Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Luciana Coelho

‘Uma produtora da TV a cabo Fox News abriu processo por assédio sexual contra o principal âncora da emissora conservadora, Bill O’Reilly, a quem acusa de forçá-la a manter conversas de teor sexual por telefone. Anteontem, o jornalista anunciou que está processando sua acusadora, Andrea Mackris, e o advogado dela, Benedict Morelli, acusando-os de extorsão. Ambos os lados exigem indenização.

‘A fama faz de você um alvo’, disse O’Reilly em seu programa. ‘Os advogados da Fox News têm sido ótimos em lidar com situações assim, mas tem uma hora que chega. Nesta manhã [quarta-feira], abri um processo contra pessoas que estavam exigindo US$ 60 milhões sob pena de ‘punir’ a mim e à Fox News.’

Mackris, 33, retomou seu posto de quatro anos na produção de ‘The O’Reilly Factor’ em julho, após passagem pela CNN.

Segundo a produtora, em conversa telefônica em agosto, O’Reilly, 55, sugeriu que ela comprasse um vibrador ‘para aliviar a tensão’, num tom descrito como ‘claramente excitado’. Em setembro, o apresentador disse à funcionária, por telefone, que ela deveria ir a seu quarto de hotel, concluindo: ‘Vamos fazer isso acontecer’. Em outra ocasião, ele descreveu fantasias sexuais.

O’Reilly admite ter bebido ‘coquetéis’ com Mackris e assistido a uma entrevista coletiva presidencial a sós com ela em seu quarto de hotel. Ele nega que a tenha assediado ou a ‘tocado de maneira ofensiva’.

‘Não há nada mais que eu possa dizer. O caso cabe à Justiça. é uma vergonha viver em um país onde coisas assim acontecem’, disse O’Reilly em seu programa.

Segundo a acusação, a produtora disse ao âncora não ter interesse em sua oferta e afirmou ter caído em uma ‘armadilha’ após o primeiro telefonema. O advogado Ronald Green alega que Mackris nunca se queixara do comportamento de seu cliente à Fox News. A acusação afirma que O’Reilly ameaçou a produtora caso se manifestasse.

O âncora também afirma, em seu processo, que Mackris e Morelli ‘estão tentando constranger publicamente a ele e à Fox News’ a três semanas da eleição presidencial. O’Reilly é uma das vozes mais eloqüentes da TV a favor do presidente George W. Bush e acusa Morelli de contribuir com o Partido Democrata. O advogado nega que o processo tenha relação com seu voto.’



ECOS DA GUERRA
Dexter Filkins

‘O país onde repórteres são caça permitida’, copyright O Estado de S. Paulo / The New York Times, 17/10/2004

‘Nos 19 meses desde quando as tropas americanas cruzaram a fronteira do Iraque pela primeira vez, esse país foi muitas coisas para muita gente: guerra necessária, projeto de democracia, atoleiro sem fim. No entanto, para as dezenas de jornalistas que tentam dar sentido a este lugar, o Iraque é sobretudo um país em processo de encolhimento.

Vila a vila, quarteirão a quarteirão, a terra vasta e desafiadora em que entramos em abril de 2003 virou uma Cidade-Estado medieval terrível e tensa. Em certos dias, parece que estamos todos amontoados numa única sala, agarrados a nossos notebooks e vigiando a parede.

O que quero dizer, é claro, é que a atividade jornalística no Iraque virou um assunto terrivelmente truncado, um empreendimento cerceado e limitado pela violência em toda parte. Se os militares americanos têm suas zonas de ‘entrada proibida’, locais para onde eles não mais enviam tropas, nós da imprensa temos as nossas: não só Faluja e Ramadi, mas também Tikrit, Mossul, Mahmudiya e grandes partes de Bagdá. Mesmo em áreas da capital ainda consideradas relativamente seguras, pouquíssimos repórteres ainda são atrevidos o bastante para sair de um carro, caminhar e parar pessoas aleatoriamente.

A maioria de nós tem seu estoque de ocasiões em que escapamos por pouco para nos lembrar de como as ruas daqui se tornaram perigosas. Para o recém-chegado, há o vídeo dos dois repórteres franceses, seqüestrados e implorando por suas vidas, e a lista, atualizada regularmente, dos 46 repórteres mortos enquanto faziam seu trabalho.

