Thursday, 02 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um julgamento à revelia da ciência

Sobrou para sete jurados de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, julgar a partir de segunda-feira (19/11) se o ex-goleiro do Flamengo Bruno mandou ou não matar a mãe de seu filho, Eliza Samúdio, em 2010, em mais um caso confuso e mal apurado pela polícia que chega ao júri à revelia da ciência. Não sou eu – alvo de perseguição do delegado Edson Moreira no conhecido assalto que resultou na morte de minha mulher (dezembro/2000) – que estou afirmando isso. Reportagem divulgada pela Folha de S.Paulo no domingo (18/11), conclui a existência de pelo menos “10 buracos” no inquérito policial que investigou o caso. Diz um trecho da reportagem:

“(…) são ao menos dez buracos que vão da falta da quebra do sigilo bancário, para saber se houve o pagamento de R$ 30 mil na morte de Eliza, como se sustenta, ao uso do depoimento do adolescente tomado sem a presença de advogado, o que é proibido. Uma das brechas da investigação é a participação do policial civil José Lauriano de Assis Filho, 47, o Zezé. A investigação desprezou 37 ligações trocadas por Zezé com os principais envolvidos no caso Eliza realizadas nos dias cruciais da trama. Em 10 de junho de 2010, por exemplo, ele recebeu três ligações do ex-policial Marcos Aparecido dos Santos, o Bola, entre 22h e 23h, horário em que a Promotoria disse que Eliza foi morta. Assis Filho chegou a se encontrar pessoalmente com Bola naquela noite do dia 10, como admite, mas não foi arrolado ao menos como testemunha no julgamento.”

Portanto, como se vê, faltam provas científicas e técnicas do assassinato e de seu mando e não vai querer o delegado exigir, também neste caso, que os jurados condenem o réu (falo especificamente de Bruno) com base apenas em lorotas e/ou provas circunstanciais.

O caso dos Irmãos Naves

Aliás, em entrevista à mesma Folha (agosto/2010), o delegado menosprezou os jurados que me absolveram (julgamento ocorrido em 7 de abril de 2004, no 1º Tribunal do Júri de Belo Horizonte), com a seguinte declaração dada à repórter Cristina Moreno:

“(…) os sete jurados eram ‘leigos’. Jurado não gosta de prova científica, jurado é do povão, vai pela emoção.”

É lamentável que uma autoridade da respeitada Polícia Civil de Minas Gerais dê uma declaração dessa natureza. Pior ainda imaginar que o Ministério Público assinou em baixo as denúncias da polícia sem ao menos exigir a materialidade do crime. Ou, na pior das hipóteses, a prova de seu mando, para que se pudesse submeter ao júri o autor da encomenda.

Vamos analisar essas questões à luz do Direito, com base na experiência de um jornalista – ou na ótica de um jurado que, como bem diz o delegado, “é um leigo”. É preciso dizer que o instituto júri é a mais democrática e justa forma de julgamento, por ser o crime de morte um fato do mundo sensível e a sua prática dolosa, um trecho flagrante da humanidade, motivo pelo qual este tipo de crime deve ser julgado pela sociedade.

O conselho de sentença é soberano, sábio e justo. Basta dizer, que toda vez que ele é contrariado, comete-se uma grande injustiça, como ocorreu no Caso dos Irmãos Naves (1937), quando os jurados de Araguari-MG absolveram duas vezes os réus Joaquim e Sebastião, levados a julgamento sem a presença do corpo da pretensa vítima que, segundo o truculento delegado Chico Alves, teria sido assassinado pelos irmãos.

Sem prova da encomenda

Influenciado pela polícia, a imprensa e a Constituinte de 1937, que tirou a autonomia do júri, o Tribunal de Justiça de MG ignorou a decisão dos jurados e condenou os irmãos Naves, que pagaram mais de oito anos de cadeia injustamente. O “morto” apareceu vivo 15 anos depois e desmoralizou a nossa justiça.

Pois bem. Quanto ao crime de mando, não comprovado nos autos enviados à justiça sobre o Caso Bruno, é preciso ressaltar a dificuldade de se esclarecer a sua autoria. São raros os contratos e recibos desse tipo de encomenda. Já reportei dezenas de casos dessa natureza e sei que é difícil estabelecer a relação entre o mandante e o executor de um assassinato, mas com a tecnologia atual (celulares, extratos bancários, redes sociais, grampos telefônicos etc.) isso ficou menos complicado.

Desta forma, tendo em mãos o executor do crime (no caso, Bola e Macarrão, segundo a polícia), fica mais fácil para a autoridade chegar ao autor intelectual, o mandante, a pessoa que, teoricamente, teria motivos e interesses na morte da vítima. Bruno tinha interesse no sumiço de Eliza, como todo parceiro tem em relação ao desafeto, mas uma coisa é ver essa pessoa bem distante, talvez para sempre, outra é manifestar a acólitos o desejo de sua morte e contribuir com isso, de forma efetiva, através de pagamento ou de uma recompensa.

A coisa pode ficar feia

Pelo que sei de pessoas que folhearam o processo, exaustivamente, entre os quais, advogados e jornalistas, não há um elo de ligação efetivo e claro que motive o crime pelos artifícios acima citados, a não ser que essas pessoas estejam completamente enganadas.

O delegado terá mais uma oportunidade de clarear esses fatos aos jurados, já que foi convocado para esse fim e espera-se que ele convença a todos não apenas da morte de Eliza Samúdio, mas de que Bruno mandou matá-la.

Bruno está preso há quase dois anos e se não ficar provado que ele encomendou o crime, a coisa vai ficar ruim para a nossa polícia e, especialmente, para o Poder Judiciário.

***

[José Cleves é jornalista, Belo Horizonte, MG]