Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalismo no Peru: é preciso ir além da formação técnica

“A pluralidade de plataformas online oferece mais espaço para diferentes perspectivas das questões relacionadas ao racismo e à identidade”. (Foto: Arquivo Pessoal)

Sharún Gonzales Matute é uma jornalista e pesquisadora peruana. Ela vive nos Estados Unidos e formou-se recentemente em um duplo programa de mestrado em Estudos e Ciências Políticas da América Latina da Universidade do Sul da Flórida. Sharún tem experiência em projetos de desenvolvimento social e organização comunitária no Peru, bem como em pesquisas qualitativas e comunicação corporativa.

Ela é especialista em questões de gênero, povos de ascendência africana na América Latina e comunicação. Seus projetos de pesquisa incluem uma análise do discurso da mídia esportiva peruana sobre racismo e estereótipos e um estudo interseccional das experiências de mulheres de ascendência africana no Congresso peruano. Sharún tem especial interesse nos estudos críticos da mídia e em políticas de inclusão intersetorial. Abaixo, uma entrevista com a jovem pesquisadora sobre jornalismo, com especial ênfase no Peru.

Enio Moraes Júnior – Identidade, racismo e direitos humanos são tópicos importantes em suas pesquisas. Você acha que nos últimos 20 ou 30 anos o jornalismo das plataformas online realmente criou mais possibilidades para discutir essas questões?

Sharún Gonzales Matute – É inegável que as plataformas online revolucionaram o jornalismo de várias maneiras. Uma delas diz respeito a uma “agenda setting” mais ampla. Hoje, há mais espaços do que na mídia tradicional para desenvolver mais temas com maior profundidade. No caso das políticas de identidade e de racismo, testemunhei o crescimento da mídia alternativa focada nesses tópicos. À medida que as mídias sociais se transformam em plataformas para o jornalismo, o Instagram ou o Facebook mostram conteúdos nunca vistos antes. Eu acho que a cobertura dos protestos da Black Lives Matter, nos Estados Unidos, é um ótimo exemplo dessa mudança. Seria difícil imaginar o impacto da disseminação desse tipo de informação em tempo real 20 ou 30 anos atrás. Da mesma forma, a pluralidade de plataformas online também oferece mais espaço para diferentes perspectivas das questões relacionadas ao racismo e à identidade. O YouTube consegue mostrar tudo que a TV não consegue: Black Lives Matter ao longo de All Lives Matter, Red Pill ao Blue Pill. Como jornalistas, vemos nosso conteúdo sendo consumido por públicos com visões antagônicas. De um lado, isso é bom se soubermos tirar proveito disso estrategicamente. De outro, algoritmos e informação em excesso são desafios desse contexto. Por meio de algoritmos, as pessoas podem acessar exclusivamente notícias que alimentam suas ideias e seus preconceitos. Finalmente, informação em excesso pode significar ausência de informação.

EMJ – Você estudou e vive nos EUA há alguns anos. Existem aspectos comuns entre o jornalismo americano e latino-americano na defesa da cidadania e dos direitos humanos?

SGM – Eu percebi desafios semelhantes em relação à abordagem de questões de justiça racial, estereótipos e discurso racista no jornalismo convencional. Isso me faz pensar esses aspectos como questões globais. É importante considerar que fenômenos sociais como racismo, sexismo ou homofobia estão profundamente arraigados em nossa sociedade e instituições, tanto nos EUA como em muitos países da América Latina. Esses fenômenos têm diferentes tipos de manifestação, de acordo com as especificidades históricas, políticas e econômicas de cada país ou região. No entanto, existe uma tendência geral de reproduzir o racismo e a exclusão no jornalismo por meio de antigas e novas fórmulas. Por mais que as plataformas online ofereçam diversidade de perspectivas, o jornalismo convencional continua a incorrer em práticas como a criminalização de pessoas de ascendência africana e a normalização da exclusão estrutural de imigrantes. Este último tópico é interessante de examinar. Há décadas, os EUA têm uma tradição de visões xenofóbicas institucionalizadas que são espelhadas e reforçadas pela mídia. A recente onda de migração de venezuelanos para o Peru provocou visões xenófobas na mídia em relação a essa população. Como a mídia do Peru e dos EUA poderiam adotar abordagens semelhantes à imigração? Isso valeria uma análise mais aprofundada…

EMJ – El Diario de Lima é considerado por muitos autores o primeiro jornal latino-americano. A partir desse marco da história, como você avalia o papel da imprensa peruana na construção de uma identidade latino-americana?