Não foi pouca surpresa, então, testemunhar a reação a uma mensagem eletrônica escrita por Farnaz Fassihi, uma repórter no Iraque do The Wall Street Journal, que deveria ser uma carta particular a amigos, mas chegou à internet e à grande audiência. Várias reportagens de Fassihi para o jornal descreveram em detalhe o estado caótico e incerto no qual este país mergulhou. Mas sua descrição das próprias condições de trabalho, do limitado e perigoso mundo no qual ela opera hoje, chocou muita gente.

Parte do fascínio pela mensagem de e-mail de Fassihi pode residir em sua natureza pessoal; uma coisa é uma repórter descrever um país em anarquia, outra – muito mais imediata e palpável – é a mesma pessoa dizer que não consegue sair do quarto do hotel por medo de ser morta.

Parte da surpresa também pode residir na suposição, agora estranha, de que repórteres são considerados neutros em conflitos armados, de que eles estão lá para registrar o evento para a História. No Iraque, isso não é verdade há vários meses. Para muitos rebeldes aqui, e para uma exaltada classe de fanáticos islâmicos, os repórteres ocidentais são caça permitida, são alvos em sua guerra.

Aqui no New York Times, onde não poupamos esforços para nos proteger, a lista de ataques sofridos e outros dos quais se escapou por pouco é longa o bastante para desanimar o mais ousado correspondente de guerra: fomos alvejados por tiros, seqüestrados, vendados, mantidos sob ameaça de faca, mantidos sob mira de revólver, detidos, ameaçados, espancados e caçados. Um nosso correspondente foi vendado e levado num veículo para a periferia de uma cidade na calada da noite por homens armados que o mandaram sair do carro. Em outra ocasião, uma multidão começou a atirar tijolos.

E estes são apenas os atos intencionais. Em qualquer dia por aqui, carros-bomba explodem, tiroteios irrompem e granadas de morteiro caem por perto, nada disso dirigido exatamente contra nós, se é que é dirigido contra alguém. Durante a composição deste artigo, um trabalho de três horas, dois foguetes e três granadas de morteiro caíram perto o bastante para sacudir as paredes de nossa casa.

Em minha temporada aqui, tomei nota de eventos significativos, como o projeto de uma nova Constituição iraquiana e o fim formal da ocupação americana, e tomei nota também de alguns eventos pessoais.

27 de outubro de 2003: atacado por uma multidão.

19 de dezembro de 2003: alvo de tiros.

8 de maio de 2004: seguido por um carro com homens armados.

28 de agosto de 2004: detido pelas Brigadas Mahdi.

O último caso foi instrutivo, pelo menos em relação à dificuldade de se trabalhar aqui. Fui pego por um líder de escalão mediano das Brigadas Mahdi em Najaf, diante do santuário do Imã Ali, enquanto os guerrilheiros de Muqtada al-Sadr ainda saíam. Os combates, supostamente, haviam terminado.’Você é o segundo espião americano que capturo hoje’, vangloriou-se o líder insurgente, levando-me embora.

Descobri mais tarde que o ‘primeiro’ espião americano que as Brigadas Mahdi haviam capturado naquele dia era meu próprio colega, apanhado poucas horas antes. Eu fui solto depois de garantir a outro comandante da milícia que era apenas um jornalista e iria embora. ‘Saia daqui’, disse ele.’



IMPRENSA NO AFEGANISTÃO
Lourival Sant’anna

‘No ar, o telejornal independente’, copyright O Estado de S. Paulo, 13/10/2004

‘Abdul Ahmad Norzad entrou no curso de jornalismo da Universidade de Cabul no início de 2000. Na época, os taleban estavam solidamente instalados no poder, e ninguém poderia imaginar que, daí a dois anos, seriam derrubados por uma coalizão entre os EUA e a Aliança do Norte.

Assim, o horizonte de Norzad era incrivelmente limitado.

Havia no país uma estação de rádio, a Voz da Sharia (lei islâmica), que transmitia orações e aquilo que os taleban considerassem notícia. Era proibido ouvir música. E havia um jornal, o Sharia, um tablóide de quatro páginas sem fotos – que também eram proibidas, seguindo à risca a proscrição islâmica de imagens humanas, razão pela qual eles destruíram as estátuas de Bamiyan, as primeiras a darem forma humana ao Buda, erguidas por volta do século 2.°. Pelo mesmo motivo, televisão também era proibido, e muitos aparelhos foram espatifados pelos taleban.

Mesmo assim, Norzad seguiu sua vocação. ‘Já na época dos taleban eu tinha muita vontade de ser jornalista. Observava os problemas da sociedade e queria poder relatá-los e ajudar as pessoas a refletir sobre eles’, conta o repórter, hoje com 24 anos. Norzad reconhece que isso seria difícil se os taleban tivessem continuado no poder. ‘Naquela época não havia liberdade.

