Sunday, 19 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1288

‘Enriquecimento ortográfico’ para quem?

Em entrevista ao Correio Braziliense, o escritor João Ubaldo Ribeiro afirma que a reforma ortográfica da língua portuguesa em nada enriquece o idioma, ‘mas alguém enriquecerá com ela’. E o presidente Lula deve ser mais direto: ‘Prefeitos, comprem novos dicionários para as escolas e bibliotecas municipais.’ Lindo.


Obviamente, que a ‘asneira do século’, conforme definiu o editor do portal Conexão CPLP, Ray Cunha, em vez de unificar as línguas portuguesa e brasileira, confunde. ‘Representa a galinha dos ovos de ouro para os editores fregueses do Ministério da Educação do Brasil. Em vez de as nações lusófonas gastarem rios de dinheiro com essa besteira, deveriam prestar atenção no setor educacional dos respectivos países’, adverte o jornalista.


O acordo ortográfico põe fim à acentuação em paroxítonas terminadas em ditongo. Assim, heroicos sindicalistas dos anos 2000 promoverão assembleias, no estrito cumprimento do dever, mesmo com indisfarçáveis tramoias. Viram que ridículo?


Uma das mensagens de ano novo me desafia: faça algo diferente em 2009. Aceite as mudanças para não envelhecer. Será?


Venda milionária de livros


Alguns jornais se glorificam, ao anunciar garbosamente que adotam a novíssima ortografia no alvorecer de 2009. No modesto site da combalida – mas teimosa – Agência Amazônia de Notícias, combinei com o editor-chefe, Chico Araújo: quero integrar o exército da desobediência civil. Logo eu, um obediente e temente a Deus.


No final dos textos nesse site justificaremos a continuidade do uso de tremas e circunflexos, até que todos os países de língua portuguesa promovam as respectivas reformas ortográficas.


O canto da sereia e a ameaça de assassinato não me soam bem. Sinto-me envergonhado de manchetar, por exemplo: ‘Dois conselheiros veem o índio como estorvo. Lula e Marisa não leem gibis.’


Eles veem, eles não creem em profecias, nem no Apocalipse. ‘Não há diferença’. Há. Sem o circunflexo, o som é vem e crem. Certamente o locutor de rádio, TV e internet não dirá crem, mas crêem. Não confundirá o vêem (de enxergar) com o vem (de chegar).


A sensação é de que o tempo de aprendizado se sujeitaria agora ao castigo de permitir a pecha de burraldo, enquanto o ‘internetiquês’ expõe a verdadeira alienação nos campos do Orkut, MSN e adjacentes.


Minha insubordinação traduz um sentimento nessa nervosa véspera de venda milionária de livros ao MEC e de confusão generalizada nos concursos públicos e nos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, sempre zelosos com o vernáculo.


Clarabôia, platêia, epopêia


Notem que os governos dos demais países – Timor Leste, Guiné-Bissau, Moçambique e Angola – se dizem interessados em aprovar o acordo, mas ainda não o fizeram.


Centenas ou milhares de redatores, editores e repórteres suspiram: ‘Graças a Deus!’ Por falta de revisão, os jornais acumulam erros de acentuação que, legalmente, serão agora evitados com alguma facilidade. É um falso alívio, já que não decidem combater abertamente falanu, chegandu, vem k, explicandu, esperandu, aki, entrandu, axim naum dá, iscreva teu nome certu, bjs, abs etc.


No túnel do tempo, freqüento a sala da 1ª série A do curso colegial. Freqüenta, não! Agora é frequenta, primo de requenta, deliquente, sequencia, tranquilo.


Aprenda, burraldo! Compre dicionário novo e modifique logo o seu computador porque ele permanece tão burraldo quanto você. Agora é claraboia, plateia, epopeia. Nessa grafia ouço clarabôia, platêia, epopêia.


Acentos diferenciais


Elio Gaspari escreverá patuleia? Agora, o indivíduo nasce em Cananeia ou Pompeia. Filhos dessas cidades estariam felizes ao constatar essa aberração? Apoiar não segue mais a regra diferencial do pôde e pode. Agora, eu apoio quem me apoia. Apóio acabou. Menino, não coma essa geleia! Tem corante. Assim você não estreia no basquete da Unimed.


Ideia, azaleia? Assisti na TV o didático Tonico Ferreira – aquele jornalista comunista que escrevia tão bem no extinto Movimento – esforçando-se em tom professoral para corrigir pessoas nas ruas de São Paulo. Mostrava-lhes numa folha impressa as palavras linguiça e sequestro – sem o trema.


Soletra-se kinkênio ou qüinqüênio? Qüe, qüia, güe, güi não são frescuras; são necessários. Logo, vão golpear a cedilha.


Mestres ensinam que o trema é um acento diacrítico, pois atribui um som diferente a uma letra. Tal qual a cedilha: quando colocamos aquela ‘cobrinha’ embaixo da letra ‘c’ significa que terá aquele som, exatamente, de cobra (‘sssssss’).


Aboliriam também a cedilha, por ‘inutilidade’, protestam alguns professores.


Já o hífen continua desafiando os melhores cérebros e, com a reforma, funde a cuca mesmo. Melhor estudá-lo como sempre nos foi recomendado, porque agora ele é senhor da macro-história e nos proporciona uma imprescindível autoaprendizagem. Vade!


Ainda bem que permanecem os acentos diferenciais do singular e do plural dos verbos ter e vir. Da mesma forma, os seus derivados – manter, deter, reter, conter, convir, intervir, advir etc. Ele tem dois carros flex. Eles têm dois carros. Ele vem de Porto Velho. Eles vêm de Cruz das Almas.


Sou uma gota d´água nesse imenso oceano. Resistiria em condições de reaprender?


Oremos. Muitas pessoas exercerão esse papel na sua plenitude, mas não se livrarão de morrer com a memória presa.

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Repórter e editor na Agência Amazônia em Brasília, DF