Monday, 14 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Da cola à clonagem

Quem cobre política há tempos deve estar familiarizado com a clonagem de projetos que rola nos bastidores dos nossos parlamentos e até pode achar banal esse comentário. Mas, para mim, o assunto é novidade. Pode servir para alertar os colegas novatos na cobertura política e até os estudantes de Jornalismo sobre esse tipo de coisa.

Para quem não sabe do que se trata, vou tentar explicar assim: lembra de quando você ‘colava’ nas provas da escola? Pois é! Quem nunca colou, que me perdoe a generalização, e sinta-se à vontade para atirar a primeira pedra. Eu já colei! Quando me sentia muito insegura com algum conteúdo – porque não havia me preparado mesmo – eu fazia uma ‘colinha’: escrevia o conteúdo não-estudado em letras minúsculas numa tira de papel. Só o trabalho que dava essa engenharia toda fazia com que eu guardasse as respostas na cabeça. No fim das contas, só de lembrar da imagem do papel e da disposição das letrinhas no espaço, já nem precisava mais da cola… aliás, me pelava de medo e achava que o professor só estava cuidando a mim, entre todos na sala.

Mas, sem fazer apologia à cola escolar, essa imagem não explica a clonagem de projetos feita por ditos representantes do povo. A que mais combina com essa malandragem é a daquele colega que fez fotocópia do trabalho do outro e só assinou embaixo; do que desenvolveu a habilidade de ler todas as respostas do vizinho sem virar o pescoço, com uma leitura dinâmica de 180 graus, e de um terceiro, que furtou a prova e o gabarito do armário ou do computador da secretaria.

Lei do mais forte

Da tática à prática: suponhamos que o malandrinho faça uso desses métodos durante todo o seu histórico escolar e desembeste na carreira política, chegando aos altos postos parlamentares e cercado de um poder de influência estrondoso… Aí, ele encontra um projeto de forte apelo popular, bem bolado, bem-elaborado, tramitando morosamente na Casa. Digamos que o projeto original (no sentido mais estrito da palavra) esteja parado há uns dois, três anos, sem avançar… até porque o autor da proposta original não ‘está podendo’ tanto quanto o especialista em clonagem e não é do partido ou da força política hegemônica entre outras coisas.

Então, o malandro não resiste à tentação e, muito ‘benevolentemente’, até para agilizar, apresenta, na última hora, a uma comissão, sem tempo de ela examinar direito, um outro projeto idêntico. Não quero dizer idêntico só no que se refere ao assunto ou à proposta de aplicação, ele é escarrado e cuspido a fotocópia do primeiro: com o mesmo número de parágrafos e os mesmos erros do seu português ruim.

Acontece que, pela lei do mais forte ou a do uso e desuso ou, ainda, a de Murphy, o segundo projeto vai correr praticamente e extra-oficialmente em regime de urgência urgentíssima. E se ninguém notar a jogada (dependendo dos agrados, ela passa batido), ele chega à mesa de votação do plenário antes do primeiro. Se aprovado, vai, finalmente, ganhar as ruas e a aprovação popular.

Cabe denunciar

Via de regra, quem se apercebe ‘do que está pegando’ (ou seria pagando?) é o infeliz autor do projeto original, que, se não tiver um muque político dos bons, na melhor das hipóteses, pode ver-se obrigado a dividir a autoria da proposta com o colega sem-vergonha – isso dava uma espécie de tratado sobre a relação entre a violência escolar e o cotidiano político. Se esse infeliz autor da idéia original, senhor das boas propostas, for bem Poliana, pode até se conformar nessa história com a certeza de ver que seu projeto vai, finalmente, se concretizar em política pública.

Conversando com algumas pessoas, fiquei chocada em perceber o quanto essa prática é corriqueira. A história, por trás da ficção, é baseada em fatos… apenas baseada. Não posso afirmar, por exemplo, que o meliante em questão fizesse uso da ‘cola’ para progredir nos estudos. Isso foi só um recurso literário.

Talvez soe radical e possa vir a ser uma conclusão precipitada. Mas, na minha opinião, a moral da história é a seguinte: encontrou um projeto assinado por vários autores que você considerava inimagináveis enquanto parceiros políticos? Desconfie! Não são tão inimagináveis juntos, mas, ainda assim lhe parece estranho? Desconfie de novo! E se isso acontece às vésperas de um novo processo eleitoral, para o qual a regra da disputa é o vale tudo? Aí, você já pode considerar como quase uma certeza.

Cabe a mídia investigar. E denunciar. Um novo episódio pode entrar em cartaz, em breve, no parlamento mais próximo de você.

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Jornalista de Curitiba