Ninguém podia contar os fatos.’ Quando os taleban caíram, Norzad estava no segundo ano de jornalismo.

Há seis meses, o jornalista ouviu no rádio que uma emissora de TV independente ia entrar no ar e estava procurando repórteres. Norzad, que já tinha trabalhado no Kabul Times Weekly, um tablóide bilíngüe de 12 páginas, levou seu currículo e foi selecionado – entre outros quesitos, por falar inglês, além de dari e pashto, as três línguas em que a TV Afegã transmite seus noticiários.

Os estrangeiros não são muitos no Afeganistão, mas seu poder aquisitivo atrai anúncios. Depois de seis meses de testes, a emissora foi ao ar há uma semana, nas vésperas da eleição presidencial do dia 9.

‘Nunca imaginei que fosse acabar na televisão’, sorri Norzad, um dos quatro repórteres da emissora – dois em Cabul, um em Kandahar (sul) e outro em Herat (nordeste). ‘Os afegãos gostam muito de televisão’, diz ele. ‘A maioria não sabe ler e a TV, com o rádio, é o meio ideal para eles. A TV é melhor ainda, porque eles podem ver os fatos.’ O analfabetismo acima dos 15 anos abrange 49% dos homens e 79% das mulheres, segundo relatório de 2003 do Fundo Monetário Internacional.

Nenhum resquício de hostilidade contra a TV, entre os que confiavam na leitura que o Taleban fazia do Islã? ‘Quem pensa dessa forma vive afastado.

Na cidade, não há esse problema’, garante o repórter. ‘Não creio que haja afegãos que sejam contra a TV’, diz Abdul Rahman Panjshiri, diretor de Planejamento da TV Afeganistão, a tradicional emissora estatal, que transmite em dari e pashto, as duas principais línguas do país. ‘Todo mundo gosta de assistir.’ Se fotografia servir de parâmetro, então os afegãos adoram imagens.

Eles não só permitem como pedem para ser fotografados, tanto nas cidades quanto na zona rural. E agradecem depois, mesmo sem saber que podem ver o resultado nas câmeras digitais; apenas por se sentirem bonitos, ou importantes, quando fotografados.

‘Eles’, bem entendido, refere-se aos homens e às crianças. Não ouse fotografar uma mulher sem autorização expressa do homem que a estiver acompanhando. A reação pode ser violenta.

Mas já há até uma TV Mulher entre as várias emissoras que estão surgindo no país, graças a um decreto do presidente Hamid Karzai autorizando canais de televisão e emissoras de rádio privadas. Há 35 emissoras de rádio no país e dezenas de jornais em formato tablóide, vários deles com uma parte em inglês e outra em idioma local.

Há uma semana, surgiu em Cabul a Tlo (Amanhecer), que, como a TV Afegã, pretende viver de anúncios publicitários. A TV estatal é considerada pró-governo. Mas as outras, pertencentes a empresários, querem construir uma imagem de imparcialidade.

O horário de transmissão, por enquanto, é escasso. A TV Afegã transmite das 17h30 às 21h30 e a estatal, das 14h às 23h. É bem verdade que, onde existe serviço público de eletricidade, ela não dura muito mais que isso. A programação é recheada de filmes, novelas e videoclipes indianos e iranianos. Panjshiri, que nunca ouviu falar das novelas brasileiras, conta que acaba de fechar a compra de seriados japoneses. Também está recebendo ajuda da TV holandesa para produzir um programa de notícias para crianças.

A precariedade é grande. Os estúdios não têm teleprompter, e os apresentadores têm de ler no papel. Os telejornais de meia hora por dia em cada língua são os únicos programas ao vivo. As transmissões ao vivo de fora dos estúdios, via internet, são raras. Não há links por satélite.

Entretanto, os profissionais não se queixam. A época em que o seu ofício estava banido é recente demais. ‘Os taleban são o período mais obscuro de toda a história do Afeganistão’, diz Panjshiri, que se exilou na Holanda durante o regime (1996-2001). ‘Ninguém deve jamais esquecer aquela época.’’



