Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A nova realidade das coberturas internacionais no jornalismo

Não é segredo que a cobertura internacional pela mídia ocidental não se compara com o que já foi. Muitas organizações vêm lutando para manter o número de suas equipes editoriais domésticas e uma combinação de repressão governamental e milícias hostis torna alguns lugares do mundo zonas a serem evitadas, mesmo por repórteres locais. “Existem muitos lugares pelo mundo afora onde o correspondente estrangeiro já não pode ir simplesmente entrando com sua bandeira branca”, disse Trevor Snapp na semana passada quando coordenava no Frontline Club, em Londres, um painel sobre a importância da testemunha ocular e dos jornalistas-cidadãos.

Jornalismo cidadão / Foto Eikimedia / CC

Jornalismo cidadão / Foto Eikimedia / CC

Jornalistas locais, blogueiros e os chamados jornalistas-cidadãos muitas vezes se tornam um tapa-buracos para obter informações nessas áreas. Com fontes e conexões construídas ao longo de uma vida, assim como com os meios digitais para divulgar as notícias pelo mundo todo, esses contatos locais são muitas vezes as fontes para matérias que de outras maneira estariam perdidas.

A expressão “jornalista-cidadão” foi descartada por John D. McHugh, fundador da agência de notícias Verifeye Media, que declarou que “ou você é um jornalista ou não é” e qualquer pessoa que relate acontecimentos que tenham valor enquanto cobertura de informações deveria ser reconhecida pelo que faz, pelos riscos que enfrenta e pela compensação que merece. Entretanto, muitos governos vêm procurando reprimir a capacidade dos cidadãos de divulgar histórias.

Uma reportagem de 2014 feita pela entidade  Freedom House detalhou como mais da metade dos países acessados havia mostrado um maior rigor nas leis que regem a comunicação online entre maio de 2013 e maio de 2014. A Rússia, a Turquia e a Ucrânia mostraram o declínio mais abrupto, enquanto o Irã, a Síria e a China eram os países que “mais abusavam da liberdade da internet acima de todos”. Os usuários de redes sociais foram identificados como um dos principais alvos para detenção, especialmente no Oriente Médio e no norte da África. Jornalistas que trabalhavam online e blogueiros foram presos em mais de um terço dos países acessados e em quase dois terços dos países da região subsaariana.

Esses países e regiões estão entre as principais na pauta de notícias internacionais e as pessoas que vivenciaram essas matérias têm mais valor do que nunca por poderem dar-lhes cobertura. O acesso a áreas e comunidades que jornalistas de outros países só podem sonhar em chegar é possível com comunicações digitais e câmeras leves, mas nem sempre é garantido. “Se a mídia que é testemunha ocular não for tratada corretamente, se as pessoas que a criam não forem tratadas de maneira adequada, ela irá se trancar atrás de muros fechados”, disse John McHugh, “e eu acho que isso é o resultado dela [testemunha ocular] ser tratada de maneira desleal.”

Os “sonhos com drones

John McHugh lançou a agência de notícias em 2015 como uma maneira de ajudar as organizações jornalísticas a cobrirem áreas que de outra forma não poderiam fazer e a terem testemunhas e fotógrafos freelance pagos por seu trabalho. Quando os usuários do aplicativo de câmera da Verifeye captam imagens, as cenas são diretamente enviadas para o eixo editorial da empresa e completadas com metadados para verificação antes que McHugh e sua equipe liberem o material para as organizações jornalísticas.

A Nuba Reports, organização de Trevor Snapp, funciona no Sudão do Sul, numa área em que se registraram muitos crimes de guerra, cometidos por forças regionais e nacionais. Quatro repórteres lideram equipes de “observadores” locais espalhadas pela região para documentar os bombardeios e contar as histórias das comunidades perseguidas. Embora as identidades dos repórteres sejam públicas, as da rede de “observadores” não são e as matérias de sobre deslocamentos e perseguição alcançaram organizações jornalísticas do mundo todo.

