
(Foto: Ricardo Stuckert/PR)
Há alguns anos, a cultura tem sido um vetor de influência diplomática para os países mais ambiciosos. Os Estados Unidos usaram e abusaram dela antes de Donald Trump, assim como a China e vários países europeus. A Alemanha, o Reino Unido, a Espanha, a França e a Itália criaram máquinas audiovisuais e culturais, institutos, canais de rádio e televisão que cobrem o mundo. A Índia fez a mesma aposta?
Gabriel Boric, Presidente do Chile, fez uma viagem pela Índia de 31 de março a 6 de abril de 2025, passando por Bombaim, a “Meca” da Bollywood musical local. O mundo do cinema chileno foi na bagagem da delegação chilena: a Associação de Produtores de Cinema e Televisão, a Corporação Chilena de Documentários, a Atacama Film, e até mesmo uma atriz indo-chilena, Jennifer Mayani. O calendário festivo da América Latina, da Bolívia à República Dominicana, ganhou cores indianas nos últimos anos. Holi, o festival das cores e da primavera, foi enxertado com sucesso no tronco cristão do Carnaval. Em fevereiro passado, o Rio de Janeiro organizou um carro alegórico na praia de Ipanema para celebrar essa confluência colorida. Jyoti Kiran Shukla, diretor do Centro Cultural Indiano, ficou muito entusiasmado com a iniciativa. “A ideia era trazer a energia vibrante de Bollywood para o carnaval brasileiro”.
O Peru, e a cidade de Arequipa em particular, o celebra com especial empatia. O festival Holi é seguido, em 15 de agosto por um festival de filmes e danças de Bollywood. A comunidade local de Bollywood, composta por cerca de dez grupos, participa do entretenimento, reproduzindo os balés que compõem os musicais de estilo indiano. Um de seus membros, Johan Rojas, é conhecido como o “Shahrukh Khan Arequipeño”. Para os não iniciados, Shahruhk Khan é a estrela das telas de Bombaim. Tudo isso, sem dúvida, ajuda a aproximar culturas e povos. Mas, e quanto à economia? Os tomadores de decisão têm em mente um cenário que, após uma abertura com dança e imagens, nos permitiria passar para o Ato II, econômico e comercial. Leonardo Ananda, presidente da Câmara de Comércio Índia-Brasil (CCIB), deixou bem claro que “além do enriquecimento cultural, precisamos pensar em aproximar brasileiros e indianos para produzir dividendos econômicos mutuamente benéficos” [1].
O número de visitas de trabalho e o anúncio de acordos bilaterais e investimentos aumentaram à margem do Holi. Em 2022, a Índia aprimorou a qualidade de suas relações com os três membros latino-americanos do G-20, Argentina, Brasil e México. O Ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, visitou os três países em 2022. Em abril de 2023, ele fez uma segunda viagem à Colômbia, Panamá, República Dominicana e Guiana.
Particularmente, os contatos se intensificaram entre Brasília e Nova Délhi. Em 10 de setembro de 2023, o primeiro-ministro indiano Narendra Modi e seu homólogo brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva concordaram em fortalecer seus laços diplomáticos, econômicos e militares. Esse compromisso foi renovado um ano depois pelos dois líderes. O diplomata indiano Saurabh Kumar fez a seguinte declaração durante uma visita a Brasília para expressar concretamente essas boas intenções: “Espero fortalecer nosso diálogo mútuo em vários setores-chave, comércio, energia, tecnologia, saúde […]. O Brasil é um parceiro estratégico […]. Temos uma visão global comum, compartilhamos valores democráticos e um desejo, de desenvolvimento para nossos povos, idêntico”.
Os contatos com outros países latino-americanos também estão aumentando, com foco no comércio e na economia. Em breve, o Peru assinará um acordo de livre comércio com a Índia. Da capital indiana, Desilu León, ministro do Comércio Exterior do Peru, disse à imprensa que os dois países estavam negociando um acordo de livre comércio que poderia ser concluído até o final de 2025. O Chile está jogando o mesmo jogo. De 30 de março a 6 de abril de 2025, conforme relatado, o presidente Boric fez uma visita oficial a Nova Délhi, acompanhado por seis ministros, uma delegação parlamentar e vários líderes empresariais, para atualizar os acordos comerciais entre os dois países. Ao mesmo tempo, ele participará do Shoot in Chile, um evento para promover o Chile como uma plataforma audiovisual, uma reunião entre os participantes do setor agroalimentar dos dois países e uma conferência sobre inovação e novas tecnologias, a “Innovation Summit”. Declarações de intenção semelhantes foram feitas na Argentina, Colômbia, Guatemala e Panamá.
