Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Liberdade em jogo

Se depender do que propõem alguns deputados brasileiros, a internet poderia funcionar como uma TV a cabo: quem pagasse mais teria direito a acessar mais serviços. Empresas como Google, Facebook e Twitter teriam a obrigação de remover conteúdo dos usuários em até 24 horas, caso gravadoras, estúdios de cinema ou emissoras de televisão detectassem pirataria – avaliações ficariam para depois. E os provedores de internet poderiam registrar o histórico de navegação de todos os seus clientes.

O cenário não é impossível – propostas assim foram apresentadas pelos parlamentares na última rodada de negociações do Marco Civil da Internet. Sem consenso, a votação foi adiada cinco vezes – a última na terça-feira (13/11). E o texto final tem mudanças que, para alguns, descaracterizam o projeto pensado para ser a “Constituição” que garantiria direitos dos usuários e criado num processo colaborativo.

O relator do projeto de lei, deputado Alessandro Molon (PT-RJ) passou a terça-feira reunido com parlamentares da oposição e da base do governo – porque nem nela houve consenso para a votação do projeto, elaborado pelo Ministério da Justiça em 2009 e discutido em consulta pública em 2010.

Nova tentativa

Para pessoas ligadas ao projeto entrevistadas pelo ”Link”, ativistas e empresas de internet que defendem o projeto não têm tanta influência quando outros setores, como o de telecomunicações e o da indústria cultural.

É por isso que os dois pontos mais polêmicos no Marco Civil são os que sofreram modificações de última hora.

Um deles é a neutralidade, princípio que garante que operadoras de conexão e os serviços de internet não podem discriminar os usuários de acordo, por exemplo, com o plano pago ou a localização geográfica. Todos têm de ter acesso aos mesmos serviços e conteúdo na web. Mas há exceções: ela pode ser quebrada por questões emergenciais ou técnicas. E é aqui que mora a briga: quem regulamenta isso? O Ministério das Comunicações queria que fosse a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). O relator do projeto optou por um decreto presidencial.

“(A neutralidade) é a maior garantia que se pode dar aos usuários da internet”, diz uma carta enviada a Molon, assinada por entidades como o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A regulamentação, para as entidades, deve estar “na esfera de maior submissão à visibilidade e ao controle público, dentro dos requisitos técnicos necessários e afastados quaisquer interesses econômicos privados capazes de contaminar o processo.”

Os deputados Ricardo Izar (PSD-SP) e Eduardo Cunha (PMDB-RJ) discordam. Eles apresentaram a mesma proposta: que na navegação está “facultada à contratação de condições especiais de tráfego de pacotes de dados, entre o responsável pela transmissão e terceiros interessados em provimento diferenciado de conteúdo”. Em outras palavras: a quebra da neutralidade para fins comerciais.

Os mesmos deputados propuseram equiparar provedores de conexão aos de serviços. Dessa forma, a lei trataria empresas como Net, Vivo e TVA da mesma maneira que Google e Facebook. E provedores de conexão poderiam guardar dados pessoas e histórico de navegação de todos os usuários, algo que a proposta original pretendia evitar.

“Eu acho que grande parte da proposta, que é criar segurança jurídica, se perde com isso”, diz Carolina Rossini, diretora de propriedade intelectual na Electronic Frontier Foundation. “Agora tudo fica no limbo, tanto os usuários quanto os provedores.”

Nesta semana haverá mais uma tentativa de votar o projeto. “Tem discussões técnicas, mas as questões são econômicas e políticas”, diz um dos responsáveis pelas negociações que não quis ser identificado. No momento, nenhuma hipótese é descartada.

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Remoção sem volta

Como não há nenhuma lei que regule a área, entidades e empresas de internet acabaram adotando espontaneamente no País o mecanismo conhecido pelo termo em inglês “notice and take down”, ou notificação e retirada.

Os detentores de direitos autorais enviam uma notificação a uma empresa, como Google ou Facebook, pedindo a remoção do conteúdo. A pessoa que postou é notificada e, se não assumir a responsabilidade – ou não quiser comprar briga com a empresa –, o conteúdo é removido. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o diretor de arte Pedro Pinhel, que perdeu 1,5 mil posts sobre música alternativa de seu blog, Original Pinheiros Style. A maioria dos posts se referia a músicos nem sequer lançados ou fora de catálogo, mas o blog, que ficava no Blogger, caiu na malha fina – e foi apagado pelo Google.

O mecanismo foi criado nos EUA para dar segurança para as empresas de internet operarem. Como são plataformas para o conteúdo gerado pelos usuários, sites como YouTube e Facebook não poderiam assumir a culpa pelo que terceiros postavam. O “notice and take down” deu a segurança jurídica para as empresas, mas tem um efeito colateral: a censura. Afinal, os usuários têm conteúdo removido – ou preferem removê-lo – a comprar brigas com a indústria. As avaliações ficam para depois ou nem sequer acontecem.

A expectativa dos provedores era que o artigo 15 do Marco Civil da Internet os isentasse da responsabilidade por conteúdo pirata. Mas a ministra da Cultura, Marta Suplicy, interveio na última hora para excluir os casos que envolvem direito autoral. Ou seja: fica tudo como está.

“Vamos manter o princípio que defendemos, que é o de notificação e retirada. Com uma simples notificação é muito mais inteligente. Nós temos a ideia de que quanto menos se judicializar a questão, melhor”, disse ao Link Roberto Mello, presidente da Abramus, entidade que recolhe direitos autorais de músicos.

Mas a mudança, que para o relator Alessandro Molon (PT-RJ) apenas isentou o Marco Civil, provocou críticas. A Associação Brasileira de Internet (Abranet) diz que a omissão dos direitos autorais “seguramente importará em casos de censura, sendo por essa razão absolutamente inconstitucional e atentatória à liberdade digital”.

Para Guilherme Varella, advogado do Idec, a omissão cria “um mecanismo que induz os provedores a excluir o conteúdo, a partir de uma simples notificação, para evitar serem responsabilizados”. “Caberá depois ao usuário prejudicado, geralmente com menos condições para isso, o ônus de procurar a Justiça para reaver seu conteúdo”, diz.

Os responsáveis pelo projeto argumentam que, na redação anterior, não há nada que proíba os provedores de continuarem removendo o conteúdo sem ordem judicial – eles apenas não seriam responsabilizados se deixassem de removê-lo após serem notificados por pirataria.

As empresas de internet maiores já adotam uma estratégia de atuação. Todas têm equipes jurídicas para avaliar o mérito das remoções. Só que as menores não têm essa estrutura. É aí que o mecanismo pode atrapalhar a inovação, segundo Carolina Rossini, diretora de propriedade intelectual da Eletronic Frontier Foundation (EFF), entidade dos EUA que defende a liberdade na web. “No Brasil, quem vai ter condição de trabalhar serão as empresas grandes, de grande poder econômico”, diz.

Carolina afirma que um modelo razoável seria o de notificação e retirada só com ordem judicial – que era a proposta original do Marco Civil.

Alternativa

Outro modelo, que dificilmente seria adotado no Brasil, é o de “notificação e notificação”, que tem um fim educativo e não punitivo. Afinal, a maioria dos usuários afetados é de pessoas comuns que sobem vídeos para mandar para os amigos. “Não estamos falando de crime organizado, mas da minha mãe, da sua mãe. É uma expansão da cultura analógica para a internet”, diz a diretora da EFF.

Nos EUA, por exemplo, grande parte das remoções seria enquadrada no “fair use” (uso amigável), uma exceção da lei que permite a cópia para fins privados. Mas o conteúdo é primeiro removido e os questionamentos ficam para depois – e poucas pessoas têm disposição para enfrentar judicialmente o sistema, mesmo que a lei esteja do lado delas.

“Um dos grandes problemas é que nem todas as legislações dizem para o provedor salvar o conteúdo. Então, mesmo que o usuário ganhe a ação, o conteúdo se perde”, diz Carolina, que lembra que os EUA exportam o mecanismo para outros países em tratados internacionais.

O Marco Civil recebeu propostas ainda mais duras, como a de que os provedores devem retirar imediatamente e assumir a culpa pelo conteúdo mesmo assim, ou retirar o conteúdo em 24 horas sem direito de resposta do usuário. Como nada foi regulamentado no texto, a prática continua a mesma, em que o mecanismo já é adotado no País.

Reforma

Marta Suplicy disse em entrevista recente ao Estado que já tomou a decisão pelo mecanismo de notificação e retirada. “É uma maneira correta, mas que tem dezenas de problemas específicos sobre os quais eu preciso me debruçar”, disse. Uma das prioridades da ministra é retomar a reforma da Lei de Direitos Autorais (LDA).

Na gestão da ex-ministra Ana de Hollanda, uma versão prévia da reforma já instituía o mecanismo de notificação e retirada – mas o texto não avançou.

Para o advogado Roberto Mello, que defende a arrecadação de direitos autorais dos músicos, não há a necessidade de se institucionalizar o mecanismo. “Isso já existe, é como sempre foi, eu estou falando da vida civil. Não temos de reinventar a roda.”

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[Tatiana de Mello Dias, do Estado de S.Paulo]