Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Faltam motivos para consumir notícias

O título da música do Tim Maia (“Me dê motivo”) fala da desilusão amorosa do sujeito que vacila em aceitar que o mundo encantado do amor que vivia se arruinou e para o autoconsolo invoca o refrão: “Me dê motivo para ir embora”. Certamente, a letra não tem relação com o jornalismo, mas serve bem para ilustrar e falar do atual noticiário que nos servem. Para encaixá-la, basta uma pequena adaptação: dê-nos motivos para usar nosso tempo e continuar consumindo as notícias distribuídas pelo jornal, rádio e televisão.

Desde o século 19, quando o jornalismo partiu para conquistar o grande público, começou o apelo aos assuntos de crimes, escândalos, emoções fortes e endeusamento das celebridades. Essa base tem se mantido e hoje acrescido às informações da previsão do tempo, trânsito, esporte e as tão previsíveis features – matérias leves sobre assuntos agradáveis ou inusitados no encerramento do rádio e do telejornal. Aliás, até na cobertura dos atentados terroristas se aplica o roteiro previsível – uma das primeiras coisas que a imprensa espera é quem vai assumir a autoria dos ataques e aí se dá ampla publicidade para as fontes, justamente o que os terroristas querem.

Após se gastar um bom tempo acompanhando tal tipo de jornalismo pasteurizado, a sensação que se tem é de mal-informado.

Este modelo editorial praticado pelas organizações tradicionais de comunicação usa a informação como pretexto para vender a mercadoria e serviço dos anunciantes. Essa forma de tratar o noticiário já foi alvo de preocupação dos escritores Bill Kovach e Tom Rosenstiel em 1997, quando, junto com outros 23 profissionais da comunicação, levantaram as discussões no Comitê dos Jornalistas Preocupados e, posteriormente, publicaram as conclusões no livro Os Elementos do Jornalismo: o que os jornalistas devem saber e o público exigir. Segundo os autores, o noticiário inserido em uma lógica puramente comercial – e com a incredulidade por parte dos leitores – acaba dissolvendo o jornalismo independente no meio de informações comerciais e na sinergia da autopromoção.

Outra consequência disso é que os jornalistas se sentem incentivados a escrever matérias que vendam – rendendo bônus – e tolhidos em produzir notícias que possam afetar os interesses econômicos das empresas jornalísticas e dos patrocinadores. Assim, os interesses dos anunciantes e o espaço publicitário podem se tornar mais importantes que a notícia.

A mesma preocupação foi suscitada pelo ator Pedro Cardoso em entrevista recente à Folha de S.Paulo. Cardoso faz esta constatação. “O verdadeiro programador da TV não é nem o administrador nem os artistas, mas o mercado publicitário. E a publicidade tornou-se por excelência a linguagem da falsidade. O dinheiro dita a mensagem que vai circular.”

Na mesma entrevista, o ator avança e traz a discussão para a comunicação online. “A internet não investiga e não oferece caminho às razões pelas quais a humanidade não ouve.” Para concluir o tópico, faz uma reflexão sobre as redes sociais: “Sua aparente liberdade esconde um enorme interesse comercial. A humanidade inteira produz conteúdo para Google, Facebook, Instagram. A veiculação daquela expressão tem como resultado o enriquecimento de uma empresa. E toda vez que há um negócio, certamente há um cerceamento da liberdade. Mas é uma válvula de escape, ao menos.”

Virada do jornalismo

Desde o final do último século, relatam Kovach e Rosenstiel, os líderes do jornalismo nos EUA se converteram em homens de negócios, deixando o interesse público em segundo plano. Conforme os dois, esse fato é mais grave porque passa despercebido à primeira vista, embora enfraquecendo a ligação entre cidadão e jornalistas na imprensa moderna. A mudança ainda diminuiu a qualidade e a habilidade dos profissionais, logo afetando a credibilidade e explicando o porquê as pessoas estão perdendo a confiança na imprensa.

