Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Carlos Chaparro

‘O XIS DA QUESTÃO – Como pensava Cláudio Abramo, a independência jornalística resulta da afirmação diária do caráter e da honestidade intelectual do jornalista. Ainda que assim seja, e por se tratar de virtude tão essencial quanto frágil, a independência jornalística precisa ser protegida por comportamentos e normas que enraízem, nos costumes da profissão, uma cultura de repúdio ao jabaculê, corrupção da notícia.

1. Escolha pela dignidade

Recebi, há dias, angustiado e-mail de um estudante de jornalismo. Aluno do segundo ano, ele aproveitou as férias para viver a primeira experiência de redação, no pequeno jornal diário da sua cidade. E se escandalizou com o fato de, por três vezes, ter sido escalado para escrever matérias pagas disfarçadas de jornalismo. No jargão daquela redação, ‘fez o jabá’.

Conta o jovem estudante, futuro profissional:

‘Na primeira matéria, fiquei meio relutante. Poxa, isso vai contra tudo o que aprendi na faculdade. Mesmo assim, fui lá, ‘entrevistei’ o financiador da matéria e escrevi o jabá. Na segunda vez, foi pior, pois o texto saiu publicado em meio a várias notícias, confundindo-se com elas, sem qualquer indicação de que se tratava de matéria paga. Na terceira vez, foi pior ainda: o jabá saiu assinado, com o meu nome – e tive de elogiar algo que abomino, que vai contra os meus ideais. Conversei com colegas, e eles me disseram: ‘Jabá, temos que fazer sempre. E temos que transformá-lo em notícia’. Ficou claro para mim que o leitor estava sendo enganado’.

Depois, pergunta-me o jovem estudante:

‘O que devo fazer, professor? Com certeza, vão me mandar fazer mais jabá e eu não quero trair a mim mesmo. Será que não há um jeito de escapar daquilo que mais me entristece no jornalismo – o jabá?’

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Há várias questões envolvidas no amargurado e-mail. Mas, antes de entrar em qualquer delas, devo responder à sua pergunta, caro jovem: obedeça à sua consciência, não à calhordice do patrão. E se ele o mandar embora, faça dessa oportunidade de afirmação das suas razões de caráter a grande experiência, o maior aprendizado do estágio. Volte para o seu curso, tire dele o máximo proveito possível. Estude, investigue, desenvolva habilidades técnicas, sensibilidade estética e aptidões intelectuais. Mas, principalmente, preserve o seu ideal, eduque-o, para que, quando chegar a hora, possa ingressar na profissão fazendo parte do grupo dos profissionais a quem os cantos e encantos das sereias corruptoras não seduzem, jamais do grupo dos ‘almas vendidas’ ou dos ‘penas alugadas’.

Lembre-se: em qualquer redação há ‘jabaculeiros’ de todos os tipos, disfarçados ou não. Mas existem também, e não são poucos, os profissionais dignos, respeitados e respeitáveis, em quem os leitores podem confiar. E eles fazem a diferença, nas pequenas como nas grandes redações.

2. Lógica da fraude

Por mais que publicações até consideradas sérias e importantes, como a revista Isto É, adiram a práticas de publicidade disfarçada de jornalismo, (agora sob rótulos como ‘publijornalismo’ e ‘projeto de mercado’), o jornalismo, enquanto atividade cultural, política e intelectual, continua vinculado ao universo dos valores, a compromissos com o bem comum e ao dever de informar honestamente, com veracidade. Ou não terá papel a cumprir.

Devemos reconhecer, entretanto, que não está fácil, diante da complexa contradição que a nova ordem da comunicação nos coloca: de um lado, a sociedade, cada vez mais politizada e crítica, exige um jornalismo em que possa confiar; do outro, sob a pressão da lógica neoliberal, a empresa jornalística, para sobreviver, terá de fazer do jornalismo fonte de lucro, isto é, negócio.

Existe, porém, um ponto de convergência, em torno do qual jornais e leitores estabelecem o acordo entre si: a notícia tem de ter a virtude da veracidade, ou não será notícia, mas fraude. E sem notícia não há jornal nem jornalismo que dê lucro.

No plano ético, a fraude da notícia vilipendia o direito à informação, no Brasil protegido até pela Constituição. O artigo 220 estabelece que ‘nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística’ (parágrafo 1º ) e que será ‘vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística’ (parágrafo 2º).

Qualquer que seja o formato da embalagem, o jabaculê (gíria brasileira que corrompe até o significa de gorjeta) é sempre, inevitavelmente, nas intenções de quem o oferece e nas imprudências ou indignidades de quem o aceita, uma probabilidade de embaraço à liberdade de informar. Trata-se, portanto, de um truque provavelmente desonesto que, deformando a notícia, frauda o direito à informação.

3. Virtude frágil

A cultura jornalística brasileira cultiva velhas e diversificadas práticas de jabaculê. Já tivemos, até, o jabaculê oficial: por um longo período, nos anos 50 e 60 do século passado, os jornalistas eram isentos do pagamento do imposto de renda.

Embora as coisas tenham melhorado na face ética do jornalismo, e muito, devido às exigências da sociedade, continuamos a ter um vastíssimo elenco de práticas e tradições de corrupção ativa e passiva – empregos paralelos, compensações financeiras, vantagens na aquisição de produtos, gratuidade no ingresso de espetáculos e no uso de serviços, almoços, jantares, brindes, favores, partilhas de poder (ou a ilusão disso), viagens… Uns oferecem, outros aceitam ou solicitam.

Há também os que não oferecem. E os que não recebem. Tenho um amigo, repórter de primeira, que até agenda devolve. E assim como se escandaliza com as tentativas de suborno, e a elas reage, também se escandalizou quando, numa fase da vida profissional em que foi assessor de imprensa da Honda, recebia pressões terríveis de jornalistas da cobertura especializada, que queriam comprar motocicletas com desconto, para revender a preço de tabela. ‘No tempo do lançamento do famoso modelo CB 400, foi um tormento’, diz ele.

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Existem, também, os profissionais que recebem certos tipos de jabaculê, convites para viagens, por exemplo, e não se vendem. Conheço jornalistas brasileiros que viajam freqüentemente a outros países, a convite de empresas, para conhecer novidades tecnológicas, produtos novos ou empreendimentos incrustados no futuro. Mas que, na hora de observar, perguntar e escrever, não aceitam relações de dependência com quem pagou a viagem. Assim como conheço outros que, mesmo sem convites, jamais deixam de ser dependentes.

Olhando os cenários da realidade, não tenho dúvidas de que a independência jornalística é, acima de tudo, uma questão de caráter e de honestidade intelectual. A propósito, lembro aqui o aforismo criado por Cláudio Abramo, para quem ‘o jornalismo é o exercício diário do caráter’.

Ainda que assim seja, e por se tratar de virtude tão essencial quanto frágil, a independência jornalística precisa ser protegida por comportamentos e normas que enraízem, nos costumes jornalísticos, uma cultura de repúdio ao jabaculê – em favor do direito à informação, que se materializa na notícia veraz.

Se o exemplo não puder vir dos mais velhos, que a luta por comportamentos éticos seja então travada pelos jovens ingressantes na profissão.

NOTA DE RODAPÉ

O historiador Mecenas Dourado, considerado por Nelson Werneck Sodré o principal biógrafo de Hipólito José da Costa, sustenta, com vasto aporte documental, em seu livro Hipólito da Costa e o Correio Brasiliense (Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 1957), que quem financiou o histórico jornal editado em Londres foi D. João VI, que pagava a Hipólito da Costa uma subvenção de mil libras por ano, ‘para amaciar o seu jornal’.

