Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Adrenalina, cautela e bocejos

No início da madrugada de domingo (8/10), um sismo de 4,2 graus de magnitude acordou as máquinas do USGS, o instituto de pesquisa geológica dos Estados Unidos: vinha de uma pequena península a nordeste do continente asiático. A Coréia do Norte – para os íntimos, República Democrática Popular da Coréia – detonara sua bomba nuclear às 10h30 já da segunda-feira. A ‘inteligência’ da vizinha Coréia do Sul detectou 3,6 graus mas, fosse qual fosse a magnitude, era má notícia para terráqueos com algum juízo.


Três emissoras de TV globalizadas também acordaram. Fox News (canal 81 da Net digital), CNN Internacional (53) e BBC World (28) botaram o alerta de breaking news na tela praticamente ao mesmo tempo, lá pela meia-noite e meia daqui. A Fox literalmente pulou da cama. Não que já estivesse dormindo às 23h30 de Nova York, mas livrou-se de continuar discutindo uma chatíssima relação, o escândalo Foley, vexame republicano explorado exaustivamente por democratas sedentos de votos na midterm election de novembro. Excitada pela oportunidade, em cinco minutos dava as primeiras informações: para o Pentágono, ‘algo aconteceu mesmo’, mas não se podia confirmar. A Casa Branca estava ‘levantando os dados’, informavam os setoristas à louríssima âncora.


Piadinhas e risinhos


Ao longo da madrugada, vieram da Fox News as únicas notícias relevantes, na seguinte ordem:


** Tremor de 3,6 graus de magnitude (segundo informações sul-coreanas);


** A Coréia do Norte alertou a China sobre o teste 20 minutos antes;


** A bolsa sul-coreana caiu logo após o anúncio do teste;


** Beijing condenou ‘resolutamente’ o teste;


** O primeiro gráfico animado da noite mostrava como se dá uma detonação nuclear subterrânea;


** O USGS, que levou uma hora anunciando que logo se manifestaria, afinal declarou: 4,2 graus de magnitude na Escala Richter, mas em lugar diferente do anunciado por Piongiang; meia hora depois, um mapa por satélite, semelhante aos que se obtêm no Google Earth, indicava a discrepância de áreas;


** Funcionário da Casa Branca informou que o embaixador chinês retransmitiu incontinenti aos americanos o aviso da Coréia do Norte – assim que recebeu o alerta dos insanos de Piongiang, a ajuizada Beijing repassou-o aos loucos de Washington (a Fox News não usou esses termos, claro);


** Foi ‘mais um fizz do que um pop‘, avaliou, em comparação onomatopéica, um especialista em hecatombes nucleares. Ele deu a idéia geral: no fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos jogaram bomba em Hiroxima equivalente a 12.500 toneladas de dinamite; em Nagasaki, foram 21 mil toneladas de TNT. A Coréia do Norte explodiu ‘apenas’ 550 toneladas.


Quem não conseguia dormir de nervosismo teve de fato informação a cada cinco ou 10 minutos na Fox News. A partir deste ‘more a fizz than a pop’, entretanto, esfumou-se o bom trabalho de apuração da Fox News. Com piadinhas e risinhos desdenhosos à ‘bombinha’ norte-coreana, âncoras e analistas – e uma ou outra feliz exceção – recaíram na patriotada já conhecida.


Cautela e humor


A loura âncora chegou a questionar o setorista da Casa Branca, que anunciara iminente manifestação de George W. Bush, sobre a importância de um pronunciamento presidencial ‘a essa hora’. O setorista ponderou: ‘É de suma importância, Fulana, pois a Ásia inteira está acordada, e os aliados dos Estados Unidos aguardam a posição de Washington’. Na manhã de segunda-feira, a emissora já fazia enquete provocativa: Kim Jong-il prefere carros velozes, bond girls ou… algo equivalente que não vem agora à memória. Ela mesma respondeu: os três. Sem acrescentar que as preferências do ditador são antigos objetos de desejo ocidentais. À noite, a emissora já retomara seu tom agressivo e querelas vazias.