INGLATERRA
O Globo

‘Imprensa inglesa: mercado bom para alguns, péssimo para outros ‘, copyright O Globo, 18/10/2004

‘Enquanto a News International, empresa que controla os tablóides Sun e Times, planeja construir novos parques gráficos, investimento que vai custar cerca de US$ 1 bilhão, a Trinity, controladora do Daily Mirror, tem planos de demitir pessoal e unir as redações que produzem o tablóide e sua versão dominical. Neste final de semana, o porta-voz da Trinity negou que essa fusão das equipes esteja prestes a acontecer, mas sabe-se que os acionistas estão pressionando para que os custos sejam reduzidos.

Em julho passado, a controladora do Mirror anunciou que tinha a intenção de reduzir suas despesas entre US$ 10 milhões e US$ 70 milhões para o próximo ano. Recentes pesquisas apontaram a perda de 27 mil leitores do jornal só no mês de setembro.

Como o Mirror, o Sun registrou queda de circulação em agosto. Entretanto, sua versão dominical, o News of The World, teve um aumento de quase 4% nas vendas.

A Trinity prevê a construção de novos parques gráficos em Londres, Glasgow e Liverpool, para dar mais agilidade na distribuição dos jornais e melhorar a qualidade de impressão.’



ENTREVISTA / JUAN LUIS CEBRIÁN
Adelino Gomes

‘JUAN LUIS CEBRIÁN’, copyright Publico (www.publico.pt), 15/10/2004

‘PÚBLICA – O jornal, tal qual o conhecemos, vai acabar?

JUAN LUIS CEBRIÁN – Não gosto de fazer previsões. O jornal como o conhecemos é um produto do século XIX. Vai continuar. Mas ele corresponde, na sua configuração actual, à arquitectura da sociedade industrial, da democracia representativa. Penso que os jornais já estão a mudar. Todos publicavam, por exemplo, a cotação das bolsas. Ora, ninguém que jogue na Bolsa precisa de ler o jornal para saber as cotações: vai ao telemóvel ou à Internet. Assistimos, portanto, a uma transformação dos jornais. Mas eles não vão desaparecer.

P – Nem o suporte papel?

R – Pelo menos vai transformar-se. O suporte electrónico irá tomando posição, mas não creio que o papel desapareça necessariamente. [Mas] A verdade é que as tiragens não aumentam e os jornais vêem-se obrigados a vender outras coisas: discos, filmes…

P – E isso é jornalismo?

R – Não. Mas é um sistema de distribuição de bens e serviços, diferentes da informação, formidável, capaz de pôr muitos objectos à disposição de muita gente em muito pouco tempo. Com a vantagem de se basear em algo que é próprio dos jornais e garantia da sua sobrevivência: a relação de confiança dos leitores. Isso é difícil de perceber no suporte electrónico.

P – É de esperar então que o jornal vá abandonando o papel, e que o jornalismo (escrito) se transforme em mais alguma coisa com notícias lá dentro?

R – O suporte papel não é muito importante nisto tudo: tanto faz que seja papel ou electrónico, se a configuração gráfica for a mesma.

P – Qual é a experiência do ‘El País’ ao passar a cobrar o acesso à edição digital?

R – Boa. Temos cerca de 40 mil assinantes na rede. Operamos combinadamente: o subscritor do papel é subscritor da rede, e vice-versa. Já há muitos jornais, em Espanha e no estrangeiro, que podem ser lidos na rede ou impressos para depois serem lidos em locais longínquos, onde dantes não chegavam, e agora podem ser impressos. Hotéis, por exemplo. Quero dizer com isto que a ideia do jornal tradicional vai desaparecer. As notícias que os jornais davam já as pessoas as conhecem. Dantes, a televisão não marcava a agenda informativa. Agora a CNN, a Fox, a CBS News marcam a agenda informativa. Ainda não vimos os efeitos da Internet. Pode demorar mais 10 ou 20 anos. A imprensa foi inventada em finais do século XV e só 300 anos depois apareceu algo semelhante a um jornal moderno.

P – O que vai ser esse jornal do futuro, no plano dos conteúdos?

R – Não vai ser um jornal, mas algo que começa a ser um elemento mais de reflexão e, por conseguinte, de gestão de conhecimento, mais do que de informação. Esta é uma ‘commodity’ [mercadoria], está em toda a parte, toda a gente a conhece. A destruição das torres gémeas de Nova Iorque vi-a eu em directo na televisão muito antes de muitos habitantes de Nova Iorque, que estavam a dormir àquela hora. [Isto implica que] A função do jornal vai mudar. Vão mudar o aspecto formal e o sistema de distribuição, como já mudaram os sistemas de impressão. O jornal vai ser cada vez menos central na configuração da opinião pública.