“As pessoas que estão cometendo esse tipo de crimes e atrocidades estão ficando espertas quando aparece alguém da mídia ocidental”, disse Jacqueline Geis, responsável pelo desenvolvimento e comunicações externas na entidade de caridade e direitos humanos Videre est Credere, o que torna ainda mais importante a mídia como testemunha ocular ao divulgar esses ataques. Videre est credere dá às comunidades o treinamento e equipamento necessários para documentar violações de direitos humanos em todos os países do mundo, com um enfoque particularmente forte em segurança.

A jornalista Chavala Madlena fez um trabalho semelhante para o Guardian, passando nove meses no Iêmen, onde desenvolveu relações e treinou pessoas nos conceitos básicos de jornalismo e cinegrafia. Uma dessas pessoas foi Mohammed Tuaiman, de 13 anos, que ficou encarregado de cuidar de seus 27 irmãos depois que seu pai e seu irmão foram mortos num ataque de drones [aviões sem piloto] em 2011. Mohammed filmou a vida cotidiana de sua família e do vilarejo, a luta que enfrentavam desde a perda dos principais chefes da família e os “sonhos com drones” numa área localizada entre os rebeldes Houthi, as forças do governo e a célula local da al-Qaida. Em janeiro de 2015, Mohammed também foi morto num ataque de drones.

“A mídia da testemunha ocular é o agora”

Esse é o risco inerente a qualquer pessoa que faça uma reportagem a partir de áreas perigosas – o “cenário do pesadelo”, segundo Chavala Madlena – e o motivo pelo qual John McHugh é tão firme em relação a não apenas garantir que os colaboradores de Verifeye estejam a salvo, mas também que sejam pagos. Embora não incentive os “maníacos” que não levam em consideração sua própria segurança e autorizam os veículos a divulgarem seu trabalho, ele insistiu que há “jovens jornalistas ou pessoas que vivenciam uma história e querem contá-la e nós não temos a capacidade nem o direito de dizer às pessoas o que devem fazer”. “Antigamente, o jornalismo era uma palestra”, disse ele, “mas agora é uma conversa e há muitas conversas acontecendo em áreas a que não temos acesso.” “Trata-se de trabalharmos juntos e não vermos uns aos outros como ameaças”, disse Trevor Snapp. “As organizações da grande mídia precisam dessas redes locais”, mas têm que se comportar de maneira respeitosa, para manter as relações.

É claro que nem todas as organizações têm recursos para enviar treinadores para o campo. Mas a natureza das comunicações online, apesar da repressão por parte de alguns governos, significa que os jornalistas podem criar e ampliar redes de contatos em países oprimidos de novas maneiras. Jornalistas se comunicando com os usuários das principais redes sociais é um fato comum, mas transitório – essencialmente, um jornalismo de paraquedas digital, mas sem os custos exigidos por uma reportagem concreta. Uma vez que não implica custos, por que não desenvolver essas relações para futuras matérias, ou transpor a conversa para redes privadas?

A BBC teve muito trabalho para criar fontes no Irã através do app Telegram [aplicativo para conversas criptografadas], por exemplo, e muitas organizações jornalísticas vêm usando o WhatsApp para falarem diretamente com as fontes em áreas impossíveis de acessar de outra maneira.

A construção dessas relações leva tempo, esforço e um pouco de bom senso, disse John McHugh, mas depende dos mesmos elementos básicos de confiança e compenetração que sustentaram o jornalismo desde os primeiros anos. Testemunhas oculares distantes fornecendo imagens e informações através de meios digitais são simplesmente a mais recente repetição de conversas que antes se davam cara a cara, ou pelo telefone. Se os jornalistas não forem respeitosos na maneira pela qual desenvolvem essas conversas, disse McHugh, eles correm o risco de ser completamente boicotados. “A mídia da testemunha ocular não é o futuro do jornalismo. É o agora”, disse John McHugh. “Ela acontece diariamente, numa matéria importante ou secundária, e nós temos que descobrir como utilizá-la em sua plena capacidade.”

Dar à testemunha ocular o mesmo respeito e consideração que se dá a outras fontes, ou mesmo a outros jornalistas, talvez seja a única maneira de garantir que as organizações jornalísticas possam continuar a fazer a cobertura das matérias que mais importam no mundo todo.

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Alastair Reid é o editor administrativo de First Draft News