Velhas e profundas são, portanto, as raízes…’

 

MIGALHAS vs. CONSULTOR JURÍDICO

Karla Siqueira

‘Sigilo de Justiça na berlinda’, copyright Comunique-se (www.comunique-se.com.br), 4/02/04

‘A imprensa pode publicar detalhes de processos que estejam sob sigilo judicial? Os limites da atuação dos veículos de comunicação tornou-se assunto polêmico esta semana, depois de uma matéria do jornalista Cláudio Tognoli para o site Consultor Jurídico. Tognoli teve acesso ao relatório final da ‘Operação Anaconda’ e, em sua reportagem, listou nomes dos mais respeitados advogados do país que teriam sido citados.

Foi o ponto de partida para o boletim Migalhas, especializado em advocacia, dar início, através do seu editorial, a uma discussão sobre o direito do jornalista publicar o que um juiz determinou como segredo. O advogado Miguel Matos, responsável pelo boletim e autor do editorial, afirma que não pretendia julgar ninguém, nem nenhum veículo de comunicação. ‘O que eu quero é levantar essa questão. Se um juiz define que, em prol do interesse público, um processo deve correr em segredo de Justiça, se um jornalista consegue detalhes desse processo e os publica, está cometendo uma irregularidade. Além disso, quem forneceu esses detalhes ao repórter é um criminoso. Logo, a matéria está pautada em provas de um crime’, defende.

O editorial afirma que, ao citar nomes de pessoas envolvidas em um processo sob sigilo, os veículos propiciam um ‘linchamento público, quase um reality show judicial que induz a opinião pública, com base em informações indiciárias, à condenação dos acusados sem permitir o direito de defesa’.

Miguel acredita que os jornalistas devem repensar um pouco esse modo de trabalhar. ‘Na minha opinião, inclusive, esse caso do relatório da Operação Anaconda não deveria correr em segredo de Justiça. Mas o importante, então, é o jornalista questionar por que esse segredo foi mantido. O que o jornalista deve fazer é questionar a determinação desse juiz, não desrespeitá-la. A partir do momento em que a Lei dá ao juiz o poder de pedir ou não o sigilo, cabe ao repórter investigar como o juiz tomou essa decisão e por quê. Não cabe ao jornalista decidir que o interesse público é de que não haja sigilo e publicar o relatório, a despeito da Lei.’

Para o jornalista Marcio Chaer, diretor de redação do Consultor Jurídico, o boletim se equivoca ao vincular o segredo de Justiça à imprensa. ‘Por enquanto, e até segunda ordem, vigora no país o paradigma de que o dever de manter o sigilo é do agente (servidor) público e não do jornalista. À imprensa cabe dar curso ao interesse público que, também até prova em contrário, se sobrepõe ao interesse individual’, diz. O jornalista afirma ainda que nenhum dos advogados citados se opôs à publicação, que a assessoria e o escritório de todos os envolvidos foram procurados, e que o Consultor Jurídico contou com o parecer de vários juristas antes de publicar a matéria de Tognolli.

Ao Comunique-se, Marcio Chaer explicou que existem duas vertentes para se interpretar o sigilo de Justiça: ‘Existem dois pontos de vista concorrentes. Um, retirado da Constituição, diz que segredo é segredo e fim. O outro é embasado pela jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal, que entende que o sigilo vincula apenas o servidor público. Quem tem que preservar o segredo é o agente público. Então, se o jornalista entende que o material que chegou até ele é de interesse público, publica. O que não pode é haver erros, como publicar a vida íntima de alguém citado no processo sob sigilo, um assunto que não tem nenhum valor para a sociedade.’

Como exemplo de entendimento do Supremo, Chaer enviou à nossa redação o seguinte discurso do ministro do STF, Celso de Mello:

‘Constitui estranho paradoxo impor-se, na vigência de um regime que reclama transparência, a regra do silêncio obsequioso, transformando, perigosamente, em regra, o que deveria revestir-se de excepcionalidade absoluta.

