Quando era editor da revista de fim de semana do jornal britânico “The Guardian”, Alan Rusbridger passou alguns dias nos EUA e, ao voltar a Londres, escreveu um memorando ao então editor-chefe do jornal, Peter Preston. “Descobri essa coisa que tem por lá, chamada internet, e estou profundamente convencido de que isso vai mudar tudo.” Era 1993. Dois anos mais tarde, Rusbridger foi eleito pela redação do “Guardian” para substituir Preston. De lá para cá, transformou o oitavo diário britânico em circulação impressa numa marca internacional, fez um trabalho que é reconhecido como uma das principais referências do jornalismo contemporâneo (em termos editoriais e de modelo de negócios) e se tornou um dos editores de jornais mais admirados de todos os tempos, ao lado de Ben Bradlee, editor-executivo do “Washington Post” por mais de 20 anos.
Com Rusbridger, o “Guardian” viveu de modo intenso as novidades e incertezas que confrontam a indústria do jornalismo desde antes da virada do milênio. Entre 1995 e 2015, a tiragem do jornal impresso caiu pela metade. Em compensação, o “Guardian” online foi às alturas. Hoje, o site soma 120 milhões de visitantes únicos por mês, mais que o “New York Times”, e suas receitas publicitárias se mantêm em crescimento. O jornal não ficou imune à crise do setor. O quadro de jornalistas e editores encolheu, mas a independência jornalística e a reportagem investigativa não saíram da pauta de Rusbridger.
Exemplos: produção de centenas de matérias sobre corrupção governamental e empresarial no Reino Unido e as famosas coberturas do Wikileaks de Julian Assange, dos grampos telefônicos dos tabloides sensacionalistas britânicos e do vazamento de informações de espionagem pelo governo americano. Foram dezenas de prêmios conquistados, entre eles o Pulitzer, em 2014, pela cobertura do caso Edward Snowden.
Aos 61 anos, Rusbridger está desembarcando dessa “montanha-russa maravilhosa” que foram seus 20 anos à frente do “Guardian”. Embarca a nova editora, Katharine Viner. Ele parte para ensinar jornalismo na Índia no mês que vem e daqui a um ano assumirá a direção do Scott Trust, fundo sem fins lucrativos que tem o controle acionário do jornal.
Na semana passada, no penúltimo dia de trabalho, Rusbridger interrompeu a arrumação de seu escritório na redação, no centro de Londres e, em meio a caixas em que também guardava peças alusivas a prêmios de jornalismo, conversou com a reportagem do Valor.
De saída do “Guardian”, sua última contribuição é a campanha focada nas mudanças climáticas “Keep it in the ground”. O jornal está misturando ativismo com reportagem para estimular o desinvestimento de empresas que exploram combustíveis fósseis. Por que resolveu ir à caça dessas grandes corporações petrolíferas?
Alan Rusbridger – No jornalismo, sempre foi muito fácil escrever sobre o que aconteceu ontem, mas falhamos em escrever sobre o que pode acontecer com a humanidade em 20 anos, por exemplo. A campanha provou ser uma maneira de produzir muitas matérias, inclusive de primeira página, que ajudam as pessoas a se conscientizar sobre o tema das mudanças climáticas e, eventualmente, a reagir. Se não me engano, desde que iniciamos a campanha, no começo do ano, pelo menos 200 empresas e instituições iniciaram um processo de desinvestimento de ações e títulos de empresas ligadas à indústria de combustíveis fósseis. Claro que não podemos levar crédito por tudo, mas pessoas com quem me encontrei na comunidade financeira dizem que a campanha provocou grande impacto. Gente que nunca refletiu sobre onde aplica seu dinheiro agora começa a pensar. Gerentes de fundos que nunca foram questionados por seus clientes sobre investimentos em companhias de petróleo começam a ter que justificar suas escolhas. Não lancei a campanha para todo mundo deixar de investir em empresas de petróleo imediatamente. Meu objetivo foi encontrar receita jornalística para trazer o tema das mudanças climáticas e do desinvestimento para o radar. Acho que conseguimos mostrar que combustíveis fósseis podem ser vistos como o tabaco ou o apartheid.
Sempre lhe perguntam sobre o futuro do jornalismo. O jornalismo engajado faz parte desse futuro?
A.R. – Sim. Nos últimos dez anos tentamos explorar vários tipos de ligações com nossos leitores. Não pensamos neles apenas como agentes passivos. Nós os estimulamos a contribuir editorialmente. Aceitamos o fato de que, em muitos assuntos, sabem mais do que a gente. Criamos abordagem aberta. Na cobertura de ciência e ambiente temos repórteres que não são jornalistas, são profissionais especializados ou ambientalistas. Durante a campanha de desinvestimento, tivemos 210 mil assinaturas de apoio. Perguntamos a cada um desses interessados se estariam dispostos a colaborar de forma mais efetiva e houve um retorno de 6 mil pessoas, numa interação que começou e terminou no site do “Guardian”. Designers gráficos disseram que poderiam fazer material de divulgação, professores e cientistas se dispuseram a escrever sobre o tema de forma voluntária. Muitos leitores escreveram cartas para instituições e empresas, demandando o desinvestimento em ações de empresas de combustíveis fósseis. Alguns jornalistas acham que o jornalismo deveria apenas “reportar”. Os leitores, num assunto como esse, gostam de se envolver, sentir que podem fazer alguma coisa. Claro que jornalismo ativista ou jornalismo engajado não funciona para todos os assuntos, mas, nesse caso ambiental, estamos com a ciência, há pouco espaço para subjetividades.
O “Guardian” não tem um dono. É propriedade de um fundo sem fins lucrativos de mais de 75 anos criado com o objetivo exclusivo de manter o jornal operando com independência editorial. Isso ajuda a investir nesse tipo de iniciativa? Aliás, o Scott Trust Fund está desinvestindo de empresas de combustíveis fósseis?
A.R. – O fundo tem meta de três a cinco anos para fazer o desinvestimento. Não ter acionistas, não ter gente querendo certo nível de lucro ou certo crescimento nos lucros ajudou o “Guardian” a agir de maneira mais flexível no contexto de tantas mudanças e investir no futuro. Começar o dia sem se preocupar com números, só pensar na melhor maneira possível de fazer um bom jornalismo muda completamente a maneira de entender por que fazemos isso.
Mas a operação do jornal dá prejuízo há vários anos. Até que ponto isso é sustentável?
A.R. – No momento, nossas perdas estão na casa de £ 20 milhões [mais de R$ 95 milhões], mas as reservas do fundo estão perto de £ 1 bilhão [R$ 4,85 bilhões]. As receitas com publicidade no meio digital estão crescendo. Consideramos que estamos numa posição mais sólida e sustentável em comparação com os últimos anos. Mas precisamos ser cuidadosos com o dinheiro, não sabemos como serão nossos custos mais para a frente e o futuro do setor é muito complicado.
O senhor se refere ao fim do jornal impresso?
A.R. – Nenhuma decisão sobre os rumos do jornal impresso será imediata, porque os indicadores econômicos mostram que, no momento, devemos ter o impresso. Esse é um grande tema, que estará na agenda do Scott Trust talvez em 10, 15 anos. Pode ser uma decisão puramente financeira, mas o mais importante é o papel do fundo de proteger o “Guardian” e sua independência editorial.
Edições impressas muitas vezes continuam a financiar o avanço do jornalismo digital, mas parece que as receitas de publicidade não vão além de 75% provenientes do impresso e 25% do digital. Ao mesmo tempo em que há um sentimento de ansiedade sobre o fim do impresso, os sites dos jornais estão longe de sustentar o negócio. O que esperar para os próximos anos?
A.R. – Alguns jornais ainda não se movimentaram porque o dinheiro do impresso continua entrando, apesar das quedas de circulação e receita, e a maioria se movimentou tarde demais em relação ao mundo digital. No ano passado, o faturamento do segmento digital do “Guardian” cresceu mais de 25%, para £ 80 milhões [cerca de R$ 410 milhões], bem mais de 30% do total. Estamos fortalecendo nosso jornalismo digital, com mais ênfase que nossos concorrentes no mundo todo. O fim do impresso é inevitável, os leitores estão ficando mais velhos e os jovens não vão substituí-los. Uma parte do mundo corporativo [anunciantes] quer ir para o mundo online. Haverá muito dinheiro indo para o digital nos próximos anos, e sempre quis que o “Guardian” estivesse preparado para tirar vantagem desse momento.
Por isso decidiu distribuir conteúdo no Facebook?
