Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Vida pública, religiosidade e mídia

“A guerra é contra o terror, e não contra o islamismo.” (Barack Obama, ao anunciar a morte de Osama bin Laden, chefe da al-Qaida, em 01/05/2011)

Padres, líderes evangélicos, rabinos, clérigos muçulmanos e guias espirituais das numerosas crenças e seitas existentes são os representantes naturais das incontáveis comunidades religiosas, maiores ou menores, instaladas em mais de uma centena e meia de países do globo terrestre. Pouco ou muito influentes, de acordo com a quantidade de seus seguidores, essas coletividades se inserem basicamente no contexto de regras e de leis emanadas e exercidas pelo poder do Estado.

Nos regimes democráticos, todos são livres para a prática de sua religiosidade, um direito constitucional que muitas vezes se confunde com outras formas de levar adiante o exercício da liberdade e da cidadania. Muitos resvalam nesse terreno escorregadio e pouco iluminado onde nem sempre é fácil manter uma autonomia que propicie conciliar a liberdade individual com a igualdade social, distinguir conceitos de pessoa e de comunidades, separar os valores éticos pessoais dos princípios públicos aceitáveis, compatibilizar os direitos individuais com o bem da sociedade.

Dadas as sutilezas que rondam o tema e a existência de uma legislação severa no que possa ser entendido como manifestação preconceituosa ou intolerância religiosa, raros são os profissionais da mídia que se animam a emitir algum tipo de opinião sobre o assunto, limitando-se ao registro das notícias e às declarações dos envolvidos. A lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997, estipulou pena de reclusão de um a três anos, acrescida de multa, para quem “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Laicidade estatal

Frente à possibilidade de ferir suscetibilidades e dessa forma correr o risco de infringir, muitas vezes de forma incauta e ingênua, a delicada fronteira que separa o admissível do não aceitável, jornalistas e empresas de comunicação, sem abdicarem da liberdade de informação, se rendem à prudência e ao cuidado no trato das palavras e da composição das frases – incluso o uso providencial das aspas – quando a notícia combina vida pública e religiosidade.

O Estado laico e pluralista não impõe nenhuma religião, respeita todas e se mantém imparcial diante de cada uma delas. A afirmação é do teólogo Leonardo Boff, 73 anos, doutor honoris causa em Política pela Universidade de Turim, na Itália. Para o ex-franciscano que vive em Petrópolis, professor emérito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), essa imparcialidade não significa desconhecer o valor espiritual e ético de uma confissão religiosa. “Ao entrar no campo político e ao assumir cargos no aparelho de Estado, não se pede aos cidadãos religiosos que renunciem as suas convicções religiosas. O único que se cobra deles é que não pretendam impor a sua visão a todos os demais nem traduzir em leis gerais seus próprios pontos de vista particulares”, escreve Boff. Para o teólogo, a laicidade obriga todos a exercer a razão comunicativa, a superar dogmatismos em favor de uma convivência pacífica e, diante dos conflitos, buscar pontos de convergência comuns. Nesse sentido, a laicidade seria um princípio da organização jurídica e social do Estado moderno (“O Estado laico e pluralista e as igrejas”, em 05/11/2010).

No caso de exposição de imagens e símbolos religiosos em repartições públicas brasileiras, fato observado principalmente nos fóruns e tribunais de Justiça, o Ministério Público Federal, seção São Paulo, ajuizou uma ação civil pública, em 2009, no sentido de retirar todos os símbolos religiosos afixados em locais de atendimento ao público nas repartições federais localizadas no estado. Na justificativa protocolada pelo procurador regional dos Direitos do Cidadão, Jefferson Aparecido Dias, é lembrado o princípio da laicidade estatal, a liberdade de crença e da isonomia, destacando que o símbolo religioso ostentado em local público demonstra uma “predisposição” para a religião que tal símbolo representa.

Símbolo muçulmano

Um ano depois, em agosto de 2010, essa ação foi indeferida pela juíza federal Maria Lúcia Lencastre Ursaia, que decidiu, em caráter liminar, que a presença de símbolos religiosos em prédios públicos não ofende os princípios constitucionais da laicidade do Estado nem da liberdade religiosa. Em seu despacho, a juíza considerou natural a presença de crucifixos em espaços públicos nacionais, em razão da formação histórico-cultural cristã do povo brasileiro. Segundo ela, para os agnósticos ou pessoas de crenças diferenciadas, esses símbolos nada representam, “assemelhando-se a um quadro, escultura, adereços decorativos”. A magistrada ainda destacou, em sua exposição de motivos, um dado dos mais importantes: o de que não há, no ordenamento jurídico brasileiro, qualquer proibição para o uso de qualquer símbolo religioso em qualquer ambiente de órgão do Poder Judiciário.

