Monday, 09 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

Alguns pontos sobre a evolução das espécies

O jornalista Michelson Borges fez neste Observatório uma crítica à posição da revista Superinteressante sobre a Teoria da Evolução, de Charles Darwin (ver “Revista desconversa quando o assunto é evolução“). De acordo com Borges, a resposta da revista é um ato de “espalhar tantas ‘pérolas’…” (sic). Borges começa questionando a afirmação da revista de que “O homem não veio do macaco”, mas que claramente o ancestral proposto pelo modelo evolutivo deve de alguma forma, segundo Borges, ter sido “um tipo de macaco”. De fato, nós não viemos dos macacos, nós somos macacos! Caso houvesse um agrupamento biológico definido como “macacos”, certamente estaríamos dentro dele. A espécie humana faz parte da ordem dos primatas, na qual se inserem todos os macacos (ver aqui)!

Outro ponto importante referente aos questionamentos é que as diferenças entre humanos e chimpanzés são inferiores a 2%, considerando o genoma dessas espécies (ver aqui). Ainda nesse aspecto, a paleontologia possui uma lista de 19 espécies de hominídeos, com dezenas de fósseis transicionais e uma série de modelos filogenéticos que explicam bem (de acordo com dados até aqui levantados) nossa ancestralidade (ver aqui). Alegar a inexistência desse tipo de informação indica desonestidade intelectual por parte de Borges.

Vale lembrar ao jornalista que nada dentro do modelo científico é interpretado como “fato estabelecido”. Nós evoluímos de ancestrais primatas, quer pelos meios propostos por Darwin, quer por meios que ainda estamos por descobrir. Não há dúvidas disso dentro da academia, e caso haja, convido o jornalista a indicar a literatura científica que levante essas informações.

Cisão entre modelos

Assim como dividimos um ancestral comum com os primatas, dividimos com as bactérias, moscas, porcos, árvores… Por mais que isso possa parecer surreal, é a base para a biologia moderna. Por isso dividimos similaridades genéticas entre esses grupos, não há contradição alguma nessas afirmações! A universalidade do código genético é apenas uma das muitas evidências desse fato.

A segunda crítica levantada pelo jornalista é que, de acordo com sua visão, a revista não respeita a opinião do leitor. Felizmente, a ciência não é democrática. As pessoas não sentam em uma roda e elegem democraticamente um modelo teórico acerca do formato do planeta, divagando se a Terra é plana, esférica ou circular. As afirmações são baseadas em evidência e não na opinião majoritária, o que nos torna humildes para dispensar nosso senso comum, nossos desejos e vieses, tendendo a uma melhor aproximação da realidade.

Em um terceiro ponto, criando uma cisão inexistente entre supostos modelos de evolução, Michelson Borges questiona qual das evoluções, macro ou microevolução, é um modelo sólido.

Regida por dogmas

Primeiro é necessário definir cada um.

Microevolução são mudanças evolutivas em pequena escala, enquanto macroevolução refere-se ao surgimento de um novo taxon, uma nova espécie por exemplo. No entanto, macro e microevolução são definições vagas, sento utilizadas apenas por questões organizacionais. Diversas características de processos macroevolutivos podem ser previsíveis a partir da microevolução [Mark Ridley, Evolução, Blackwell, 3ª edição. 2003]. Embora Borges afirme que não existem evidências para processos macroevolutivos, a literatura cientifica está repleta deles. Tais como os diversos eventos de especiação – apenas para citar alguns[Bullini, L. and G. Nascetti. 1990. “Speciation by hybridization in phasmids and other insects”. Canadian Journal of Zoology. 68:1747-1760 e Cracraft, J. 1989. “Speciation and its ontology: the empirical consequences of alternative species concepts for understanding patterns and processes of differentiation”. In Otte, E. and J. A. Endler [eds.] Speciation and its consequences. Sinauer Associates, Sunderland, MA. pp. 28-59, Berlocher SH, Feder JL . 2002. “Sympatric speciation in phytophagous insects: moving beyond controversy?” Annu Rev Entomol. 47: 773 – 815, Machado HE, Pollen AA, Hofmann HA, Renn SC (2009). “Interspecific profiling of gene expression informed by comparative genomic hybridization: A review and a novel approach in African cichlid fishes”. Integr Comp Biol 49 (6): 644 – 659, Fan S, Elmer KR, Meyer A . 2012. “Genomics of adaptation and speciation in cichlid fishes: recent advances and analyses in African and Neotropical lineages”. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci 365 (1587): 385 – 394, Ramsey, J., and D. W. Schemske. 1998. “Pathways, mechanisms, and rates of polyploid formation in flowering plants”. Annual Review of Ecology and Systematics 29:467-501, Rice WR, Hostert EE. 1993. “Laboratory experiments on speciation: What have we learned in forty years?” Evolution 47 (6): 1637 – 1653, Dodd, D.M.B. 1989. “Reproductive isolation as a consequence of adaptive divergence in Drosophila pseudoobscura”. Evolution 43 (6): 1308 – 1311, Kirkpatrick M, Ravigné V. 2002. “Speciation by Natural and Sexual Selection: Models and Experiments”. The American Naturalist 159: S22 – S35 e Soltis, D. E. and P. S. Soltis. 1989. “Allopolyploid speciation in Tragopogon: Insights from chloroplast DNA”. American Journal of Botany. 76:1119 – 1124] e o fato de que aves possuem genes para produção de dentes semelhantes aos dentes dos crocodilos! Ou então, o fato do colágeno dos tiranossauros ser basicamente o mesmo que o das aves. Exemplos que refletem as previsões do modelo evolutivo proposto para esses grupos (ver aqui e aqui).