P – Que efeitos vão ter todas essas mudanças nos jornalistas?

R – Já estão a ocorrer. Se olharmos os espaços da ‘television basura’ [telelixo], é frequente ouvirmos muitos dos seus apresentadores dizerem: ‘Somos jornalistas, defendemos a liberdade de informação’… Costumo dizer que se esse senhor ou essa senhora são jornalistas, então eu tenho uma profissão diferente. A profissão de jornalista está a transformar-se e vai transformar-se ainda mais. Penso que essas mudanças ocorrem à medida que vai mudando toda a construção da democracia política burguesa. Ora nem nós nem os partidos políticos nem os governos temos consciência disto. Há uma espécie de gueto constituído por governantes, políticos e jornalistas, o qual não se dá conta de que a democracia representativa ameaça afastar-se da realidade social. Penso que este é um grande desafio. Os ‘media’ adquiriram uma grande posição na mediação social. Por isso os governos têm tanto medo dos ‘media’, que em muitíssimos aspectos são mais importantes do que os partidos políticos. Ao mesmo tempo, há uma desvalorização da política produzida pelos mesmos ‘media’ e pelos mesmos jornalistas.

P – Há três observações críticas que os jornalistas portugueses costumam fazer sobre os ‘media’ em Espanha: o telelixo das televisões; o grande peso da imprensa do coração, que se intromete não só na vida privada como até na intimidade (incluída a TVE); e um controlo sucessivo pelo governo (seja do PSOE, seja do PP) da televisão e rádio públicas. Está de acordo?

R – Com as duas primeiras críticas estou plenamente de acordo. A ‘telebasura’ é uma desgraça mundial, mas em Espanha chegou a extremos verdadeiramente repugnantes. A ‘telebasura’ não é espanhola, é italiana e fundamentalmente [do magnata da televisão e primeiro-ministro] Berlusconi. Uma coisa interessante da televisão de Berlusconi em Espanha é que ganha muito dinheiro. Mas Berlusconi está a ordenhar a vaca e a levar o dinheiro, não está a criar um grupo de comunicação, instituições, etc. Acho que é uma desgraça. Tentei várias vezes fazer promover um debate sobre estas questões, mas é muito difícil porque os políticos têm muito medo dos meios de comunicação. O telelixo está directamente ligado a este excesso do jornalismo do coração, que não é do coração, nem sequer do fígado (como se fazia antes), é do pénis. Na televisão espanhola, a partir de determinada hora da noite, fala-se dos órgãos genitais dos convidados. É uma coisa ridícula, com muito dinheiro à volta, uma enorme falta de critérios e de valores, tudo sob aquele pretexto inadmissível que diz que isso é o que as pessoas querem. As pessoas querem o que lhes dão. Sobretudo quando as possibilidades de opção não são muitas. Costumo lembrar que na Idade Média e no século XVIII também decapitavam as pessoas em público. Se houvesse execuções públicas hoje no Marquês de Pombal ou na Puerta del Sol, provavelmente enchiam. E depois? Parece-me inadmissível.

P – E quanto ao controlo governamental da TVE? A que acrescento a postura muito ligada aos partidos de jornais como por exemplo o ‘El País’?

R – Salvo os públicos, ligados ao governo do momento, nacional ou autonómico, a maioria dos ‘media’ em Espanha, com a excepção dos que apoiam o nacionalismo independentista no País Basco, etc., são de direita. Em Espanha houve um bom jornalismo durante a transição. Mas, com Aznar, deu-se uma invasão total dos ‘media’ públicos e privados por parte do governo. O governo interveio abertamente nas empresas e naquelas em que não podia intervir tentou fechá-las ou arruiná-las, declarando-nos uma guerra total. O ‘El País’ sempre quis ser um jornal plural e independente.

P – Estão, claramente, ao lado do PSOE.

R – Não. Toda a gente o diz, mas não é verdade. O que é verdade é que somos um jornal de centro-esquerda, liberal, não marxista, progressista e que apoia as posições reformistas. Sobretudo na área social. Sempre fomos muito progressistas em temas como o aborto, a prostituição, a homossexualidade, a adopção de crianças. E nisso as posições do jornal coincidem em grande parte com as posições do PSOE. Mas nem somos um jornal do PSOE nem nos sentimos ligados ao PSOE. Independentemente disso, o ‘El País’ e o grupo PRISA foram atacados brutalmente pelo governo Aznar e para nós as políticas de ‘media’ de Aznar não tinham de perdurar eternamente. Mas sentimo-nos livres para criticar o PSOE e [o seu líder] Zapatero e elogiar o PP se eles fizerem alguma coisa que deva ser elogiada.