Canal porta-voz da Casa Branca, essa posição rende muita informação exclusiva à Fox News. No ostracismo, a CNN Internacional, favorita do governo Clinton, já estava de pijama quando chegou a notícia. Mal botou um robe e, supercautelosa, fez mesmo assim um contraponto perfeito à adrenalina da concorrente: entremeou os informes vazios de informação dos correspondentes em Washington e na Ásia com entrevistas de analistas ‘liberais’. Foram horas de ataques à ‘política internacional desastrosa de Condoleezza Rice’, que em um ano jogou por terra o equilíbrio conquistado pelos ‘esforços do governo Clinton’ em sua aproximação com a China, ‘parceiro estratégico que mantinha a Coréia do Norte sob controle’. Lembraram que não era casual que na mesma segunda-feira (9/10) seria eleito um sul-coreano para a Secretaria-Geral da ONU.


Enquanto a Fox News ironizava qualquer apelo, como o de Moscou, à diplomacia – ‘Que conversa é possível a partir de agora? Negociamos tanto com o Paquistão, eles testaram a bomba deles e nada aconteceu’, desafiava a loura âncora –, o foco da CNN fixou-se na necessidade mais premente do que nunca de negociação e, principalmente, na não-confirmação do teste nuclear da Coréia do Norte. Até a noite de segunda-feira, os âncoras enfatizavam uma pergunta: ‘Did they or did’nt they?’ Fizeram ou não fizeram o teste? Um funcionário do Pentágono respondeu: ‘Saberemos em 48 horas’. Cautela faz bem, quem negará? E não se furtou a um momento bem-humorado: mostrou imagens do cinema e da TV satirizando o doido de Piongiang e um escorregão do aloprado de Washington pronunciando nuquelear em vez de nuclear.


Olhadela animadora


A BBC World, apanhada pela notícia às 4h30 da matina de Londres, dormia a sono solto e assim ficou, de camisola e tudo. O alerta de breaking news piscava no pé da tela e só: notícias variadas, Hard Talk sobre imigração, notícias de novo – tudo gravado. À uma e meia da manhã continuava com a programação normal e miniflashes do ‘carnaval’ norte-coreano. Afinal, os recursos da emissora estão em outras crises: a do Iraque e a da aviação européia. Como de resto a mídia do continente. Após o anúncio do atraso na produção do gigantesco Airbus A380 – o primeiro projeto econômico pan-europeu, que reúne 57 mil empregos em 16 fábricas (sete na Alemanha, quatro na França, três na Espanha e duas no Reino Unido) –, a Europa só pensa naquilo.


E no Brasil? Na rede, justiça seja feita ao Globo Online: à 1h23 já tinha notícia sobre o teste nuclear – ao contrário do iG e do UOL (o OI arquivou printshots das três capas). Já a Globo News não dormia: estava desmaiada. Nem sinal da crise nas microedições do Em Cima da Hora da madrugada. Fazer o quê? O conceito brasileiro de TV all news presume um monte de jovens esforçados presos a scripts, ao contrário da experiência internacional – muita gente de cabelos brancos, momentaneamente sem informação do presente, mas capaz de falar minutos seguidos de improviso sobre o que conhece do passado, ajudando o assinante a entender o futuro.


Uma noite assim deixa pesadelos ao observador mais velho, é verdade. Mas, nesse momento em que tantos jornalistas brasileiros andam sorumbáticos com a mídia nacional, é animadora uma olhadela no vídeo da TV norte-coreana que a CNNi não parava de exibir na noite de segunda-feira (ainda ausente do YouTube.com): uma âncora sorridente anuncia o ‘grande feito’ de seu país. Deve ser horrível trabalhar como jornalista na Coréia do Norte.