Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A guerra de versões

O episódio já está um tanto frio, mas bem atual para avaliar certo comportamento da imprensa que vem se tornando cada vez mais comum. Oportuno também em razão da presença cada vez mais evidente de artistas nas discussões políticas. Vide Chico Buarque e a trupe que resolveu transformar a sua arte em militância. Refiro-me à polêmica (é assim que a imprensa chama o que não conclui) à repercussão da foto do líder do Movimento Brasil Livre, Kim Kataguiri, com o cantor Ney Matogrosso. Para quem ainda não sabe, resumo: logo após as manifestações de protestos a favor do impeachment da presidente Dilma do dia 13 de dezembro, o jovem líder encontrou-se com o artista em uma lanchonete. Pediu para tirar uma foto em sua companhia, no que foi prontamente atendido.

Kim Kataguiri e Ney Matogrosso / Foto reproduzida do blog Catraca Livre

Foto reproduzida do blog Catraca Livre

Kataguiri publicou a tal foto em seu perfil no Facebook, com os seguintes dizeres: “Depois da manifestação de ontem (domingo, 13/12, na Paulista), encontrei um grande ídolo e defensor do impeachment: Ney Matogrosso.” Obviamente, o assunto repercutiu nas redes sociais. A publicação ganhou mais repercussão depois de um “desmentido” (é esta a palavra usada pela imprensa) do amigo do cantor Israel Caneppele, que postou a seguinte mensagem, em nome de Matogrosso: “Esse garoto chegou perto de mim numa lanchonete em São Paulo e pediu para tirar uma foto comigo. Eu disse sim. Foram as únicas palavras trocadas entre nós. Não sei quem é nem me perguntou o que eu achava sobre o assunto. É um imbecil!”

Era o que faltava para a imprensa abraçar a pauta. Logo surgiram vários textos em sites de veículos de comunicação, sites e blogs que se apresentam como tal. Vamos nos ater aqui aos que realmente têm compromisso com o jornalismo, e não àqueles engajados por militância e ideologia, que manipulam descaradamente os fatos para impor a sua “verdade”. A Veja São Paulo, por exemplo, entrou no assunto com o título: “Foto de Kim Kataguiri com Ney Matogrosso causa polêmica”. Nada poderia ser mais genérico e emblemático para a abordagem superficial, tão em moda na atualidade.

Opiniões de artistas sobre questões políticas

Sim, versões diferentes são, por consequência, a origem da polêmica, uma boa matéria-prima do jornalismo. Cabe aos profissionais da imprensa, entretanto, a tarefa da lapidação, conhecida no meio como apuração, essencial para a elaboração de qualquer boa reportagem.

O problema é que o jornalismo – já não é de hoje – se acomodou e reduziu suas funções à mera tarefa de “ouvir versões”. Como se não bastasse isso, se satisfaz com depoimentos de terceiros, recorrendo ao futuro do pretérito para alimentar polêmicas que ficam sem respostas. No caso em questão, as palavras publicadas pelo amigo do cantor foram concluídas assim: “…teria dito Ney Matogrosso”.

Pois bem, têm-se as versões, mas não a conclusão. Afinal, Ney Matogrosso disse ou não disse isso? Apoia ou não o impeachment? Essas são as respostas que os leitores gostariam de saber, dentro da pauta ora apresentada. Claro que podemos questionar o mérito da significância de opiniões de artistas sobre questões políticas. Mas já que a imprensa gosta tanto de dar espaço a esse tipo de insignificância (seja contra ou a favor), que o faça de forma correta, seguindo os preceitos do jornalismo.

Um “…armazém de secos & molhados”?

Onde estaria, então, a conclusão da pauta? Depois da repercussão da versão do cantor (ou do amigo dele), Kataguiri justificou o motivo de ter colocado sua foto com Ney como “…defensor do impeachment”. Além do fato de estar com a camisa do movimento, estampada com a frase “#esse impeachment é meu”, Kim cita uma entrevista concedida pelo compositor à repórter María Martín, do jornal El País, publicada em 14 de outubro de 2015, pouco menos de dois meses antes, na qual o cantor afirma categoricamente ser a favor do impeachment, entre outras críticas veementes que faz em relação à roubalheira do governo atual (em suas palavras). “Se Ney passou a ser contra o impeachment, então desmentiu a si mesmo, não a mim. Em nenhum momento eu disse que havia conversado com ele a respeito”, justificou-se Kim, em artigo publicado.

Caberia a qualquer aspirante de jornalismo checar a veracidade da entrevista, o que pode ser facilmente realizado por pesquisa na internet, e levar a pauta até o fim. Afinal, insisto, onde está a verdade entre as versões Kim Kataguiri e Ney Matogrosso? Por que o artista afirmava (a entrevista ao El País confirma isso) que era a favor do impeachment e, menos de dois meses depois, chama o rapaz que reproduziu as afirmações de “imbecil”? Será que Ney Matogrosso mudou de ideia? Essa é a reposta que o bom jornalismo tem de procurar.

Infelizmente, o jornalismo dos dias de hoje, com as exceções que só justificam a regra, se transformou em “guerra” de versões. Falta-lhe a apuração obstinada pela busca da verdade. Ou os jornalistas reencontram o seu papel de protagonista na difusão da informação correta e precisa, ou ficarão como coadjuvantes das redes sociais, reproduzindo versões que não levam a lugar algum, a não ser às simples e insignificantes “polêmicas”. Afinal, jornalismo é muito mais que um “…armazém de secos & molhados”, como dizia Millôr!

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Marcelo Mastrobuono é jornalista e editor da revista Horse