A.R. – Eles vão nos dar 100% das receitas com publicidade. Então é um bom negócio. Fortalecerá nossa área digital. Há pelo menos cinco, seis anos, quando começaram as conversas sobre fechar conteúdo digital, os “paywalls”, o “Times” de Londres escolheu cobrar por tudo, direção completamente diferente da nossa. A audiência digital deles é de 280 mil usuários por dia, algo irrelevante para gerar receita publicitária, enquanto a nossa é de 7 milhões, o que é mais representativo. Mas e se a gente for comparar com a audiência do Google? Do Twitter? Decidimos não insistir em que as pessoas viessem à nossa plataforma para ler o “Guardian”. Se preferirem, podem acompanhar pelo Facebook, Tumblr, Flipboard. É um experimento, como tudo quando falamos de novos modelos de negócio em jornalismo hoje. Se o acordo com o Facebook não der certo, vamos continuar tentando.
Mas o conteúdo oferecido no Facebook não será prejudicado?
A.R. – Talvez impacte um pouquinho, pois a audiência do Facebook é diferente, teremos que customizar nosso conteúdo um pouquinho. Mas não significa que vamos comprometer nossa linha editorial, nosso jornalismo.
Como transformou o “Guardian” numa marca internacional?
A.R. – Foi meio acidental [risos]. Por coincidência, dois terços dos nossos leitores estavam fora do Reino Unido. Claro que a maneira pela qual fomos atrás desses leitores não foi acidental. Muitos jornais reagiram à crise do setor nos últimos anos ficando mais paroquiais, com um pensamento simples: manter profissionais no exterior é muito caro. O “Washington Post”, por exemplo, era um grande jornal internacional e, por uma decisão de negócio, decidiu se transformar num jornal mais local. Isso é verdade para muitos grandes jornais americanos. Diários da Filadélfia, de Chicago, Los Angeles sempre tiveram correspondentes no mundo inteiro, mas decidiram cortar custos. Há dez anos, um leitor de língua inglesa vivendo em qualquer parte do mundo tinha como principal oferta de notícia a BBC, o “New York Times” e o “Guardian”. Decidimos que seríamos um jornal internacional, que era uma forma de entender e interpretar o mundo. Foi fundamental ter por trás a estrutura do Scott Trust para essa ideia.
Foi uma decisão estritamente editorial, que passou ao largo da crise do setor?
A.R. – Tivemos períodos de cortes e contenção de despesas, nunca estivemos imunes aos problemas de queda de circulação e de receita. Mas uma das coisas maravilhosas de editar este jornal é que nunca ninguém me disse: “Pare de gastar com matérias investigativas!” Ou: “Por que esse repórter só escreveu uma matéria no último ano?” Isso acontece na maioria dos jornais. Cortaram correspondentes, repórteres mais experientes e caros. No “Guardian”, temos correspondentes em várias partes do mundo, repórteres especializados. Me sinto abençoado e afortunado. Mas, no fim das contas, é preciso ter ações comerciais inteligentes para dar suporte à ambição editorial. Se chegamos a 7 milhões de leitores por dia, como aproveitar isso comercialmente? Você tem que perguntar para o pessoal que cuida do dinheiro.
Cortar repórteres e não investir em reportagem são decisões equivocadas?
A.R. – Temos que ser realistas. Talvez existam menos vagas para jornalistas no futuro em comparação com o que era no passado. Não estou dizendo que o setor nunca precisará cortar vagas, nós mesmos tivemos cortes na redação. Perdemos 10% dos repórteres e editores nos últimos três anos. É preciso ser cuidadoso, ponderar sobre quem o jornal está perdendo e trazendo. Mandar embora os profissionais mais experientes e mais caros significa que a decisão é abrir mão de uma camada de experiência e conhecimento que é ruim perder. É preciso encontrar áreas em que talvez as perdas não sejam sentidas com tanta ênfase.
Qual o valor e o preço do jornalismo independente que o “Guardian” pratica?
A.R. – Não há uma correlação direta entre as coberturas do caso Snowden, Wikileaks ou dos grampos dos tabloides e o aumento da circulação e do desempenho do jornal, seja papel ou digital. Em termos de preço, o departamento de contabilidade vai dizer que há zero de retorno, vão olhar para isso como custo, mas o que aconteceu foi que, nos últimos cinco anos, as pessoas olham para o “Guardian” e dizem que essas coberturas definem o que o jornal é hoje. Isso gera valor comercial, pois acabamos tendo mais leitores, o público pensa que é algo valioso para a sociedade. É gerado um tipo de “soft value”.
