Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O exemplo americano de regulação da mídia

Questão central do setor de comunicação em todo o mundo, a regulação da mídia foi o tema do Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (2/8 ) pela TV Brasil. A discussão em torno do controle os meios de comunicação ganhou contornos urgentes no último mês, quando estourou no Reino Unido o escândalo envolvendo tabloides do grupo de comunicação do magnata australiano naturalizado americano Rupert Murdoch. Para especialistas no assunto, o órgão de autorregulação da mídia britânica, o Comitê de Queixas contra a Imprensa (PCC, na sigla em inglês), paradigma para diversos países, não foi capaz de evitar a conduta criminosa do grupo de Murdoch. Com o escândalo, monopólio, propriedade cruzada, intervenção do estado na mídia e controle de conteúdo entraram em pauta.

O Observatório levou a questão da regulação da mídia para o país símbolo da liberdade, os Estados Unidos. Lá, os meios de comunicação são controlados pela Federal Communications Commission (FCC). O órgão, criado em 1934, incentiva, fiscaliza e regulamenta o setor de mídia eletrônica. É uma agência independente do governo que concentra a sua atuação nas áreas de tecnologia e economia. Diferente das outras agências de regulamentação no mundo, a FCC combina em sua jurisdição telefone, rádio, TV aberta, por cabo e satélite, conexões sem fio e internet.

A comissão é formada por cinco conselheiros indicados pelo presidente dos Estados Unidos e confirmados pelo Senado americano. Dias antes de o escândalo dos grampos ilegais ganharem as páginas dos jornais de todo o mundo, o correspondente Lucas Mendes entrevistou, para o Observatório, em Washington, Reed Hundt, o presidente da FCC entre 1993 e 1997.

Quando no cargo, Hundt participou ativamente do processo de expansão dos serviços de internet nos Estados Unidos. Na iniciativa privada, chefiou a Intel e, no Brasil, atuou como consultor da Anatel no período da chegada da telefonia móvel ao país. Advogado formado pela Universidade Yale, Hundt é amigo dos ex-presidentes Bill Clinton e George W. Bush. Para debater sobre os principais pontos desta entrevista, Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro o sociólogo e jornalista Venício A. de Lima. Pós-doutor em Comunicação pela Universidade de Illinois e colunista do Observatório online, Venício acompanhou, como assessor, as decisões sobre o tema “Comunicação” nas respectivas Subcomissão e Comissão da Constituinte de 1987-88.

Regulação sem espaço

No editorial que abre o programa, Dines comentou que a conduta criminosa de funcionários do grupo de Rupert Murdoch está ligada à questão daregulação e da autorregulação da mídia. “Murdoch infringiu justamente os estatutos que regulam a propriedade de meios de comunicação, sobretudo em Nova York, onde é dono de dois jornais, além de controlar a Fox News, poderoso canal de notícias”, disse. Dines criticou a pouca atenção que a grande mídia dedica à FCC. “Como órgão regulador, seus presidentes evitam a exposição pública, suas intervenções são feitas através de atos oficiais, sujeitos ao escrutínio da Casa Branca, do Congresso e da sociedade.”.

Reed Hundt explicou que a FCC foi criada pelo presidente Franklin D. Roosevelt durante a Grande Depressão para evitar que importantes empreendimentos comerciais do país falissem. Havia o temor de que as empresas não conseguissem vender, o que provocaria um colapso na economia. Naquele tempo, o principal objetivo da FCC era garantir que ao menos uma grande companhia telefônica, a AT&T, tivesse sucesso apesar da crise econômica. Era preciso manter um monopólio economicamente bem-sucedido e que oferecesse serviços telefônicos para a metade do país que ainda não tinha telefone.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a TV se impôs como o principal foco da FCC. “Politicamente falando, era bastante simples. No poder, os democratas gostavam de emitir licenças para os amigos e quando o presidente Dwight Eisenhower tomou posse, em 1952, o então presidente da FCC disse: ‘Agora, é nossa vez, vamos licenciar nossos amigos’”, contou Hundt. Em tom de brincadeira, Lucas Mendes completou: “Conheço alguns lugares onde é bem parecido, ainda existem alguns países assim”, referindo-se ao Brasil dos anos 1980 e 1990.