P – Li uma crítica arrasadora ao seu jornal. Que no ‘El País’ se pode dizer mal de tudo – da Igreja Católica, do Governo, da monarquia. Mas não do El Corte Inglés.

R – Não é verdade. Não é verdade. Mas é verdade que El Corte Inglés funciona muito bem [gargalhadas]….

P – Há um ‘know-how’ empresarial em Espanha que falta em Portugal e que, quando se tentou ir buscar a Espanha, falhou. Porquê?

R – Portugal tem um problema de tamanho. Nesta etapa da globalização, os ‘media’ podem ser pequenos e independentes, podem ser grandes conglomerados. O mais difícil de manter do ponto de vista profissional, técnico e económico, é um tamanho médio. Do ponto de vista da concentração económica, da globalização, Portugal tem uma dimensão que o devia levar a acordos ou alianças com meios internacionais, mas há resistências lógicas por parte dos proprietários.

P – Só deles? Pensa que os leitores aceitariam…?

R – … Nós, no nosso grupo, não queremos que o nosso mercado seja Espanha, mas sim o espanhol. Creio que Portugal tem a grande oportunidade de trabalhar no mercado do português, onde há países gigantescos, ainda que com problemas de desenvolvimento, como o Brasil, Angola. Ou seja, as pátrias são as línguas, não os Estados, os governos, as bandeiras. A pátria da indústria cultural e mediática é a língua. A indústria portuguesa de ‘media’ devia saber que existe essa ‘chance’.

P – Há um grande debate, aqui em Portugal, tornado mais presente pela pedofilia, sobre aspectos relacionados com o segredo de justiça. Um jornalista tem acesso a partes do processo, que lhe são facultadas, eventualmente até por autoridades judiciais, ou pela polícia. Pode/deve ou não divulgar essas informações?

R – Se o processo está em segredo de justiça, a violação do segredo é feita por aquele que entrega o processo ao jornalista, não pelo jornalista.

P – Durante a instrução do processo Casa Pia, foram mostradas aos queixosos fotografias de figuras públicas, entre elas a de um cardeal e de dirigentes partidários, para reconhecimento. O jornal pode/deve dar essa informação, com o nome das entidades em causa?

R – Se essa informação sugere, maliciosamente, que esses senhores podem ser suspeitos de pedofilia, eu acho que é muito perigoso publicá-la.

P – A informação sugere isso, mas constitui, ao mesmo tempo, uma denúncia de uma actuação bizarra por parte das autoridades judiciais.

R – Depende da forma como se publica. É completamente diferente denunciar as autoridades ou insinuar suspeições.

P – Um jornal teve acesso à informação de que surgira uma carta anónima com denúncias contra o Presidente da República. Embora o Ministério Público a tivesse desvalorizado, foi mantida apensa ao processo, o que significa que existe enquanto documento processual. O jornal deve dar essa notícia?

R – Sempre considerei que cartas anónimas não são notícia. Às vezes pode-se confirmar uma denúncia anónima. Mas no jornalismo, em princípio, o anonimato não é credível. Fontes anónimas não são fiáveis. Nem nos processos nem para os jornais. Aliás, um processo desse tipo pode ser provocado pelo próprio jornal: escreve uma carta anónima, para que haja uma carta anónima, para poder publicar que há uma carta anónima…

P – Pode o director de um jornal exigir ao seu repórter, como agora é norma no ‘New York Times’, que lhe revele o nome da fonte, como condição de publicação de uma determinada peça?

R – No ‘El País’, temos essa situação bem regulamentada: o director pode recusar a publicação de uma notícia com fontes anónimas cuja identidade o autor se recusa a revelar se da sua publicação advierem para ele responsabilidades jurídicas. O director pode sempre recusar a publicação de uma notícia porque não quer. É um seu direito enquanto director. Mas só pode perguntar [quem é] a fonte, se da publicação da notícia derivarem para ele responsabilidades jurídicas. Para correr esse risco, ele tem de saber quem é a fonte.

P – Qual é o maior defeito da imprensa hoje?

R – Não gosto de falar no geral. Há boa e má imprensa, bons jornais e jornais maus. Acho que há jornais muito bons. Os defeitos vão mudando com as épocas mas nas sociedades ocidentais o maior defeito dos jornais é ou a sua submissão ao poder ou, às vezes, acreditarem que podem eliminar o poder, e que o poder são eles.’