu produto, baixaram muito o preço dos smartphones e arruinaram a projeção de lucros da gigante americana.

Mas o litígio entre as duas empresas escamoteia algo muito além da competição por patentes e vendas de smartphones e das razões que as empresas empregam para acusar uma à outra. Estão em jogo não apenas empregos, vendas e lucros em uma ou outra parte do mundo, mas modelos desenvolvimento empregados para desenvolver regiões e alavancar vendas de empresas que não mais “nacionais”: são corporações mundiais sem pátria ou compromisso com o desenvolvimento da região e com o bem-estar da população onde se encontram localizadas. Isso é válido, sobretudo, no Ocidente. À frente veremos que outras partes do mundo recorrem a outras estratégias para equilibrar e fazer crescer suas economias, num mundo onde a manufatura tradicional parece cada dia menos relevante diante das grandes corporações de base tecnológica.

A revista Wired publicou um artigo (3/8) onde fica bem claro o desapontamento de muitos economistas e planejadores com o Vale do Silício. A grande esperança de recuperação da hegemonia econômica americana depois dos anos de 1980 foi frustrada por um modelo de desenvolvimento que ignora completamente a classe média e o trabalhador sem qualificação de nível superior. “O Facebook não precisa de trabalhadores de fábrica”, diz o artigo.

“Não para todos”

Marcus Wohlsen, autor da matéria, prova o que diz. Com dados regionais do Departamento de Trabalho dos Estados Unidos, ele mostrou que a região do condado de Santa Clara (o verdadeiro nome geográfico da região do Vale do Silício) tem crescido e gerado empregos, “mas não para qualquer um”. A região metropolitana que engloba o Vale é a campeã do país na geração de emprego, com um crescimento de 3,8% acima do mesmo período ano passado. São Francisco, a metrópole da região, segue em segundo lugar, com 3,6% de taxa de crescimento de emprego. As empresas de base tecnológica dominam a geração de empregos de alta qualificação.

O autor também afirma que este boom de crescimento dessas empresas acabou por gerar “um universo paralelo” no mercado de trabalho: enquanto a região da Baía (região ao redor de São Francisco, Oakland e o Vale do Silício) brilha em contraste com o sombrio panorama econômico nacional, o desemprego atinge na região taxas de 8,8 %, “um aumento de aproximadamente 0,5% sobre maio último, e bem abaixo da média nacional”, anotou a Wired. Comparada com o mesmo período do ano passado, a coisa melhorou: em junho de 2011, 10,2% da população economicamente ativa estava sem trabalho, informou o repórter que, depois de apresentar os números desapontadores de desemprego no local, interrogou-se sobre a pequenez dos resultados do crescimento do emprego numa região em que se depositou tanta esperança de crescimento, quando comparada com o resto do país.

A resposta, o autor encontrou no Índice do Vale do Silício, um relatório anual sobre o estado da economia na região. No documento, “pesquisadores descobriram no início do ano (08/02) que empregos em alta tecnologia são abundantes. A renda média está em ascensão, alimentada pela competição quente entre telefonia móvel, internet, mídia social e computação em nuvem”, diz o documento. Que também apontou para a queda da renda média fora do setor de alta tecnologia. As indústrias do setor criam empregos, “mas não para todos”. Toda a ebulição das grandes corporações baseados na inovação tecnológica não significa maior geração de empregos. Novas empresas do setor são criadas todos os meses, mas o impacto disso no mercado de trabalho como um todo é mínimo.

Evitar ambiguidades

Segundo Russel Hancock, presidente da Joint Ventures (que publica o Índice do Vale do Silício), a tendência é permanente: “Esta é a realidade e vai ser deste jeito daqui para frente. Você não precisa de toda aquela gente de quem costumava depender”, afirmou Hancock. A Wired apresentou uma boa reportagem, mas não abordou com profundidade a questão da perda do emprego para países emergentes, como China e Coréia do Sul. O artigo limita-se a declarar que antigamente as empresas estavam limitadas a procurar mão de obra local, enquanto que hoje procuram a melhor mão de obra do mundo, em qualquer lugar que esteja. E qual é a mão de obra ideal para as indústrias de tecnologia de informação? Qualquer uma que não respeite os direitos que os trabalhadores do Ocidente obtiveram ao longo de lutas históricas, não tenha forte proteção sindical e explore impiedosamente a força de trabalho, como na China e outros países emergentes asiáticos da região do Pacífico.

O New York Times apresentou o modus operandi das firmas asiáticas, que as tornam imbatíveis na competição internacional por empregos e renda, numa matéria do início deste ano (21/1). Num artigo longo, os autores Charles Duhigg e Keith Bradsher demonstraram como a Apple se apoia numa empresa chinesa, a Foxconn, para montar seus produtos e evitar a contratação de mão de obra norte-americana. Tim Cook, atual presidente da companhia, acredita que a Ásia é insuperável em aumentar ou diminuir escalas de produção com uma flexibilidade inigualável e que as cadeias de suprimento daquele continente são infinitamente mais eficientes que as locais. Por isso não faz mais sentido criar empregos de nível médio nos Estados Unidos.