Poder punitivo

Atualmente, a FCC conta com um orçamento em torno de US$ 350 milhões e emprega quase dois mil trabalhadores. Lucas Mendes perguntou ao ex-presidente da comissão qual é, de fato, a atividade desses funcionários. “Eles ouvem rádio e procuram obscenidades na TV?”, questionou o correspondente. Hundt explicou que os empregados do órgão concentram suas ações em abordar questões econômicas fundamentais da economia da mídia eletrônica e têm poderes concretos de regular as diferentes jurisdições. Hundt contou que ao longo dos anos mais poderes foram acrescentados à comissão.

Em média, a cada dois anos, o Congresso aprova uma nova lei e desde os anos 1930 quase todas as leis agregaram poderes à jurisdição da FCC. Lucas Mendes perguntou quem exerce o maior controle dentro da comissão – o Congresso, a Casa Branca ou as grandes empresas do setor. “Quando fui presidente da FCC, aprendi que o presidente deve dizer a todos que eles têm o maior controle. Assim, todos ficam contentes. A resposta é que muito poder é investido no presidente”, disse Hundt.

No debate ao vivo, Dines sublinhou que o caso da FCC mostra que, em certas situações, o Estado precisa intervir para que a iniciativa privada possa se desenvolver. Na avaliação de Venício Lima, apesar de o entrevistado parecer um bussiness man, deixou claro que a função inicial da FCC era regular o mercado. “É verdade que a idéia da AT&T era uma idéia de monopólio, mas um monopólio privado apoiado pelo Estado para garantir a universalização de um serviço”, ponderou. Para Venício, é importante observar que uma das suas principais funções da FCC é regular o mercado.

Controle necessário

Dines ressaltou que o órgão vem crescendo porque o mercado de mídia se expandiu. A regulação precisa acompanhar este movimento sem amordaçar os veículos de comunicação. Dines destacou que esta é uma discussão que a mídia brasileira – atrelada a interesses de poucas e grandes empresas – não pode ignorar. Venício Lima chamou a atenção para o fato de que, embora a FCC seja uma agência reguladora que tem mais de 70 anos, não é onipotente porque as decisões tomadas pelo órgão podem ser revistas. “Além de ser uma agência independente e autônoma, no regime democrático, ela ainda está sujeita ao escrutínio tanto do Congresso quanto do [poder] Judiciário”, disse.

Dines comentou que a regulação da mídia é importante para que não ocorram “bolhas” como a da internet nos anos 1990. Venício destacou que o setor controlado pela FCC representava 3% do Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos nos anos 1990 e que hoje o número deve ser ainda maior.

Em outro trecho da entrevista, Lucas Mendes comenta que uma reportagem começava com a frase: “O presidente da FCC, que é amado e odiado pelo setor…”. E perguntou sobre a repercussão da atuação de Hundt à frente da comissão. “Se você está no cargo há tempo bastante, pode ser amado e odiado por todas as empresas. Isso, na verdade, reflete um bom trabalho”, assegurou o ex-presidente do órgão. Hundt comentou que na década de 1990 houve uma grande expansão no setor mídia, com a criação de mais de dois milhões de novos empregos. “É um setor da economia que representa uma porcentagem pequena. Adicionar 2 % ao total de empregos nos EUA foi incrível. De 1998 até 2003, quase US$ 1 trilhão de capital privado foi investido em redes de comunicação nos EUA. É mais de US$ 300 por pessoa.” Para Hundt, esta é a maior evolução de um setor econômico na história mundial.

Mercado em expansão

O correspondente relembrou que durante a gestão de Hundt houve uma grande transformação no setor, mas também “grandes brigas” – e perguntou quem saiu vencedor nestas batalhas. “De uma forma geral, todos na economia, todas as partes, todas as famílias foram vencedoras, e eis como sabemos disso: nos anos aos quais estamos nos referindo, todos os grupos de renda nos EUA melhoraram”. Hundt referiu que a década de 1990 foi a única desde a Segunda Guerra Mundial em que todos os grupos da sociedade aumentaram sua renda. Além disso, segundo ele, a oferta de empregos cresceu. “Quando você observa as compras e as vendas, as pessoas lucraram US$ 2,1 trilhões. É um número impressionante”, analisou. Para Hundt, o setor de tecnologia da informação e comunicação foi a área da economia que mais contribuiu para esse crescimento.