Essas visitas tiveram um impacto tangível. Na Argentina, a empresa estatal indiana KABIL (Khannij Bidesh India Ltd) assinou um contrato de mineração de lítio em 2024. Em janeiro de 2025, a empresa petrolífera YPF assinou um contrato de fornecimento de gás liquefeito com a Oil India. Em fevereiro de 2025, o Brasil e a Índia anunciaram o fornecimento de petróleo brasileiro por meio de suas respectivas empresas, a Petrobrás e a Bharat Petroleum. Os dois países estão estudando a possibilidade de um investimento conjunto na Bolívia para construir uma fábrica de baterias de lítio.
A Federação de Exportadores Indianos e sua contraparte panamenha concordaram em desenvolver projetos conjuntos em logística, distribuição e armazenamento. Uma empresa de Bollywood, a “Eros International”, assinou um acordo com a Pacific Investment Panama Corporation para fazer filmes no Panamá. A Venezuela e a Índia negociaram um acordo de cooperação digital em fevereiro de 2025.
Na íntegra, as intenções do governo e a assinatura de acordos econômicos e comerciais levaram a um aumento no volume de comércio e cooperação. O presidente da CAF, o Banco de Desenvolvimento da América Latina e do Caribe, em uma nota de sua instituição, saudou o potencial futuro, que também é uma forma de colocar os fatos em perspectiva. É verdade que o comércio está em alta. Para o exercício financeiro de 2022-2023, a Índia se tornou o quinto maior parceiro comercial da América Latina, com crescimento de 17%.
A demanda indiana por cobre e ouro aumentou significativamente. A guerra na Ucrânia levou a Índia a redirecionar seu comércio exterior, principalmente para a América Latina. O Brasil, mais do que qualquer outro país, está por trás desse relativo boom. Suas exportações para Nova Délhi cresceram 38%, e suas importações, 54%. Petróleo, automóveis, produtos farmacêuticos, agroquímicos e óleo de soja fazem parte desse comércio. Em 2023, a Índia exportou muito mais para o Brasil do que para a Alemanha, Austrália, Coreia do Sul ou Indonésia.
O ímpeto está aumentando. As políticas estritamente nacionalistas do presidente dos EUA, Donald Trump, provavelmente acentuarão esse desenvolvimento. As políticas voltadas para o fortalecimento da autonomia em relação aos Estados Unidos e à China estão divididas. Entre a “autonomia estratégica” [2] da Índia e o “não alinhamento ativo” da América Latina, há o espaço de uma folha de papel [3]. Mas, ao contrário da China, Nova Délhi não entrou no campo do multilateralismo latino-americano. Ela não tem relações institucionalizadas com a Aliança do Pacífico (Chile-Colômbia-México-Peru), a CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), a CAN (Comunidade Andina de Nações) ou o Mercosul. Ao contrário da China, da Espanha, da Itália e da Alemanha, o país não criou um fórum bilateral com os latino-americanos.
A dinâmica do comércio com o Brasil mostra que ele se baseia em várias instituições compartilhadas, BRICS, G-20, IBAS (Índia-Brasil-África do Sul). E a negociação de tratados bilaterais com o Chile e o Peru se beneficiou dos “conclaves Índia-América Latina” organizados regularmente pela CEPAL (Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe).
Notas
Texto originalmente publicado em francês, em 29 de março de 2025 no site Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original: “La coopération Inde-Amérique latine : Les présidents Lula et Gabriel Boric sont en Inde en passant par Bombay et son cinéma…” Disponível em: https://www.espaces-latinos.org/archives/126183 . Tradução de Myllena Araújo do Nascimento e Luzmara Curcino.
[1] TOSI, Marcos. Vender mais a India pode passar por Bollywood. Gazeta do Povo, 3 de maio de 2024.
[2] JAISHANKARS, S. The India Way: Strategies for an uncertain world. HarpersCollins India, 2020.
[3] HEINE, Jorge; FORTIN, Carlos; OMINAMI, Carlos. Latin American Foreign Policies in the New World Order, Londres, Anthem Press, 2023
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Jean-Jacques Kourliandsky é Diretor do “Observatório da América Latina” junto à Fundação Jean Jaurès, na França, especialista em análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014). Colabora frequentemente com o “Observatório da Imprensa”, no Brasil, em parceria com o Laboratório de Estudos do Discurso (LABOR) e com o Laboratório de Estudos da Leitura (LIRE), ambos com sede na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).