Wednesday, 08 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Google, mulheres e preconceito

Uma notícia publicada na seção “Marketing” na revista Exame (18/10) no Brasil levou-me à busca das fontes em inglês daquela informação. A matéria foi originalmente escrita nessa língua e o tema é importante demais para a pobreza que encontrei nas reportagens nacionais: o sexismo e as velhas tiranias praticadas contra as mulheres. Que continuam entre nós neste século, resistentes a todas as transformações e mudanças culturais ocorridas a partir dos anos 1960.

É o que revelam as pesquisas do Google (em inglês) quando o tema da busca é mulher. A matéria foi publicada em sua melhor versão num site inovador e muito pouco comum, o Ryot (18/10). A proposta deles é muito simples: jornalismo e ação. Informe o leitor e aponte a ele meios de intervir na realidade noticiada. Cada notícia é acompanhada por uma indicação de vários tipos de colaboração que o leitor pode dar para opor-se (ou apoiar, quando for o caso) à situação apresentada pelo artigo publicado pelo site.

A reportagem refere-se a uma pesquisa organizada por Christopher Hunt, diretor de arte da Ogilvy & Mather em Dubai, e a ONU Mulheres – que acabou se transformando numa campanha publicitária denunciadora de costumes e hábitos que já não deveriam ter espaço na sociedade contemporânea. A Ogilvy &Mather é uma das grandes no marketing mundial, e envolve-se constantemente em campanhas sociais gratuitas. Hunt e seus colegas resolveram usar o recurso “autocompletar” das buscas do Google para demonstrar a insistência de parte da população em acomodar-se diante da submissão da mulher. Ele usou a palavra “mulher” seguida dos verbos “dever”, “poder” e “precisar” nas buscas. Todos no presente.

Marketing social

Deste modo, a equipe de criação iniciou a pesquisa com os termos “mulheres podem (ou não podem)”, “mulheres devem” e “mulheres precisam”. Os resultados foram surpreendentes. Segundo as buscas realizadas, as mulheres devem “ficar em casa”, “ser escravas” e “falar baixo na igreja”. Mulheres também não devem “votar” ou “ter direitos”. Também não se pode confiar nelas ou deixá-las ocuparem posições importantes na igreja, de acordo com os resultados das buscas. As pesquisas no Google trouxeram à tona uma espantosa quantidade de resultados recheados de misoginia, sexismo e preconceito. Juntos, espelham um ideário que insiste em permanecer entre nós no século 21, como desafio a exigir reação imediata que acabe de vez com tanta opressão.

A mulher também precisa “conhecer e ser colocada em seu devido lugar”, e deve ser “controlada e disciplinada”, dizem muitos resultados das buscas. Hunt trabalha no escritório de Dubai da empresa e acentuou o sexismo brutal encontrado nas pesquisas cobrindo a maior parte dos rostos das modelos das fotos da campanha com vestes muçulmanas que tapam quase todo o rosto das modelos.

Resolvi testar a pesquisa de Hunt. Mudei a configuração de meu navegador para a língua inglesa e usei os mesmos termos de busca que ele. Os resultados foram idênticos: em minha busca encontrei os mesmos preconceitos absurdos e a ignorância brutal que o diretor de arte da Ogilvy & Mather. A reportagem do Ryot mostrou que marketing pode ser muito mais que venda de produtos, ideias comerciais ou espaço para governos preguiçosos e políticos exibirem suas “realizações” marotas. Pode mobilizar, denunciar e apoiar causas relevantes para a humanidade: é o marketing social. A Ogilvy & Mather é a campeã neste campo.

Filosofia simples

Muita gente não gosta quando o Google tenta adivinhar seus pensamentos. Algumas vezes, resultados absurdos são sugeridos e até impostos ao internauta incauto, quando este não nota que o motor de buscas alterou os termos originais da busca e errou ao tentar completar aquilo que o pesquisador tinha em mente. Mas o recurso também acerta e ajuda em pesquisas. Às vezes.

No caso dessa campanha, o recurso “autocompletar” foi instrumental para desmistificar nossas ideias e equívocos sobre a liberação da mulher. O Ryot não gostou dos resultados e disparou:

“Com tanta gente sexista no mundo, talvez seja hora de revisitar e remarcar a ideia de feminismo. Feminismo, como definido pelo dicionário Merriam-Webster, é a crença na igualdade política, econômica e social dos sexos. Não ódio aos homens; não queima de sutiãs: apenas igualdade de gêneros. Movimento feminista dos tempos modernos. Nós somos as metas do movimento (feminista) ‘XX‘ a relembrar às pessoas a verdadeira definição de feminismo, restaurar sua significativa e positiva reputação, e ajudar a por fim ao sexismo no mundo real e digital. Clique na caixa cinza junto desta história para aprender mais, junte-se ao movimento XX e transforme a si mesmo em notícia.” (Nota do autor: o nome do movimento é este mesmo: “XX”.)

O Ryot noticiou, opinou sem pudores e apontou a direção da ação ao leitor. O site não atende interesses do marketing. Sua filosofia de trabalho é simples:

“Dar aos nossos leitores um caminho para não se sentirem desamparados, agirem e exercerem impacto naquilo que eles leem nas notícias”.

Agitação, protestos e tumultos

Muito boa a proposta do site: notícias e ação combinadas. Resta apenas uma questão: apontar para doações e apoio online a grupos que atuam no dia a dia pode levar a uma falsa sensação de participação. O internauta pode acomodar-se a uma condição de “ativista de sofá” e esquecer que ativismo (de qualquer tipo) é uma atividade social e vai exigir participação presencial em algum momento. De qualquer forma, envolver o leitor naquilo que ele lê é um passo além da simples transmissão da informação.

Não posso encerrar e deixar de fora a filosofia do Ryot. Que significa, na linguagem dos hindus, camponês, intocável. “Alguém sem vós”, publicou o site. Se substituirmos o “y” pelo “i” teremos Riot (tumulto), que Martin Luther King Jr. chamou de “linguagem dos não ouvidos”. A turma jovem do Ryot tem uma visão interessante dos distúrbios urbanos na era moderna: “A natureza do termo ‘tumulto’ está evoluindo. Do jeito que vemos, tumulto tem uma energia produtiva em vez de destrutiva na era moderna, e é o resultado de esforço organizado e não do caos”.

Boa parte das sociedades pelo mundo afora não vê as coisas como o pessoal do Ryot. Tumulto é desordem improdutiva e destruidora, diz o senso comum aos cidadãos do planeta. No Brasil não é diferente: agitação, protestos e tumultos são temidos e endemoninhados. Quem esquece a História não lembra que não há e nunca houve transformação relevante para a humanidade sem protestos, tumultos ou revoluções. Não há de ser diferente com as mulheres e sua luta para libertarem-se da ignorância e tiranias que ainda pesam sobre elas. Será que alguém já esqueceu as sufragistas e sua luta pelo direito da participação das mulheres na vida política?

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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor