Saturday, 05 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Entre o Estado e o mercado

A proposta anunciada pelo ministro das Comunicações, Hélio Costa, para criar uma rede pública de televisão abre uma boa oportunidade para um debate sobre o papel desse veículo na sociedade. O sistema de televisão brasileiro é predominantemente comercial, apesar do crescimento vertiginoso de emissoras governamentais, parlamentares e comunitárias nos últimos anos. Basta examinar a distribuição do bolo publicitário no país, o que realmente conta.

Em 2006, o mercado da propaganda no Brasil movimentou R$ 40 bilhões, o que representa 1% do PIB nacional. Não é pouca coisa. As emissoras de TV ficaram com 60% desta verba, isto é, R$ 24 bilhões. A Rede Globo levou, sozinha, 70% desta parcela – R$ 17 bilhões. É por isso que as emissoras comerciais ficam tão agressivas no noticiário e em editoriais quando farejam a menor ameaça ao rico mercado publicitário que monopolizam. Os jornais e revistas fazem eco imediatamente, e formam todos uma frente de defesa do faturamento.

É evidente que o argumento não é explicado desta maneira. Falaciosamente, dirigem o noticiário para o debate sobre liberdade de imprensa, censura e intervenção do Estado, quando o tema não é esse. É o que estamos assistindo, infelizmente, neste momento, após o anúncio do ministro sobre o desejo do governo de criar uma rede pública de televisão. As emissoras, jornais e revistas começam imediatamente uma velha cantilena para desqualificar a proposta como se ela, na origem, ferisse a liberdade de expressão, como se o governo quisesse intervir na liberdade de pensamento.

Opção humanista

O poder público tem parte da culpa porque não explicitou sua proposta. Talvez, não possa explicá-la pois, dentro do próprio governo, há uma disputa surda. De um lado, o presidente da Radiobrás, o Ministro da Cultura e da Educação, capitaneados por Gilberto Carvalho, do gabinete de Lula, e aliados com algumas emissoras educativas estaduais. De outro, o ministro Hélio Costa faz uma frente com Luiz Dulci.

Os primeiros defendem uma rede pública nos moldes da Public Broadcast System, dos Estados Unidos ou da BBC de Londres, embora não tenham uma proposta fechada sobre financiamento. Esse modelo foi discutido em muitas reuniões nos últimos meses. O segundo grupo tomou outra iniciativa porque se sentiu ameaçado e teme perder terreno dentro do governo: propôs uma TV do Executivo (que na verdade já existe). Enquanto não chegam a um acordo, autoridades públicas fomentam uma discussão desgastante, já que ninguém sabe exatamente o que o governo quer criar.

Com essas indefinições, lutas internas, e a corrosão do tema junto à população – impulsionada pela má fé da mídia comercial –, a oportunidade para se instalar uma rede pública de emissoras no Brasil fragiliza-se publicamente. A televisão pública no país poderia, em médio prazo, transformar-se numa alternativa cultural ao excessivo consumerismo e banalidade. Poderia ser uma opção mais humanista à baixaria geral da TV aberta no Brasil, conforme já demonstrou ser possível a programação da TV Cultura de São Paulo.

Gestão solidária

O financiamento dessa nova proposta precisa ser bem pensado e planejado. Precisa disputar o mercado publicitário. Deve receber algum incentivo inicial, com um calendário de curto prazo definido. Sem esse apoio e sem contar com a estrutura existente das TVs governamentais será impossível criar uma rede competitiva comercialmente. Mas deve buscar também patrocínio na forma de doações de fundações, permutas com emissoras de outros países (a BBC é uma opção à mão, por exemplo) e outros caminhos. Uma rede pública pode vir a ser uma alternativa entre o Estado e o mercado, pois não há só dois caminhos. Ela não precisa ser predominantemente estatal nem comercial. Sua gestão pode ser entregue a grupos e profissionais vinculados à sociedade civil organizada.

Estamos vivendo um momento histórico interessante de nossa jovem democracia, que começa a passar de uma democracia puramente representativa para uma outra, mais participativa. As ONGs, organizações do terceiro setor, movimentos sociais e outras iniciativas estão consolidando uma nova sociedade civil. Ela tem hoje maturidade para uma gestão econômica solidária que está se tornando alternativa ao mercado. Uma rede pública de televisão deve inserir-se nesta linha, aproveitando o avanço da sociedade brasileira que pode vir a depender menos tanto do Estado como do mercado. Minha opinião é que vale a pena tentar.

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Jornalista, professor e coordenador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília, doutor em Comunicação pela Universidade de Wisconsin (EUA) e mestre em Jornalismo pela Universidade de Indiana (EUA)