Os autores foram cautelosos e astuciosos na elaboração de seu artigo. Procuraram a Apple para entrevistas sobre sua matéria, mas diante da negativa organizaram uma pesquisa com quase 40 funcionários e contratadores da empresa. A maioria solicitou anonimidade, pois seus empregos estavam em jogo. Trato feito e aceito. Foram entrevistados também “economistas, especialistas em manufatura, comércio internacional, analistas de tecnologia, pesquisadores acadêmicos, empregados de fornecedores da Apple, competidores, parceiros corporativos e oficiais do governo”, avisaram Duhring e Bradsher. Com este procedimento, evitaram ambiguidades e problemas com fontes impossíveis de serem identificadas sem que a matéria perdesse credibilidade.

Condições precárias

O longo e bem desenvolvido artigo mostra os segredos sujos da principal parceira da Apple na fabricação dos smartphones e outros produtos, a Foxconn, que tem sua sede em Taiwan mas opera no mundo todo, inclusive no Brasil. A empresa chinesa trabalha como montadora para outras companhias como a “HP, Dell, Motorola, Nokia, Samsung e Sony”, informou o artigo. A Foxconn emprega métodos de contratação e exploração de mão de obra que não seriam aceitos em nenhum lugar do Ocidente:

“A empresa tem 230 mil empregados, muitos trabalhando seis dias na semana, frequentemente passando 12 horas por dia na fábrica. Mais de um quarto da força de trabalho da Foxconn vive em barracas da companhia e muitos trabalhadores ganham menos de U$ 17,00 por dia” (cerca de R$ 34,46 por dia, ou R$ 827,04 por mês ao dólar do dia).”

Quando um executivo da Apple chegou durante uma mudança de turno, seu carro ficou paralisado diante do verdadeiro rio de empregados que passava em sua frente. “A escala é inimaginável”, declarou o então pasmo gestor norte-americano.

Outra empregada da Apple, Jennifer Rigoni, que foi administradora mundial de oferta e demanda até 2010 declarou, espantada, que “eles podem contratar 3 mil pessoas de um dia para outro. Qual fábrica norte-americana pode encontrar 3 mil trabalhadores da noite para o dia e convencê-los a viver em dormitórios?”, perguntou a atônita funcionária da Apple, que não quis comentar sobre sua atual função na companhia.

Os chineses negam tais condições precárias de trabalho em sua empresa. Mas os funcionários, em segredo, desmentiram todas as garantias de respeito aos direitos dos trabalhadores nas premissas da Foxconn, que hoje é a maior fornecedora de componentes eletrônicos e de informática do mundo.

Dor de cabeça e mal-estar

A empresa de Taiwan monta cerca de 40% de todos os aparelhos na indústria de tecnologia de comunicações de todo o planeta. Mesmo a negar a existência do turno da meia-noite, os feitos extraordinários da empresa desmentem seu discurso oficial de proteção aos trabalhadores:

“Na metade de 2007, depois de um mês de experiência, engenheiros da Apple aperfeiçoaram um método para cortar vidro ultrarresistente para que pudessem ser utilizados em telas dos iPhones. Os primeiros carregamentos de caminhões cheios de vidro chegaram a Foxconn no meio da madrugada, de acordo com um ex-executivo da Apple. Foi quando administradores acordaram milhares de trabalhadores, que arrastaram-se para dentro de seus uniformes – camisas pretas e brancas para homens, vermelhas para mulheres – e rapidamente alinharam-se para montar, com as mãos, os telefones. Dentro de três meses, a Apple tinha vendido um milhão de iPhones. Desde então, a Foxconn montou 200 milhões mais.”

Observe-se que a Foxconn é apenas uma montadora de componentes eletrônicos e digitais. Emprega, em grande maioria, mão de obra de média e baixa qualificação. É um gigante mundial da manufatura ligado a indústria de tecnologia de informação que serve exclusivamente as maiores empresas do setor. Sua atuação e seus métodos semiescravagistas de contratação e manejo da mão de obra, somados ao apoio de Pequim, têm afastado toda a competição do resto do mundo. Nenhuma empresa americana ou europeia pode competir com isso. Os trabalhadores no Ocidente e em outros países que garantem suas conquistas históricas em remunerações justas e condições de trabalho dignas para os seus trabalhadores não podem competir com os métodos selvagens da Foxconn.

