Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Arrogância de Bolsonaro implodiu o seu governo. Milei vai pelo mesmo rumo?

Se o novo presidente não dolarizar a Argentina o povo vai para a rua protestar? (Foto: reprodução)

É forçar a barra especular sobre o destino do governo do presidente eleito da Argentina, Javier Milei, com base nas suas semelhanças políticas com o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Porque no início do segundo ano do seu mandato, em março de 2020, Bolsonaro escolheu como seu inimigo a Covid-19, a pandemia causada por um vírus que contaminou quase 800 milhões e matou 14 milhões de pessoas no mundo. Bolsonaro e seus ministros tornaram o negacionismo em relação ao poder de contágio e mortalidade do vírus em política de governo. Toda a história é contada no relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid-19 (CPI da Covid). São 1,3 mil páginas que apontam o ex-presidente e seus ministros como responsáveis pela morte de 700 mil brasileiros pela doença. A CPI da Covid mostrou as entranhas autoritárias do governo do ex-presidente. Muitos apoiadores de Bolsonaro não gostaram do que viram e saíram do governo por conta própria ou foram demitidos. Ficaram os militares golpistas, políticos extremistas, organizações de extrema direita e oportunistas de todos os calibres. Em 2021, havia uma fila de 153 pedidos de impeachment na gaveta do então presidente da Câmara dos Deputados. Para evitar a cassação, Bolsonaro fez um acordo com o Centrão, como é chamado o grupo de parlamentares que trocam o seu apoio no Congresso por cargos. Uma prática que se repete em todos os governos desde que o país se redemocratizou, em 1985, incluindo o do atual do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Bolsonaro foi derrotado pelo vírus. Restou dos planos originais do seu governo, que incluía privatizações, mudanças de leis e outras iniciativas exóticas, a desestruturação da máquina administrativa do governo federal, resultando na desarticulação da fiscalização dos crimes contra o meio ambiente. O que facilitou a aceleração da destruição da Floresta Amazônica e a invasão das terras indígenas por garimpeiros ilegais, como foi o caso da área dos yanomami na fronteira entre Roraima e a Venezuela. Atualmente, o ex-presidente já foi sentenciado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) à inelegibilidade de oito anos e ainda responde a uma extensa lista de processos na Justiça, investigações criminais e outras ilegalidades, como a tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro, quandobolsonaristas radicalizados quebraram tudo que encontram pela frente no Palácio do Planalto, no Congresso e no Supremo Tribunal Federal (STF), na Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF). Trocando em miúdos. A pandemia acelerou o processo de desintegração das várias correntes políticas que apoiavam o projeto de governo de Bolsonaro. Claro, todos ao redor do mundo, incluindo os adversários políticos de Milei, torcem para que não haja outra pandemia. Mas o conhecimento que os jornalistas brasileiros adquiriram fazendo a cobertura do governo Bolsonaro permite que façamos algumas afirmações com base em informações que começam a brotar do entorno do presidente eleito da Argentina.

Logo após a confirmação da vitória de Milei, o ex-presidente argentino Mauricio Macri (2015 a 2019) publicou um texto tranquilizando a população a respeito das promessas malucas feitas durante a campanha pelo presidente eleito, como a de acabar com o Banco Central e com os subsídios sociais. As entrelinhas do texto de Macri informam que ele assumiu a tutela política do novo presidente. Lembro o seguinte: muita gente, principalmente empresários e oficiais de alta patente das Forças Armadas, perfilaram-se entre os apoiadores de Bolsonaro por acreditar que conseguiriam controlá-lo. Não conseguiram e foram demitidos ou afastados do governo. Vai acontecer o mesmo com Milei? Se Macri conseguir negociar a sustenção do governo com os parlamentares ele tem chance de ser a eminência parda do governo. Caso contrário será atropelado pela vice-presidente, a advogada Victoria Villarruel. Ela defende que a única maneira de implantar as mudanças propostas por Milei é ter um governo de força. Em outras palavras, uma ditadura militar nos moldes da que governou o país de 1976 a 1983. Villarruel tem ligações com os militares golpistas daquele período e com a extrema direita. Tratei desse assunto no post do dia 7/11 Perca ou ganhe as eleições argentinas, Milei vai complicar a vida do governo brasileiro. A vice-presidente pode tentar articular a volta dos generais ao poder. Mas a possibilidade de que tal coisa aconteça é mínima porque, ao contrário do Brasil, onde houve uma lei de anistia que deixou livre os militares que deram o golpe em 1964, os argentinos colocaram na cadeia os responsáveis pela derrubada do governo em 1976. Mais ainda, os militares argentinos entregaram o poder, em 1983, desmoralizados com a derrota na Guerra das Malvinas (1982) para os britânicos – há abundância de matérias, documentários e pesquisas disponíveis na internet. Mas isso não significa que a simples menção do assunto não ajude a tumultuar o ambiente político. Lembro que no governo Bolsonaro a velocidade dos acontecimentos era tal que a cobertura mais parecia uma montanha-russa. Em mesma manhã os noticiários tinham três ou quatro manchetes fortes. O governo de Milei vai ser uma montanha-russa?

De todas as promessas feitas por Milei a que tem o maior poder de desestabilizar o seu governo, caso não seja cumprida, é a dolarização da economia. Por quê? No governo do presidente Carlos Menem (1989 a 1999) havia paridade entre o dólar americano e o peso argentino. Durante a paridade, os argentinos viajaram pelo mundo inteiro a turismo. Lembro-me de tê-los encontrado em Cuba, no México e em vários outros países da América do Sul. Nas praias de Santa Catarina compraram uma grande quantidade de imóveis. E durante as férias ficavam nos melhores hotéis. Foi uma farra. Esse período ficou na memória da população. Tecnicamente, economistas dizem que é impossível dolarizar a economia argentina pelo simples motivo que o país não tem reservas cambiais para isso. Mas se por um milagre conseguir, Milei cairá nas graças da população e poderá fazer a besteira que quiser. Claro, até estourar a bolha, como aconteceu no governo Menem. Dias interessantes vêm por aí.

Reportagem originalmente publicada em “Histórias Mal Contadas”

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.