Seria interessante que o jornalista apresentasse a lista de “darwinistas honestos” que admitem suas afirmações.

A Super errou, sim, ao mencionar a ideia de que a suposta religião do leitor possa ter algo a ver com sua crítica ao modelo evolucionista. Mas cá entre nós, qual crítica à evolução não é regida por dogmas e/ou religiosos? Não se trata de desrespeitar as religiões que defendem o criacionismo. O fato é que criacionismo não é ciência, não se encaixa na epistemologia científica moderna e suas críticas não possuem relevância do ponto de vista científico. Na maioria das vezes, os criacionistas buscam falhas pontuais no modelo evolucionista, numa empreitada non sequitur de afirmações do tipo: “Se a evolução não explica isso, logo o criacionismo é a resposta certa!”O que é obviamente néscio.

“Nova teoria”

É difícil descrever a colocação de Eberlin, nas palavras de Michelson Borges, acerca das pesquisas desenvolvidas por C. Darwin. Definitivamente, ou Borges não entendeu o que Eberlin quis dizer, ou nem Eberlin nem Borges leram as obras de Darwin ou qualquer biografia a respeito desse autor. Darwin dedicou décadas de sua vida à pesquisa e coleta de dados no campo. Até mesmo sua obra mais conhecida, A origem das espécies, foi escrita após repetitivos e enfadonhos trabalhos minimamente descritivos acerca do mundo natural.

O criacionismo de Borges, importado dos EUA, é acima de tudo um movimento político ligado aos setores evangélicos estadunidenses. A “Estratégia Wedge”, um documento do Discovery Institute (o coração do Design Inteligente) deixa isso claro. De acordo com o documento, o movimento do Design Inteligente quer “…reverter a sufocante visão de mundo materialista e substituí-la por uma ciência consoante com convicções cristãs e teístas” (ver aqui). Acreditar que o movimento criacionista esteja buscando o aprimoramento científico é ingenuidade. Esse movimento é acima de tudo uma estratégia de estabelecimento de valores cristãos conservadores, que nada têm a ver com biologia.

Embora o autor insista na ideia de que não há evidências científicas para o processo macroevolutivo, essas afirmações não passam de profundo desconhecimento do tema e desonestidade intelectual. A literatura é farta, a evolução e o conhecimento a respeito desse processo permitiu que tudo o mais em biologia fizesse sentido, tornando-a cada dia mais consistente. Diferentemente da pseudociência do criacionismo, que apenas serve aos caprichos da afirmação religiosa de seus proponentes. Não há crime no crer, mas há evidente falha de caráter quando fatos distorcidos são elencados como conhecimento válido, muitas vezes ensinados a escolares.

Já sobre a suposta “nova teoria da evolução”, gostaria de convidar o jornalista Michelson Borges a listar alguns trabalhos científicos, publicados em periódicos indexados, que mostrem os detalhes dessa nova teoria e as bases biológicas dela. Obviamente, essa solicitação será apenas lançada ao vento.

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Adelino de Santi Júnior é biólogo, professor de Biologia e mestre em Ecologia pela Universidade de São Paulo (USP)