Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Notícias repetidas, notícias inexplicadas

São Paulo, enchente e falta d´água. Os dias que antecederam o Carnaval vieram marcados por esse descompasso inacreditável. Na mesma cidade, milhares de famílias viram gente e mobília arrastados por inundações urbanas e outras padeceram sem abastecimento, vendo suas caixas d´água secarem. O quadro me lembrou São Paulo: crescimento e pobreza, livro que Vinícius Caldeira Brant, então no Cebrap, organizou a pedido da Comissão Justiça e Paz, então presidida por Margarida Genevois. Lá se vão vinte, trinta anos. A metrópole crescia em desordem, gerando fortunas e miséria de uma só golfada. A pobreza não era uma premissa do atraso, mas sua conseqüência. O Carnaval nos engole e o cotidiano na terra da garoa torrencial desafia o senso comum. É contraditório, excruciante.


Pouco antes de Vinícius, Fernando Henrique Cardoso, que depois fundaria o Cebrap, escrevera algo sobre uma possível teoria do subdesenvolvimento, uma teoria da dependência. Não sei por onde passaram suas formulações. Li pouca coisa dessa obra, e do pouco que li acabei me esquecendo. Recentemente, penso mais na ‘Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado’, de Leon Trotsky. Os meus amigos capitalistas que me perdoem, mas em muitos aspectos sou trotskista até hoje. Eles também, sem o saber: lucram com o desenvolvimento desigual e combinado. Eles são (trotskistas) sem nunca ter sido.


O que mais nos faz falta hoje é uma teoria de outra ordem: a teoria do subdesenvolvimento, necessariamente desigual e perversamente combinado. Crescimento no bolso e pobreza na carne. Crescimento que fabrica pobreza e afoga gente.


A Paulicéia inventou assim, meio sem querer, a ‘Lei do Subdesenvolvimento Desigual e Combinado’. O resto é panfleto. O resto é notícia de jornal, que registra um mundo que não compreende. O senso comum se manifesta pelo espanto diante do previsível, e como condescendência em relação ao que seria intolerável.


Teorias não vendem jornal


Os praticantes do jornalismo se encontram na franja mais ruidosa do senso comum descombinado e sempre tão igual. São eles que veem primeiro, que se chocam primeiro com o fato espalhafatoso – e também são eles os que esquecem primeiro, não veem as leis internas do descompasso medonho; são eles os que deixam pra lá, antes dos demais: isso não importa, não é notícia.


Jornalistas, especializados em novidades, comprazem-se em ser avessos às teorias. Há nisso uma virtude própria do ofício: se se ocupassem do já sabido, perderiam a sensibilidade à notícia e, aí, deixariam de escrever a História a quente, ou seja, deixariam de procurar revelar o que ainda está oculto. Graças à sua forme por novidades, jornalistas são ágeis, elétricos, antenados, como se gosta de dizer.


Ao mesmo tempo, há nessa aversão às teorias um atraso: por desprezar o conhecimento de mais fôlego, talvez se deixem aprisionar com mais facilidade pelas espumas da superfície, mesmo quando elas apenas reeditam o já acontecido – e o já acontecido deveria ser ainda menos relevante que o já sabido. Enchentes são fatos repetidos e repetíveis. Não que elas devessem ser ignoradas nas manchetes, de modo algum. Acontece que as causas das enchentes, menos as causas hídricas, pluviais ou de engenharia (tudo isso aparece em infográficos cheios de detalhes técnicos), e mais as causas econômicas, migratórias, aquelas decorrentes da especulação imobiliária e das leis que (não) regulamentam o uso do solo urbano, essas parecem sempre mais inadequadas ao repertório jornalístico, como se fossem apenas assunto para coletâneas do Cebrap. Por isso, também, a informação jornalística ainda tangencia muito pouco o conhecimento.


Meninos envelhecidos


Fiz minha graduação em jornalismo e também em Direito. Cursei duas faculdades. Antes dos 30 anos, o que muito me chamava a atenção era o modo pelo qual os jovens advogados assumiam um gestual de gente velha. Não apenas no vestuário, mas também no modo de falar e de mover pausadamente as mãos enquanto falavam, causídicos ou juízes com menos de 30 anos se assemelhavam a anciãos. Isso não brotava do DNA de cada um deles, por certo, mas da cultura em que tinham mergulhado: a cultura jurídica se abastecia da sabedoria dos mais velhos, e isso se traduzia nos modos. Imitar quem sabe era imitar os sexagenários.


Recentemente, olho para os jornalistas da minha geração e de outras, mais avançadas, e vejo neles meninos de cabelos brancos. Ainda conservam a vivacidade, o brilho nos olhos diante da informação de bastidor, a centelha, digamos assim, da futrica. Mas pouco nos restou da sabedoria dos mais experientes. Foram tantas as revoluções de linguagem e de estilo que acabamos por deixar os nossos mestres esquecidos no acostamento. Não queremos imitá-los. Não quisemos cometer o pecado de parecer velhos. Ao contrário, em poucos ofícios, como no nosso, a juventude foi tão celebrada, tão cultuada como o estado de graça de um profissional. Talvez, nisso, apenas os publicitários nos superem: lá estão eles, à beira dos setenta anos, com suas fantasias de adolescentes. Na publicidade, porém, esse desvio gestual é mais compreensível, e até mesmo desejável. A publicidade vive de seduzir as platéias juvenis. Mas nós, os jornalistas, deveríamos nos beneficiar muito mais da maturidade – e eis que a abolimos, como se ela fosse um defeito. Somos meninos envelhecidos e atônitos: não sabíamos que a nossa meninice tinha um prazo de validade.


O mar, quando quebra na praia


As teorias, essas coisas de velho, ficaram malquistas em nosso fazer diário. O discernimento que só chega com a idade virou um vício a ser descartado. Com ele, descartamos também os subterrâneos do pensamento e os fios menos óbvios das histórias de cada dia. É um dado triste, pois esses fios poderiam nos ajudar a ver melhor a conformação das notícias – o que realmente existe nelas de fato novo e o que nelas indica a resistência tardia de velhos sintomas.


Na terra das garoas inundantes morre-se afogado e de sede no mesmo dia. Há décadas. E os jornais ainda acham que isso é falta de piscinão. Os jornais, os telejornais e seus públicos.


Não há de ser nada. Vai ver, ando de mau humor. Estou agora numa praia da Bahia. De onde escrevo, o mar se abre para mim. É muita água. É muita história natural concentrada. As ondas vêm com calma em minha direção e se desfazem, displicentes, a cinqüenta metros da varanda. Aqui, a chuva cai de modo cortês. Aqui não falta água para os hóspedes. A lei do desenvolvimento desigual e combinado, que a essa altura me parece um ensinamento esotérico, explica o balanço do mar e o conforto dos turistas. Mas o balanço do mar não é notícia. E turistas são apenas turistas, mesmo quando são jornalistas em férias.

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Jornalista, professor da ECA-USP