O senhor mencionou as três coberturas mais emblemáticas nos 20 anos em que esteve à frente do jornal. O que aprendeu com elas?
A.R. – É isso que temos que fazer, é por isso que estamos aqui. Se não acredita no valor da informação, vá procurar outra profissão. Curiosamente, as três histórias têm relação com privacidade, fluxo de informações. Houve confusão, particularmente no caso Snowden. Por exemplo, o Estado diz que as revelações de espionagem não são de interesse público e comprometem a segurança nacional e de indivíduos. Então deveríamos ouvir o Estado e não publicar nada? O jornalismo anda separado do Estado. Está lá para fiscalizar o que o Estado faz, não para aceitar a definição do Estado para o que é ou não de interesse público. Outra coisa que liga essas histórias e todas as outras em que investimos nesses 20 anos, como a corrupção na polícia de Londres ou sonegação de impostos de grandes empresas, é que há algo errado no poder que precisa ser constantemente examinado. Mas as áreas do Estado que deveriam estar fazendo isso – polícia, agentes reguladores, Parlamento –, não estavam fazendo sua parte. Acabou sobrando para o jornalismo. Essas coberturas são, simplesmente, as funções do bom jornalismo.
O senhor lidou com muitos processos por difamação e até censura por causa de atitudes editoriais assumidas pelo jornal.
A.R. – O jeito de tratar do britânico é, muitas vezes, nada ameaçador. Não tem pé na porta, não tem arma, é tudo muito educado. No caso do Snowden, o governo [David] Cameron nos disse que não estava gostando do que a gente estava fazendo. Respondemos que iríamos continuar. Eles disseram, de novo que, realmente, não estavam gostando. No fim, destruímos os computadores com os arquivos do caso armazenados sob a supervisão deles.
Buscou aconselhamento legal para fazer isso?
A.R. – Não. Se não entregássemos ou destruíssemos os arquivos, o MI5 [serviço secreto britânico] deu a entender que daria um passo diferente, usariam a força policial ou entrariam na Justiça. Mandei tudo para Nova York, porque lá há proteção da Primeira Emenda. Não precisei de aconselhamento legal, foi apenas senso comum. Disse para o governo que era estupidez brigar por aquilo, a gente ia continuar publicando independentemente da pressão, seja pelo “Guardian US” [a edição americana] ou parceiros.
O “Guardian” então buscou parceria com a agência de jornalismo investigativo ProPublica. O que acha dos projetos alternativos de jornalismo digital atuais?
A.R. – Alguns deles entendem o meio melhor do que os jornais impressos. Acho que é sempre bom olhar para eles, ProPublica, Vice, Buzzfeed, para ver o tom que estão usando, suas experiências. São ágeis na parte técnica, têm linguagem dinâmica, usam recursos de vídeo, gráficos, interatividade. Acho que podemos aprender muito com eles. Mas nenhum deles conseguiu desenvolver um modelo de negócios eficiente e sustentável. Na verdade, ninguém descobriu a bala de prata. Ainda estamos aprendendo a ser digitalmente espertos. Os desafios do bom jornalismo estão aí para ensinar.
Nesse caso, voltamos à reportagem? É nela que está a resposta para esses desafios?
A.R. – Costumo repetir que sim. Repórteres são como abelhas. Quando desaparecem é porque está tudo acabado. Quando os repórteres se vão é a mesma coisa. A reportagem é incrivelmente importante e nunca vai acabar. No passado, a gente escrevia uma matéria e ia beber no pub. No dia seguinte, uma nova apuração e mais uma matéria. Escrever era o fim do processo. Hoje, os jornalistas mais espertos usam o Twitter e outras mídias sociais para dizer o que estão apurando, registram os inputs dos seguidores. No momento em que ele aperta o botão e publica a matéria, ela está, na verdade, apenas começando. Há comentários sugerindo acrescentar algo ou apontando erros – há esse mantra, hoje em dia, de que sabemos menos que o leitor. Lidar com esse fluxo de informações é importante, porque quem está fechado em seu “paywall” não está interessado nas contribuições, mas no fim da história. No “Guardian”, achamos que esse processo é mais interessante, porque estamos aprendendo mais com a apuração, que fica mais rica a todo momento.
Leia também
De editor-chefe a guardião do cofre – Angela Pimenta
‘Adeus, leitores’ – Alan Rusbridger
***
Luciano Máximo, para o Valor Econômico, em Londres