Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Atalhos cognitivos dos noticiários internacionais

(Foto: iStock)

Entre os temas frequentemente presentes na grande mídia, os noticiários internacionais são, muito provavelmente, um dos que têm menor apelo junto à audiência. Seja pela complexidade dos fatos ou pela (aparente) falta de relação imediata com o cotidiano do cidadão comum, a realidade é que a maioria dos receptores passa incólume pelas matérias que abordam questões envolvendo outros povos e nações. “O que eu tenho a ver com algo que acontece na China, no Irã ou no Iraque, a milhares de quilômetros daqui do Brasil?”, diria o telespectador típico de um telejornal, o “Homer Simpson”, segundo William Bonner.

Para ilustrar esse desinteresse pelos noticiários internacionais, cito um exemplo pessoal de quando eu era criança, no início dos anos 1990. Meu avô assistia diariamente ao Jornal Nacional para se informar, principalmente, sobre assuntos que envolviam os direitos dos aposentados. Quando chegava o bloco com notícias sobre outros países, ele já não demonstrava a mesma atenção em relação ao telejornal. Inclusive não se importava caso alguém trocasse de canal.

No entanto, nos últimos anos, cada vez mais temos percebido que determinados fatos ocorridos em outros países têm impactado diretamente nosso cotidiano. E, em muitas ocasiões, percebemos da pior maneira possível. Se potências imperialistas estão envolvidas em conflitos com países exportadores de petróleo, consequentemente os preços dos combustíveis sobem. Quando a China diminuiu a demanda por commodities, a economia brasileira registrou uma considerável queda. O novo coronavírus, cujo epicentro também remete à China, se espalhou rapidamente pelo planeta e chegou ao Brasil, o que já nos obriga a rever determinados hábitos.

Por outro lado, compreender de maneira satisfatória o que se passa além de nossas fronteiras ainda é uma capacidade inacessível para o público em geral, pois exige conhecimentos que abarcam diferentes campos do saber, como História, Geografia, Ciências Sociais e Economia. Diante dessas dificuldades, a grande mídia fornece os chamados “atalhos cognitivos”, que consistem em recursos discursivos utilizados para tornar inteligível para o cidadão comum a caótica configuração do xadrez geopolítico global.

Conforme apontou o experiente jornalista José Arbex Junior em seu livro Showrnalismo: a notícia como espetáculo, essas estratégias discursivas visam oferecer aos leitores/telespectadores alguma sensação de ordem em relação a um mundo, de fato, complexo em demasia. Entre os atalhos cognitivos estão os maniqueísmos, os estereótipos, os lugares-comuns, as personalizações, as tipificações, a metonímia, as metáforas e as “opiniões prontas”.

Apesar de gerar em muitos indivíduos a sensação de realmente estar compreendendo o conteúdo dos noticiários, os atalhos cognitivos mais banalizam do que propriamente explicam as relações internacionais. Nas narrativas maniqueístas da grande mídia, o choque de civilizações entre Ocidente e mundo muçulmano é reduzido a um confronto entre o “bem” e o “mal”. Sendo assim, “nós” (ocidentais) somos marcados por qualidades como razão, tolerância, liberdade, igualdade e modernidade em contraposição a “eles” (muçulmanos), que apresentam características inerentemente negativas, como irracionalidade, fanatismo, autoritarismo, opressão às mulheres, violência e tradicionalismo.

Em uma pesquisa sobre análise de discurso, o jornalista Eduardo Manhães concluiu que a cobertura do jornal O Globo sobre o atentado de 11 de setembro apresentou características típicas de narrativas épicas, sendo o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, alçado ao status de herói e, por outro lado, os terroristas islâmicos assumindo os papéis de vilões. De acordo com Manhães, as matérias do periódico da família Marinho basearam-se na dicotomia entre civilização (Ocidente) e barbárie (mundo muçulmano), reduzindo o atentado à natureza truculenta do ato, sem levar em consideração a maneira autoritária com que os Estados Unidos conduzem sua política externa em relação aos países periféricos.

Consequentemente, ao entrar em contato com esses discursos maniqueístas, boa parte do público pode chegar à equivocada conclusão de que os muçulmanos são temíveis algozes e a principal potência ocidental, em contrapartida, simples vítima da barbárie promovida pelos fanáticos seguidores de Alá.

Outro atalho cognitivo bastante utilizado pela mídia são os estereótipos, que, segundo Stuart Hall, correspondem a “rótulos e categorias estáveis que fazem parte de uma poderosa estratégia para conceder maior segurança cognitiva ao receptor e auxiliar sua interpretação para que as mensagens divulgadas pelos grandes veículos de comunicação possam ser apreendidas com maior facilidade”. Nesse sentido, Edgar Morin destaca que “o fato de os processos de emissão e recepção ocorrerem simultaneamente na comunicação televisiva faz com que a linguagem dos telejornais seja simplificada, obedecendo a rigorosos critérios de clareza e recorrendo frequentemente ao uso de formas estereotipadas que auxiliam na absorção instantânea de suas mensagens, justificando, assim, o uso de rótulos como recursos para uma comunicação rápida e acessível”.

Segundo os estereótipos divulgados pelos discursos geopolíticos da mídia brasileira, muçulmanos são terroristas, turcos são avarentos, colombianos são traficantes de substâncias ilícitas, habitantes do continente africano são indolentes e paraguaios são contrabandistas (ironicamente, Ronaldinho Gaúcho, embaixador do Turismo do governo Bolsonaro, foi detido recentemente na nação guarani justamente por portar passaporte falso).

