Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

‘Quem compreende mal a arte, compreende mal a si mesmo’ – Freud

Quase 90% dos brasileiros não vão aos museus, dizia uma pesquisa em 2010. Os índices melhoram um pouco em 2017, mas não muito (81% não frequentam museus, 92% preferem a tevê e outras mídias). O que nos leva a questionar a relação do brasileiro com a Arte, com este conhecimento tão importante para a compreensão do que somos, não só como brasileiros, mas como seres humanos.

As polêmicas envolvendo as quatro obras do “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, em Porto Alegre em meados deste 2017, ou mesmo a acusação descabida de pedofilia dentro do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), revelam não só uma incompreensão da Arte, mas uma incompreensão do que somos como sujeitos históricos, pois ao censurarmos a Arte, limitamos nossas capacidades cognitivas e de revisão/revolução da História.

Obra “Las Meninas”, de Diego Velázquez, em 1656 (Crédito: Diego Velázquez/Domínio Público)

Velázquez e as Meninas dos Olhos

Há uma lapidar pintura de Diego Velázquez que parece nos revelar o poder da arte, sua potencialidade e sua capacidade de nos dar motivos para reflexão além da vida comum, das discussões comezinhas, dos argumentos rasos que circulam nas mídias sociais ou na grande mídia.

A pintura é conhecida como “As Meninas” e fora terminada em 1656, em pleno Barroco espanhol. Nesse maravilhoso quadro barroco há muito o que aprender, e um dos aprendizados, um de seus motivos, é: a assertiva de que a arte é pura provocação à alma. Se a alma é pequena, não há olhos para a Arte, pois ela não se revela.

O quadro é uma incitação à inteligência, uma convocação para espíritos livres. Os traços e cores em contraste típicos do Barroco mostram o culto dos  opostos, o jogo antitético, em que a luz e o branco das crianças brincam com o escuro e preto das vestimentas dos adultos. A mãos e a testa iluminadas do pintor-personagem do quadro revelam que a iluminação está no fazer (mãos, na sensibilidade) e na razão (testa, cabeça). Mas o centro da tela não é a menina, a infanta, a princesa, filha do Rei Felipe IV. O centro do quadro está fora dele: está nos olhos do espectador. Velázquez foi genial ao pintar este quadro, pois o centro  é o paradoxo que ele nos coloca. O paradoxo da reflexão do papel da arte naquele que a lê. Assim a Arte se nos revela (paradoxo central e maior).

O centro de tudo, portanto, é o leitor dialógico, que dialoga e interage, e não o mero espectador de tevê que apenas recebe passivamente o conteúdo mastigado (sem sequer aprofundar a reflexão). A arte nos cobra dialogismo, a tevê nos dá conformismo.

Ler Arte, é compreender a si mesmo. Freud explica

Um primeiro exemplo de que arte é provocação ao espírito encontramos em Sigmund Freud, que era um grande analista de arte. Gostava e gastava tempo lendo Sir Conan Doyle, por exemplo, autor de Sherlock Holmes. E muito do que Freud usou na “Interpretação dos Sonhos” (1905) ou para formular o conceito do “Complexo de Édipo” foi retirado da Literatura, portanto, da Arte. Está em Freud a frase psicanalítica mais contundente que se possa ler sobre o que é a Arte: “Quem compreende mal a arte, compreende mal a si mesmo”. A sentença é acachapante, pois mostra que compreender vai muito da curiosidade do leitor de um livro, da argúcia do espectador de uma tela, da coragem da plateia de teatro, ou da reflexão de quem assiste um filme, ou na opinião de quem vê tevê, ou interage em redes sociais. Já que Arte só o é aos olhos de quem lê com vivacidade.

Arte é reflexão e lucidez!

Um segundo exemplo, está em um dos mais cruciais pensadores do século XX, Michel Foucault, que no primeiro capítulo do livro “As palavras e as coisas” (1966) analisa a pintura de Diego Velázquez. E ao analisar, Foucault nos dá duas sentenças primorosas:

1) “Olhamos um quadro de onde o pintor nos contempla”, esta sentença lapidar de Foucault, nos mostra que o ponto de fuga do quadro está fora dele. O quadro de Velázquez quebra a “quarta parede” – termo usado no teatro, para chamar o espectador para a interação com a peça. A quebra da “quarta parede” em uma pintura é mais sutil para o leitor desatento. Talvez ele nunca note que as figuras centrais do quadro estão no espelho ao fundo da tela de Velázquez. São as silhuetas de um casal, provavelmente o rei e rainha da Espanha.

Mas o quadro nos instiga mais do que programas de tevê

O rei e a rainha estão fora do plano do quadro, estão no lugar do contemplador da tela. Estão fora da peça, estão fora da tela. Ou seja, o rei e a rainha são os olhos do espectador (ou “Expectador”, pois está externo à tela), do leitor, daquele que sabe ler a vida na arte e arte na vida. Por isso, olhamos um quadro em que o pintor nos contempla, pois ele nos incita a pensar. E existe contemplação maior na arte quando ela nos incita a pensar, a sentir e a viver outros planos? Não há, porque Arte é reflexão e lucidez atemporal.

2) “O pintor só dirige seu olhar para nós na medida que nos encontramos no lugar de seu motivo”, esta outra sentença do pensador francês, a qual mostra que o quadro está nos chamando para o diálogo, para o DIALOGISMO, já que é a tela que nos olha. Já que é ela que ganha vida em nossos vivos olhares. Porque um objeto sem a curiosidade, a coragem investigativa ou a reflexão do leitor não é uma obra de arte, mas apenas um objeto inanimado.

O motivo da Arte no Brasil

Sabemos que brasileiros leem pouco. É apenas a décima atividade em uma lista de lazeres. Preferimos ficar na TV, na Internet, no WhatsApp, no Instagram e no Facebook, antes de ler um livro ou visitar um museu. Ou seja, não se pode esperar muito do brasileiro que só assiste TV como crítico de arte. Por isso é importante não nos perdermos em motivos toscos, mesquinhos, morais, superficiais e rasos, como quer qualquer grupelho incitador de ódio e ignorância.

A arte incita a reflexão, a sensibilidade e a inteligência. Faz o homem questionar seus valores morais e históricos. Provoca a alma. Nos convida para uma ética da reflexão e da interação. A arte faz parte de uma espécie de “Humanismo da Alteridade”, diria Augusto Ponzio, pensador italiano que escreveu “A Revolução Bakhtiniana” (Editora Contexto, 2008), pois nos coloca em contato com outras perspectivas, outros modos de ver, outros modos de viver (“alter“, do latim, quer dizer “outro”). Melhorando assim nossa humanidade. Pois a arte nos alarga o modo de ver.

Falar de motivos no Brasil é fácil, se ele for gerido pelo ódio, pela ignorância, aí nem precisa juntar todos os motivos, pois um já nos bastaria e nos encerraria.

Contudo, se formos falar de arte, basta um único/outro motivo para sairmos do ódio: o uso da inteligência em benefício do aprimoramento do convívio social.

Basta saber ler e estar eticamente aberto ao diálogo, saber interagir da “quarta parede”.

Pois “As meninas” do quadro de Velázquez não são as meninas pintadas, entretanto são as meninas dos olhos do espectador atento e sem preconceitos e ódios, mas livre.

Para tanto, procurar saber o porquê da Arte já seria um bom motivo. E ele paradoxalmente nos bastaria.

Ou como diria o poeta: “A arte existe porque a vida não basta.”

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Fabrício César de Oliveira é doutor em Linguística e Filosofia da Linguagem pela Universidade Federal de São Carlos.