Executivos da Apple já declararam que “não é seu trabalho acabar com o desemprego”. Um deles afirmou que “vendemos iPhones para mais de cem países. Nós não temos a obrigação de resolver os problemas da América”. Com toda esta empáfia, com toda esta falta de compromisso atrevidamente demonstrada contra seu próprio país, parece justo que, depois de perder os empregos na manufatura tradicional, agora eles percam também a guerra das patentes. Mesmo sabendo que a companhia de Jobs é dura na queda e não desiste ou se entrega facilmente, contento-me, então, com a dor de cabeça e o mal-estar que os executivos da Apple passam no momento.

Responsabilidade local

A Apple foi extremamente ingênua ao acreditar que iria, diante de tal cenário devastador de exploração desumana da força de trabalho, conseguir manter seus segredos entre quatro paredes americanas e suas patentes invioladas. Cegos e ávidos por lucros cada vez maiores, foram cedendo linhas e mais linhas de montagens para a Ásia. Depois começaram a enviar engenheiros para gerir tais estruturas. Quando deram conta da situação, a Samsung já havia feito a engenharia reversa do iPhone. A Apple foi punida por sua ambição, prepotência e indiferença ao desemprego da classe média norte-americana.

Os asiáticos da costa do Pacífico têm outra lógica de trabalho, muito pouco ou nenhum respeito pelos direitos dos trabalhadores, e conseguiram fazer do negócio de montagem eletrônica e tecnológica voltada para a informática uma empreitada asiática. A guerra dos smartphones (que agora é manchete em quase todas as publicações voltadas para tecnologias de informação) é um bom cenário para pormos frente a frente duas visões opostas e em litígio sobre como desenvolver regiões e criar empregos. Enquanto a Apple subcontratou firmas asiáticas para conseguir chegar ao topo em Wall Street, a Samsung, a Lenovo e outras firmas asiáticas procuram interiorizar e manter dentro do país os lucros de suas vendas. A China, potência regional e mundial que domina o cenário industrial asiático, pratica uma política de desenvolvimento regional que favorece principalmente as companhias com sede na Ásia.

São duas posturas opostas. As empresas orientais, apesar de “globalizadas”, nunca perdem de vista o horizonte nacional. No Ocidente, as empresas estão mais interessadas em garantir maiores salários para seus executivos, mais isenções fiscais e mais lucro privado desvinculado de qualquer tipo de compromisso com seus países de origem. Enquanto o desenvolvimento regional oriental conserva os empregos e os vínculos com os países da Ásia, no Ocidente a noção de responsabilidade local em gerar empregos e bem-estar dentro de um certo espaço circunscrito parece ter desaparecido.

ilusão pueril

E o Brasil com isso? Bem, como já mencionei acima, a Foxcomm, que monta os iPhones e outros gadgets para a Apple e outras grandes companhias, está aqui no Brasil também. Eike Baptista e o BNDES ajudaram a subsidiar a montadora de iPads no Brasil. E a revista Veja (21/06) ainda teve a coragem de chamar o produto de “brasileiro”. A atitude servil da mídia brasileira com os taiwaneses foi vergonhosa. Terry Gou, presidente da companhia taiwanesa, chamou nossa população de preguiçosa, publicou o portal Terra Tecnologia (24/02). Disse que não trabalhamos muito “porque estamos no paraíso”. E que nosso país lembrava a “antiga Taiwan plantadora de bananas”. Ele complementou seus insultos e preconceitos e acrescentou que a presidenta Dilma estava interessada em “modernizar o Brasil, trocando a venda de matéria-prima pela de semicondutores”. O sr. Gou insultou nosso país e nosso povo, mas a mídia saudou o investimento com uma reverência sem vergonha e subserviente.

O que dizer disso tudo, caro leitor? Se os americanos não possuem condições de competir com os chineses em exploração da força de trabalho e na formação de engenheiros de produção, quais são as esperanças do Brasil? Infelizmente, enquanto acreditarmos que estamos a produzir iPads “brasileiros”, devemos aceitar então que não somos muito mais do que uma república de bananas. Um mero exportador de matéria-prima e energia para os emergentes da Ásia que desenvolveram suas bases tecnológicas.

Se há algo que podemos aprender com esta guerra entre a Apple a Samsung é que o nosso modelo de desenvolvimento está errado, ancorado no passado e incapaz de gerar investimentos na área de tecnológica que não sejam meras montadoras estrangeiras exploradoras de recursos locais. O New York Times denunciou as práticas sujas de exploração de trabalho da firma asiática. Aqui, ainda temos uma mídia que acredita que o Brasil fabrica iPads, que o investimento da Foxcomm foi um grande negócio e que os aparelhos são brasileiros.

Não são. São apenas montados aqui. Acreditar que existe um iPad “brasileiro” é uma ilusão pueril. E você, caro leitor? Acredita que seremos um dia uma grande fabricante de semicondutores? Temos alguma chance de algum dia de nos tornarmos grandes fornecedores para firmas de alta tecnologia?

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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]