Nessa mesma linha, os lugares-comuns apresentam visões impregnadas de reducionismos sobre outras nações. Cuba geralmente é noticiada a partir de imagens de bairros degradados, com ruas sujas e habitações miseráveis, semelhantes às áreas mais pobres de grandes cidades brasileiras, o que pode gerar no público receptor a ideia de uma nação extremamente subdesenvolvida, desprovida de qualquer tipo de infraestrutura ou serviço básico urbano. A Venezuela nos é apresentada como uma nação governada por um ditador sanguinário, em constante estado de caos, com toda a população faminta e onde não há eleições minimamente livres ou respeito aos direitos humanos fundamentais. A África é generalizada como um continente de pobreza extrema e paisagens selvagens, como se lá não houvesse grandes centros urbanos. Por outro lado, como os Estados Unidos e as principais potências europeias são retratados somente a partir de aspectos positivos, muitos telespectadores podem encontrar dificuldades em compreender que em países desenvolvidos também existem bolsões de pobreza.

Já as personalizações limitam a política institucional a indivíduos, não levando em consideração os interesses econômicos, culturais e religiosos que estão por trás das relações internacionais. De acordo com o professor aposentado da UFSJ Guilherme Jorge de Rezende, “é preciso muita disposição mental e complexos exercícios reflexivos para compreender os noticiários sobre temáticas intricadas. Exige-se um pensamento demasiadamente abstrato. Todavia, tudo se simplifica quando os fatos, os problemas e as ideologias se personificam”. Nas reportagens sobre os antagonismos entre Estados Unidos e Coreia do Norte, por exemplo, reflexões mais aprofundadas são substituídas pelo “confronto pessoal” entre dois “mimados” chefes de Estado: Donald Trump e Kim Jong-un.

Seguindo essa perspectiva editorial, o próprio Manual de Redação da Rede Globo de Televisão recomenda: “não escreva sobre coisas. Escreva sobre pessoas que tiveram ideias ou fizeram coisas. […] A briga entre homens é mais interessante que a briga entre dois exércitos”.

Em paralelo às personalizações, têm-se as tipificações. Ernesto “Che” Guevara é o “guerrilheiro”. Slobodan Milosevic é o “carniceiro dos Bálcãs”. Margaret Thatcher é a “dama de ferro”. Hugo Chávez é o “caudilho”. Nas atuais prévias do Partido Republicano nos Estados Unidos, Bernie Sanders é o “radical”; enquanto seu rival, Joe Biden, é o “moderado”. E, como já mencionado anteriormente, Nicolás Maduro é simplesmente o “ditador” (apesar de ter sido eleito democraticamente).

Através de recursos metonímicos, a grande mídia consegue difundir os interesses das grandes potências, sobretudo dos Estados Unidos, como se também fossem os interesses de todo o planeta. O termo “comunidade internacional”, constantemente utilizado em discursos geopolíticos, não está relacionado a um possível consenso entre as diferentes nações do planeta sobre uma determinada questão geopolítica. Ele geralmente reflete tacitamente os posicionamentos dos Estados Unidos e seus aliados.

Um breve levantamento de algumas afirmações presentes nos noticiários brasileiros ilustra essa prática linguística: “O alvo da ameaça é o Irã – que desenvolve um programa nuclear à revelia da comunidade internacional” (revista Época). “Oposição e comunidade internacional acreditam que a Constituinte vai deixar o governo de Maduro ainda mais autoritário” (GloboNews). “A Venezuela está no centro das atenções do mundo. A preocupação da comunidade internacional é com os rumos que o governo Nicolás Maduro está tomando e a violência que essa trajetória tem alimentado nas ruas” (Rede Globo).

Não obstante, o emprego de metáforas – isto é, a transferências de palavras entre domínios cognitivos diferentes, alterando assim os sentidos originais aos quais foram destinadas – é um recurso bastante utilizado para desumanizar determinados povos. Nos noticiários internacionais da imprensa brasileira, frequentemente ocorrem migrações de termos dos campos da antropologia e da biologia – como “selvagens”, “bárbaros”, “líderes tribais”, “clãs” e “bandos” – para o campo da geopolítica, como referências aos muçulmanos. Tais práticas linguísticas, além de promoverem uma conotação animalesca em relação aos seguidores do Islã, levam implicitamente à concepção de que a sua civilização estaria em um estágio pré-civilizacional.

Para quem tem preguiça mental, mas quer participar de todas as rodas de conversa e debates nas redes sociais sobre qualquer tipo de assunto, a mídia oferece “opiniões prontas” sobre a geopolítica global. Basta assistir passivamente programas como GloboNews Internacional, Sem Fronteiras e Manhattan Connection e repetir fielmente (sem questionar) o que dizem articulistas “isentos” como Demétrio Magnoli, Jorge Pontual, Arnaldo Jabor ou Guga Chacra.

Diante dessa realidade, analisar criticamente os noticiários é uma condição indispensável para o completo exercício da cidadania. É fundamental questionar o porquê de a imprensa hegemônica apresentar quase sempre uma visão unidimensional sobre as relações internacionais. Nesse sentido, o sujeito que possui o mínimo conhecimento sobre o maquinário midiático dificilmente será um alvo vulnerável para o pensamento dominante, pois conhecer os códigos linguísticos utilizados pelo emissor amplia consideravelmente as possibilidades de leitura do decodificador. Portanto, parafraseando o saudoso Alberto Dines, quem desconstrói os atalhos cognitivos presentes nos discursos geopolíticos da imprensa brasileira nunca mais vai assistir aos noticiários internacionais do mesmo jeito.

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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Autor dos livros A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes (parceria com Vicente de Paula Leão) e 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático (em processo de edição), ambos pela editora CRV.