Em março de 2011, em prosseguimento a esse processo da Procuradoria Geral dos Direito dos Cidadãos, foi a vez do cardeal arcebispo de São Paulo, dom Odílio Scherer, testemunhar a favor da manutenção dos símbolos religiosos nas repartições públicas. Em depoimento no Tribunal Regional Federal, ele disse não acreditar que um determinado símbolo religioso possa ser ofensivo a quem não professa aquela fé, conforme alegação do autor do pedido da ação, o engenheiro Daniel Sottomaior Pereira, que se declara ateu: “O fato de a maioria da população ser católica (73%, de acordo com o censo de 2000) culturalmente justifica a presença desses símbolos cristãos”, afirmou o cardeal. O religioso também considera legítimo o Estado custear a manutenção dos símbolos religiosos em suas repartições “em respeito aos anseios dos representados”.

Segundo a reportagem de Keila Cândido, publicada na revista Época em 15/03/2011 (“Dom Odilo depõe na Justiça Federal a favor dos crucifixos nas repartições públicas”), apesar de o cardeal defender a exposição de crucifixos em locais nobres, como plenários, ou em áreas de atendimento ao público, como salas de espera e saguões de entrada, ele reconheceu que a presença de um símbolo muçulmano em um hipotético julgamento “poderia causar preocupação em virtude da inexistência de uma tradição muçulmana no Brasil”.

Pluralismo religioso

No Rio de Janeiro, o atual presidente do Tribunal Regional Eleitoral, o desembargador Luiz Zveiter, também causou controvérsia quando, no exercício da presidência do Tribunal da Justiça do estado (2009/20010), mandou retirar o crucifixo que estava na sala principal do órgão e transformou a capela existente em um espaço de culto ecumênico. De origem judaica e grão-mestre da Grande Loja Maçônica do Estado do Rio de Janeiro por dois mandatos, a atitude de Zveiter agradou à maioria dos 25 desembargadores do Tribunal, muitos deles evangélicos e espíritas. É o que informavam, em matérias similares, os jornais O Globo e Extra, em 06/02/10 (“Retirada de crucifixo provoca polêmica no TJ”), acrescentandoque as medidas comemoradas pela maioria foram vistas “com cautela pelo representante da arquidiocese do Rio”. Restrita à sala do Órgão Especial, a ação não atingiu os juízes dos tribunais, que continuaram com autonomia para manter ou retirar as imagens referentes à sua religião.

Dois anos depois, o ex-desembargador do Tribunal de Justiça do Rio e ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luiz Fux, instalou um símbolo religioso em seu gabinete, em Brasília. Indicado pela presidente Dilma Rousseff, em fevereiro de 2011, para compor a suprema corte do país, o jurista carioca de ascendência judaica colocou uma mezuzá (umbral, em hebraico) na porta de sua sala de trabalho no STF. Constituindo-se em um pequeno estojo que abriga em seu interior um pergaminho que contém duas passagens bíblicas manuscritas em hebraico, o artefato é colocado no umbral direito da porta com a função de proteger as pessoas que habitam aquele local e evitar infortúnios.

O respeito à religiosidade também marcou a sentença do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, na liminar que suspendeu a decisão do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) que impedia os juízes do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ) de aceitarem pedidos de adiamento de audiências em virtude do feriado judaico do “dia do perdão” (Yom Kippur). A regra vigorava desde 2006, por recomendação do Conselho de Magistratura do TJ-RJ, com a condição de não prejudicar as partes processuais. Para o ministro, “o fato de o Brasil ser um Estado laico não é obstáculo à compreensão, presente a vida em sociedade, presente o respeito que a Carta da República encerra, como princípio básico, à crença religiosa”. Ainda segundo Marco Aurélio, em momento algum o Tribunal do Rio “adentrou a seara da normatização, constituindo-se o ato em simples recomendação” (Última Instância – notícias jurídicas, de 18/05/2011).

“Identidade do eu”

A religiosidade na vida pública é defendida pelo papa Bento 16, para quem “a religião não é um problema que os legisladores devem solucionar, mas uma contribuição vital para o debate nacional”. Em 2010, na visita que fez a Londres, o papa demonstrou preocupação com o que classificou de “crescente marginalização da religião, especialmente do cristianismo, em alguns lugares, inclusive em nações que outorgam uma grande ênfase à tolerância”. Falando no Westminster Hall do Parlamento britânico, Bento 16 afirmou que “há alguns que desejam que a voz da religião se silencie ou pelo menos que se relegue à esfera meramente privada”.