SGM – A imprensa peruana tem desempenhado um papel ambíguo em relação à identidade. Por um lado, enfatiza a mestiçagem entre os povos peruanos. Por outro, reforça estereótipos que dificultam o avanço de uma agenda de reconhecimento. Nesse sentido, o jornalismo peruano contribui para uma tendência de ignorar o racismo na América Latina. Semelhante à “democracia racial” no Brasil, a imprensa peruana adotou um discurso de igualdade entre diversos grupos étnicos e raciais do país que é apenas ficcional. Essa ideia se estende por toda a América Latina e serve para criar uma identidade alheia à marginalização racial. Ainda é difícil combater essas narrativas de exclusão e posicionar a diversidade nos principais jornais.

EMJ – Recentemente você realizou um estudo sobre racismo no jornalismo esportivo peruano. Você observou que, embora a mídia pratique um discurso antirracismo, ele ainda é evidente em páginas de jornais e em sites. Que outros pontos se destacam neste estudo e o que eles dizem sobre a mídia em seu país?

SGM – Essa observação está intimamente relacionada a outras descobertas: os jornalistas não entendem o que é racismo e quando incorrem nele. Isso mostra o quanto é grande o racismo em nosso país. É claro que os jornalistas não são os únicos afetados por essa confusão. A negação do racismo e suas consequências é uma prática bastante forte no Peru. Além disso, os estereótipos reproduzidos na mídia estão relacionados a uma longa tradição de racialização e desumanização de certos grupos, como os povos de ascendência africana. Assim, esses estereótipos são institucionalizados como parte das práticas jornalísticas e discursivas no Peru. É ainda mais desafiador questionar essas ideias quando os jornalistas e editores desconhecem as formas sutis como, no exercício de suas funções e no uso da linguagem, eles perpetuam a institucionalização do racismo na sociedade. O discurso antirracismo na mídia esportiva existe porque é “politicamente correto”. Mas precisamos trabalhar de forma concreta para, de fato, desnaturalizar discursos e estereótipos racistas.

EMJ – Qual o papel do jornalismo local no Peru na consolidação das identidades do país? Há muito o que falar quando se trata dessas mídias alternativas?

SGM – Na minha experiência, vi o jornalismo local assumir um papel ativo no processo social e político em regiões distantes de Lima (capital). Não tenho certeza se isso consolida as identidades do país, mas desempenha um papel na consolidação da cidadania dessas populações geralmente marginalizadas da agenda centralizada em Lima. Ainda é um desafio construir pontes entre narrativas locais e nacionais.

EMJ – Você estudou jornalismo no Peru e tem uma carreira internacional, tendo visitado outros países e participado de eventos acadêmicos no exterior. Como você avalia a formação de jornalistas no Peru, considerando o que viu no mundo?

SGM – Eu acho que os jornalistas peruanos são formados de uma maneira mais técnica. Isso aparece em nosso desempenho, pois a maioria de nós desenvolve grandes habilidades com tecnologias. O problema é quando precisamos refletir sobre nosso papel na sociedade ou no contexto social. Percebi como a maioria dos meus ex-colegas de classe se esforçava para fazer pesquisas acadêmicas, porque nos faltavam as ferramentas analíticas para isso. Durante um intercâmbio acadêmico na Universidade de Coimbra, em Portugal, eu fiquei impressionada com os cursos oferecidos sobre análise crítica do discurso e sobre estudos críticos da mídia. Eu acho que esse treinamento aumentou meu interesse e comprometimento com a pesquisa sobre jornalismo. Em conferências internacionais, o número de pessoas fazendo pesquisas sobre racismo na mídia, tema que ainda é pouco estudado no Peru, chama atenção. Espero que, no futuro, essa lacuna em na formação dos jornalistas peruanos mude. Eu avalio que a reflexão e a autoanálise podem impulsionar o trabalho jornalístico e desenvolvê-lo ainda mais.

Esta entrevista faz parte de uma série sobre jornalismo no mundo, uma iniciativa do pesquisador e jornalista Enio Moraes Júnior, juntamente com o Alterjor – Grupo de Estudos de Jornalismo Popular e Alternativo da Universidade de São Paulo – e apoio do Observatório da Imprensa. A entrevista foi originalmente publicada em inglês. Leia aqui.

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Enio Moraes Júnior é jornalista e professor brasileiro. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (Brasil), vive em Berlim desde 2017. Acesse o portfólio do autor: EnioOnLine.