Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Estado de violência

Os jornais paulistas noticiam nas edições de quinta-feira (16/5) dois crimes violentos cometidos na região Oeste de São Paulo na noite de terça. No bairro de Perdizes, um estudante da Pontifícia Universidade Católica, de 23 anos, foi baleado no pescoço ao sofrer um assalto. Os ladrões queriam seu telefone celular. Em Pinheiros, um atendente de padaria, de 22 anos, foi morto com dois tiros por ladrões que levaram sua mochila e seu telefone.

No primeiro caso, os diários destacam que a vítima foi baleada mesmo sem ter reagido. No segundo caso não há testemunhos, mas pode-se supor que também não houve reação, porque a vítima foi surpreendida por dois assaltantes.

A imprensa trata de maneiras diferentes os dois episódios semelhantes. A Folha de S.Paulo junta as duas histórias e registra no título: “Balconista é morto em Pinheiros, e aluno da PUC, baleado em Perdizes”. O Estado de S. Paulo dá amplo destaque para o caso do estudante baleado e registra em uma coluna curta o assassinato do atendente de padaria. O título da reportagem principal diz o seguinte: “Aluno da PUC fica meia hora à espera de socorro; TJ volta a proibir resgate por PM”. No título da nota ao lado, lê-se que “Rapaz de 22 anos é morto em assalto em Pinheiros”.

Vamos passar ao largo dos critérios adotados pelo Estado para uma hierarquia das vítimas: o tratamento desigual dado aos dois acontecimentos indica que um universitário que sobrevive a um tiro vale, para o jornal, mais do que um ajudante de padaria que morre baleado, ainda que as circunstâncias motivadoras dos dois crimes – o roubo de um telefone – sejam iguais. Por coincidência, os dois aparelhos eram da mesma marca, do tipo smartphone.

Não há como avaliar tal critério de decisão editorial sem passar por uma reflexão penosa que fatalmente conduziria à conclusão de que a imprensa, ou parte dela, dá valores diferentes para os seres humanos conforme seu status social, sua atividade profissional ou o lugar onde vive.

Sob qualquer critério, a morte do balconista é fato mais chocante do que o atentado que deixou o estudante com um ferimento grave, ainda que com risco de vir a morrer em consequência do tiro. Pode-se dizer que o editor do Estado optou por destacar o caso do aluno da PUC por causa da oportunidade de colocar em discussão a proibição de que policiais militares prestem socorro a vítimas de lesões corporais graves.

Epidemia de assassinatos

Para o Estado, importante é discutir essa decisão polêmica do governo paulista, tomada pelo fato de que policiais militares costumam atirar contra suspeitos, alegando que haviam reagido à abordagem, e simulam o socorro, deixando-os morrer ou apressando a morte dentro da viatura. Para a Folha, pelo menos no caso presente, importante é destacar a violência.

A banalidade com que os criminosos matam ou tentam matar as vítimas de assalto é fenômeno mais ou menos recente em São Paulo e certamente tem a ver com a estratégia de segurança pública adotada no estado. Em qualquer circunstância, não é aceitável o espantoso aumento dos casos de latrocínio, ainda mais levando-se em conta o valor irrisório dos objetos subtraídos das vítimas.

Sem confronto, sem risco, aproveitando-se da surpresa e sem qualquer temor de virem a ser apanhados e, se o forem, de virem a ser punidos, os ladrões “evoluíram” para o papel de executores em um número de ocorrências que deveria estar provocando muito mais indignação do que o que se vê na imprensa.

Uma epidemia de assassinatos motivados pelo interesse de roubar telefones usados, como acontece nos últimos meses, deveria estar perturbando a consciência das autoridades e dos jornalistas.

Não se trata de crimes misteriosos: por trás de cada assalto há um receptador que encomendou o telefone; depois do receptador há os compradores de aparelhos usados; os negociantes que vendem esses aparelhos têm domicílio; os aparelhos podem ser identificados.

Se a posse de um telefone com acesso à internet virou um risco de morte, é preciso pensar o sistema como um todo, e não apenas fazer a polícia ficar correndo atrás dos assaltantes. Afinal, o que é que faz um telefone se tornar tão valioso a ponto de levar um criminoso a arriscar a pena por latrocínio em vez da acusação de roubo, que praticamente não resulta em prisão?

Ao destacar as semelhanças entre a morte do ajudante de padaria e a tentativa de matar o universitário, a Folha escancara o absurdo da violência que se abate sobre os cidadãos. Mas não vai adiante, como se evitasse colocar em discussão uma política de segurança que, ao que tudo indica, faz São Paulo viver em estado de violência.