Em encontro com representantes do mundo político, social, acadêmico, cultural e empresarial da Inglaterra, o pontífice exortou os cristãos que desempenham um papel público a não agirem contra a sua consciência, ainda que muitos sustentem que, às vezes, com a intenção de suprimir a discriminação, lancem mão do uso da razão prática. O papa lembrou que os princípios éticos nos processos democráticos não devem ser regidos apenas por meros consensos sociais, pois resultarão em estruturas frágeis. “Sem a ajuda corretiva da religião, a razão pode ser também presa de distorções, como quando é manipulada por ideologias”, sublinhou. “O papel da religião consiste justamente em ajudar a purificar e iluminar a aplicação da razão à descoberta de princípios morais objetivos” (Zenit – agência de notícias católicas, em 17/09/2010).

De acordo com os mais recentes estudos de contextos sociais, nas sociedades modernas as pessoas têm de assumir e cumprir diferentes papéis em diferentes domínios da vida (família, cidade, classe, nação ou povo) que podem entrar em conflito uns com outros. A questão que se apresenta é de como a pessoa que se sente pertencendo a uma comunidade familiar e religiosa pode permanecer sendo a mesma e única pessoa diante de visões e exigências contrárias. De que maneira é possível conciliar a “identidade do eu” – que está vinculada de maneiras diversas a várias comunidades e associações constituídas – com a pessoa “sujeito de direito” de uma comunidade política de normas jurídicas.

Motivos de polêmica

A separação entre os princípios universais e as concepções éticas privadas, com a priorização do justo e imparcial, é defendida pelo filósofo norte-americano Thomas Nagel (The Possibility of Altruism, 1970). Professor de Filosofia e Direito na Universidade de Nova York, Nagel, de 73 anos, julga imoral forçar alguém a compartilhar um fim sobre o qual não está convencido, mesmo quando a pessoa que exerce essa imposição esteja convicta de que isso seria vantajoso para o outro. “É ilegítimo recorrer à verdade de uma concepção ética para justificar uma coerção jurídica.” Nagel defende que as pessoas tenham um padrão elevado de objetividade ao assumirem um ponto de vista “universal” e “impessoal” e que procurem distinguir o que é “crença pessoal” e “verdade”, mesmo diante de suas próprias convicções éticas.

A respeito, o alemão Rainer Forst, 47, doutor em Teoria Política e professor na Universidade Goethe, em Frankfurt, ressalta que existe uma diferenciação entre a pessoa de direito e a pessoa ética. “Preceitos jurídicos e normas morais têm a pretensão de serem válidos para todos, não importando as concepções éticas que as pessoas adotem. Em contraposição, os valores éticos são válidos apenas para os indivíduos que se identificam com esses valores como parte de suas identidades e de sua história pessoal.”

Na obra Contextos da Justiça (1994), Forst assinala que o Direito deve ser eticamente “neutro” em seu modo de validação, a fim de que ele mesmo não prescreva determinados “valores” como bens superiores que não podem ser justificados de modo recíproco e universal. Ele chama a atenção para o fato de que uma comunidade política somente pode ser integrativa num sentido abrangente quando ela não absolutiza política e juridicamente uma determinada tradição ético-cultural.

A neutralidade ética do Direito também é sustentada pelo norte-americano Bruce Akerman, 67, conceituado professor de Direito Constitucional e Ciências Políticas da Universidade de Yale (Connecticut, EUA). Na obra Social Justice in the Liberal State (1980), ele assinala: “Nenhuma razão é uma boa razão quando exige que o dono do poder afirme que sua concepção do bem é melhor ou superior do que qualquer outra afirmada por seus concidadãos.”

Em tempo: a presidente brasileira Dilma Rousseff – que estudou em escola de freira e assume que é católica –, em sua primeira semana no Palácio do Planalto também foi motivo de polêmica ao retirar de seu gabinete o crucifixo e a bíblia. No dia seguinte à notícia, a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) informou que o crucifixo pertencia ao ex-presidente Lula, que o havia recebido de um artista português, logo no início de seu mandato. Em relação à bíblia, a nota à imprensa afirmava que o livro permanecia em uma sala contígua ao gabinete, sobre uma mesa, onde a presidente a encontrou ao chegar ao palácio.

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Jornalista, Rio de Janeiro, RJ