O crescimento da banda larga e da internet tem aumentado a quantidade de informação disponível e ao mesmo tempo a fragmentada, o que para os pesquisadores americanos têm dado mais poder às fontes sobre os jornalistas e, por conseguinte, transformado argumentos baratos e polarizados em reportagens, criando a cultura do entretenimento e deslocando assim a função do jornalista de selecionar o relato veraz e confiável do dia, fomentando apenas o jornalismo de afirmação e esmagando o jornalismo de verificação.

Para ilustrar essa mudança, os escritores citam uma frase comparativa no livro Os Elementos do Jornalismo. “O entretenimento e o comércio online são hoje o que o aço e a indústria química eram nos anos 30.” Por causa disso, agora o público tem mais necessidade de encontrar o sólido e conclusões num contexto incerto, logo aumentando o bom senso e a responsabilidade do jornalismo de decidir o que é importante para o cidadão.

Por isso e pela função social do jornalismo, não pode haver obstáculo na hora de cavar a informação e contar a veracidade, mesmo à custa de outros interesses financeiros do dono do jornal – caso queira ser fonte de credibilidade na sociedade, ressaltam Kovach e Rosenstiel. Isso porque há um acordo implícito (contrato fiduciário) com o público que garante a credibilidade, que as críticas de um filme e de um restaurante sejam honestas, e não influenciadas por um anunciante, ou refletindo interesses particulares, por exemplo.

Credibilidade

Cada geração pode criar seu próprio jornalismo, mas a finalidade precisa permanecer a mesma, afirmam Kovach e Rosenstiel: “fazer saber” e contar a verdade para as pessoas terem informações para sua independência e se autogovernarem – sendo a verdade um compromisso permanente do jornalista para produzir notícias seguras e dar sustentação ao contrato pragmático fiduciário.

Outro aspecto a ser observado para a serenidade na produção da notícia é que o acontecimento deriva historicamente destas áreas, conforme Miquel Alsina em A construção da notícia: política, social, literária, científica – na espera pública ou prova –, sendo os demais temas derivados desses. Também não confundir o importante e o interessante e vice-versa. O importante é aquilo que afeta nossa vida no dia-a-dia e em longo prazo, não só de forma local e pontual. O ranking do Guinness Book pode ser interessante; todavia não é importante.

Para tanto, Kovach e Rosenstiel destacam já no prefácio da obra alguns procedimentos imprescindíveis no processo produtivo do jornalismo. Entre as tarefas, estão:

-Lealdade com o cidadão;

-Independência relativamente aos alvos de cobertura jornalística;

– Monitorar o poder;

-Espaço para a crítica e compromisso público;

-Esforçar-se para tornar interessante e relevante o que é significativo;

-Produzir notícias aprofundadas e proporcionais;

-Disciplina da verificação.

Sobre o último item, de acordo com os autores, é a verificação que separa o jornalismo de outras formas de comunicação. Por isso oferecem algumas sugestões que conduzem à verificação: nunca acrescente nada que não exista; não engane o público; seja o mais transparente possível sobre seus métodos e motivos; confie só no seu próprio trabalho de reportagem e seja humilde.

Com tudo isso, pode até não se alcançar a verdade, mas o público sabe reconhecer se se chegou perto – quando fontes autorizadas, pesquisa exaustiva e métodos transparentes foram aplicados no processo e de modo honesto.

Aí estão, portanto, alguns motivos por que o jornalismo não pode ser só guiado por forças econômicas, lucros e interesses especiais. Precisa ser encarado como uma missão, caso queira ser um suporte e um apoio para formar e construir a cidadania e a democracia, levando às pessoas informações que sejam dignas de confiança e credibilidade. Senão fica no falar sem dizer nada, como o encerramento da música do Tim Maia: Tchu! Tchururururu!

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Elstor Hanzen é jornalista