Outro ponto tratado nessa entrevista especial para o Observatório foi a crise que atinge a mídia impressa americana. Lucas Mendes comentou que alguns parlamentares sugeriram que os pequenos jornais com dificuldades financeiras recebessem apoio através de um “status de não-lucrativos”. Para Hundt, esta é uma idéia nobre, mas não livraria o setor da crise. “Acho que a realidade do papel impresso como uma mídia importante não é mais verdadeira. Não precisa ser salvo. Não é que o papel impresso vai acabar para sempre. Mas o papel impresso nunca mais vai atrair grandes públicos”, profetizou Hundt. Neste aspecto, a questão da propriedade cruzada seria irrelevante porque no mundo virtual ninguém “quer ter negócios envolvendo papel impresso”.

Venício Lima comentou que após a gravação da entrevista, uma decisão da Corte de Apelação da Pensilvânia contrariou um parecer da FCC sobre a propriedade cruzada de emissoras de rádio e televisão. “Então, propriedade cruzada não é só uma relação entre mídia impressa e mídia eletrônica. É claro que, no caso brasileiro, é questionável a idéia de que não há interesse na mídia impressa porque ela se tornou irrelevante”, rebateu o sociólogo. Ao contrário, no Brasil, persiste a seguinte situação: em altos escalões de governo, o dia começa com a leitura do clipping da mídia impressa, como se o que foi retratado nos jornais refletisse a realidade do país. Dines comentou que o ex-presidente da FCC está fazendo projeções para o futuro sem observar o presente, sobretudo a situação do Brasil, onde em muitas localidades a questão da propriedade cruzada é fatal para a pluralidade da informação e para a democracia.

 

Os crimes de Murdoch

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 604, exibido em 2/8/2011

Os crimes e infrações cometidas pela News Corp. de Rupert Murdoch começam e acabam na questão da regulação e autorregulação da mídia. Na cobertura do escândalo ficou evidente o grande fracasso da Comissão de Queixas contra a Imprensa, incapaz de impedir e punir os abusos cometidos pelo tablóide News of the World. Mas a grande mídia internacional não conseguiu oferecer as mesmas evidências no tocante às irregularidades cometidas por Murdoch para ampliar o seu império midiático nos dois lados do Atlântico.

O que nos interessa hoje é justamente a questão da concorrência abusiva e desregrada que tanto no Reino Unido como nos Estados Unidos são controlados por uma legislação bastante rigorosa.

Nos Estados Unidos, matriz da livre iniciativa e onde a liberdade de expressão é sagrada, foi criada pelo presidente Franklin Delano Roosevelt, durante a Grande Depressão, um órgão regulador exemplar. Em 1934, há 77 anos, o democrata Roosevelt, inspirador do atual presidente Barack Obama criou a Comissão Federal de Comunicações (FCC, na sigla em inglês), que tentou e conseguiu colocar um freio na feroz disputa travada entre as operadoras de telefonia.

A FCC examina e controla o conteúdo da mídia eletrônica – rádio e TV – sobretudo no tocante a obscenidades, mas também fiscaliza e impede a formação de grandes conglomerados de mídia impedindo a propriedade cruzada e, assim, garantindo um mínimo de diversidade e pluralismo.

Murdoch infringiu justamente os estatutos que regulam a propriedade de meios de comunicação, sobretudo em Nova York, onde é dono de dois jornais, além de controlar a Fox News, poderoso canal de notícias.

Este Observatório da Imprensa não abre mão da sua função de fomentar o debate sobre jornalismo e sobre a imprensa. A FCC é raramente mencionada nas análises da grande mídia. Como órgão regulador, seus presidentes evitam a exposição pública, suas intervenções são feitas através de atos oficiais, sujeitos ao escrutínio da Casa Branca, do Congresso e da sociedade.