A publicidade representa, nesse contexto, uma norma básica das relações entre o Estado, seus agentes e a coletividade a que servem.

Se as declarações dos agentes públicos lesarem o patrimônio moral de terceiras pessoas, causando-lhes injusto gravame, torna-se evidente que, por tal ilícito comportamento, deverão responder aqueles que nele incidiram. Demais disso, e nos casos excepcionais de sigilo, se abuso houver – com a violação criminosa do dever de resguardar o sigilo funcional – por ele deverá responder o servidor público faltoso.’

Publicar ou não?

A decisão de publicar a matéria de Cláudio Tognolli poderia não ter sido apenas do Consultor Jurídico. O jornalista garante que cedeu o mesmo material a vários veículos de grande circulação, mas que nenhum deles publicou. Na opinião de Chaer, isso acontece por vários fatores, mas os principais são o conflito de interesses, já que nomes conhecidos e poderosos são citados, e o medo de se envolver em um processo judicial.

‘O nosso Judiciário está em um momento difícil. Hoje, por causa das pressões que sofrem, os juízes julgam com a Constituição em uma mão e o jornal na outra. Você acha que alguém está querendo confusão com a Justiça?’, pergunta Chaer.

O que diz a Lei?

A Constituição brasileira garante a publicidade dos processos judiciais. No entanto, admite exceções, dispostas no artigo 5º, parágrafo LX: a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;

O advogado Luiz Francisco Carvalho Filho explica que qualquer processo é essencialmente público, salvo em casos específicos (como questões familiares) ou mediante uma explicação fundamentada do juiz, que revele haver algum ponto no processo cuja publicidade possa atrapalhar o caso. ‘Na minha opinião, o responsável pelo sigilo do processo, quando há, é o servidor público. O jornalista não tem responsabilidade sobre isso, logo o jornalista não comete nenhum crime se publica detalhes de um processo sob sigilo’. O advogado deixou claro que se refere à área criminal, mas que existem outras que podem de alguma maneira interferir na atitude do jornalista. ‘Ainda assim, acredito que os jornais têm o direito de publicar tudo o que acreditem ser de interesse público’, completa.

O advogado André Daibes concorda que o servidor público é o responsável por manter o sigilo de Justiça e que, ao deixar as informações ‘vazarem’, comente um crime claramente especificado na Lei. No entanto, Daibes lembra que o jornalista pode ser, em tese, considerado conivente de um crime caso publique um material conseguido junto a um servidor que infringiu a Lei. ‘Existem questões muito complexas nessa discussão. Uma delas é a seguinte: como podemos aceitar que, em um Estado de Direito, uma decisão judicial possa ser desrespeitada pelo jornalista, simplesmente porque este decide que o assunto é de interesse público? Lembro que o juiz, ao usar do artifício do sigilo de Justiça, fundamenta sua decisão em fatos concretos que possam prejudicar o processo. Dessa forma, as decisões judiciais vão perder a eficácia’, explica.

Daibes destaca ainda outros pontos que vão de encontro à publicação de material sob sigilo. ‘Normalmente, quando isso acontece, só uma parte do processo é divulgada. E freqüentemente, no Brasil, é a parte da acusação. Muitas vezes, a defesa fica de fora, não aparece. Isso leva a uma pressão da opinião pública contra pessoas que nem foram condenadas ainda. Não é justo, porque uma pessoa que foi apenas citada no processo se torna um criminoso perante o público e muitas das vezes é comprovadamente inocente. Quero deixar claro que não estou me colocando a favor do sigilo de Justiça, apenas do seu cumprimento, já que a Lei existe. O que se pode e se deve fazer é descobrir por que o sigilo foi estabelecido e questionar isso. Para isso servem os recursos. Os jornalistas poderiam investigar que explicações são dadas para se pedir sigilo’, finaliza.’