Quinta-feira, 6 de novembro de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1363

Brasil: um 11 de setembro escanteado pela mídia francesa

(Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil)

Em 11 de setembro de 2025, um evento histórico ocorreu no Brasil: a condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro e de vários altos funcionários militares e policiais por tentativa de golpe de Estado. Esse ato de justiça sem precedentes, que rompe com a impunidade concedida há muito tempo ao exército desde a ditadura, constitui uma grande vitória democrática e um forte sinal enviado às forças autoritárias em todo o mundo. No entanto, na França, essa notícia passou quase despercebida. Jean-Jacques Kourliandsky, diretor do Observatório da América Latina e do Caribe da Fundação, analisa essa fraca cobertura da mídia como um enfraquecimento da visão democrática diante da ascensão dos extremos e das narrativas dominantes vindas do outro lado do Atlântico.

Em 11 de setembro de 2025, a justiça brasileira condenou o ex-presidente Jair Bolsonaro a 27 anos e três meses de prisão por tentar derrubar seu sucessor, Luis Inácio Lula da Silva. É notório que, em um Brasil onde a democracia é alvo de crescentes dúvidas e talvez esteja sendo questionada em outros países da América e da Europa, esse marco histórico tenha sido relegado às páginas internas dos jornais franceses.

A crise da democracia é, de fato, um motivo de preocupação para aqueles que ainda estão comprometidos com ela. A abulia inventiva das narrativas consensuais e a centralidade comunicacional convergente dos partidos de direita e de esquerda geram uma crescente abstenção, crises que agitam os países de tempos em tempos, dos “bonés vermelhos” aos “coletes amarelos”. Isso levou ao fortalecimento de formações de extrema direita da Alemanha e da Argentina à Hungria e a El Salvador. Todos esses são elementos que podem preocupar a imprensa, pilar histórico da vida democrática. Afinal, a imprensa não é, por princípio, comprometida com a liberdade de expressão e com o dever de informar, permitindo alimentar o diálogo entre os cidadãos?

De 1964 a 1985, o Brasil passou por uma longa ditadura militar. Mas foi somente em 11 de setembro de 2025 que militares foram levados ao banco dos réus e condenados por uma tentativa de golpe de Estado, ocorrida em 8 de janeiro de 2023. De fato, o ex-presidente e ex-chefe das Forças Armadas brasileiras, Jair Bolsonaro, bem como quatro oficiais de alta patente do Exército e dois responsáveis pela polícia foram condenados pelo Supremo Tribunal Federal. Além dos fatos que atentavam contra a ordem democrática pelos quais foram julgados, os brasileiros puderam ver que a instituição militar não era intocável e não gozava de imunidade acima da lei. Essa condenação teve, além disso, uma virtude republicana, ao demonstrar que aqueles que defendem a soberania cidadã e nacional têm a legitimidade e a força necessárias para resistir a ingerências externas, neste caso, as dos Estados Unidos. O presidente Trump, de fato, tomou partido por Jair Bolsonaro. Amigo do inquilino da Casa Branca a ponto de tentar repetir em Brasília a tomada do Capitólio, Jair Bolsonaro seria uma vítima de juízes e autoridades extremistas.

Donald Trump adotou sanções contra o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, e os cinco juízes do Supremo Tribunal Federal que votaram pela condenação de Jair Bolsonaro e seus cúmplices. Ele aumentou para 50% as tarifas alfandegárias impostas aos produtos brasileiros. Em 11 de setembro de 2025, resistindo a pressões internas e externas, as instituições brasileiras deram aos brasileiros e a todos os cidadãos do mundo uma lição de defesa democrática. A mensagem foi ouvida? A informação foi valorizada pelos atores da vida democrática, pela imprensa e pelos partidos políticos fora do Brasil?

A análise dos jornais franceses datados de 12 de setembro de 2025 é desconcertante. Nenhum jornal, nacional ou regional, deu destaque a um evento exemplar para os democratas da França, do Brasil e de outros países. Vários fait divers, com apelo sensacionalista ocuparam, de longe, o lugar principal na mídia. O assassinato de uma corredora em Viena foi manchete dos jornais Corse Matin, do Ouest-France, do Républicain lorrain e do Midi libre. Outros crimes de natureza diversa – assassinato em ambiente médico, estupro, apreensão de drogas, incêndio criminoso, agressões em ambiente escolar, maus-tratos a um bebê, espancamento de um policial – ganharam as manchetes dos jornais Courrier picard, La Dépêche, L’Est républicain, L’Indépendant, Nice-Matin, La République des Pyrénées, Var-Matin e La Voix du Nord.

O esporte foi destaque em alguns jornais – Les Dernières Nouvelles d’Alsace, Le Petit Bleu d’Agen, L’Union-L’Ardennais –, enquanto outros valorizaram diversas obras públicas realizadas em sua área geográfica – La Provence, L’Yonne Républicaine. O jornal L’Humanité colocou na primeira página uma entrevista com a cantora Patti Smith, convidada para a Fête de L’Humanité.

As notícias políticas nacionais e internacionais ocuparam um espaço secundário. As notícias sociais nacionais foram destacadas por Les Échos e, localmente, por La Montagne. A nomeação de um novo primeiro-ministro foi o foco de atenção de L’Alsace, do Dauphiné libéré, e de La Nouvelle République, enquanto L’Opinion destacou como escandaloso o “caso Cohen-Legrand”. As notícias internacionais dividiram-se em dois temas: Gaza e o Oriente Próximo, no La Croix, e o assassinato de Charlie Kirk nos Estados Unidos no Le Figaro, Le Monde, Libération, Le Parisien, Le Progrès, Sud-Ouest e Le Télégramme.

Duas observações ao final desta análise da imprensa escrita diária. A primeira é a modesta contribuição dos meios de comunicação para a formação de uma opinião democrática. A maioria das primeiras páginas de 12 de setembro de 2025 deu prioridade a eventos de caráter mais emocional na França, com 12 manchetes em 32, e ao assassinato público de um influenciador nos Estados Unidos, com 7 manchetes. Da mesma forma, 12 “artigos” privilegiaram uma contribuição informativa sobre diversos assuntos nacionais relativos à crise política e social do país e a um dos conflitos internacionais, Gaza, que pode ter graves consequências para a paz. Eles ficam muito atrás daqueles dedicados às drogas e ao crime. Essa abordagem das notícias do dia, entre outras, é reveladora do recuo emocional da imprensa. Isso não é novidade e, sem dúvida, é acentuado pela migração dos leitores para as redes sociais, veículos de comunicação entre pares e portadores de discursos de satisfação, “domínio das sensações”, segundo a terminologia visionária de André Malraux [1].

Além disso, é demonstrativo da captação de atenção gerada por quase um século de influência cultural proveniente dos Estados Unidos. Essa política imperial – o termo é aqui utilizado no sentido que Raymond Aron [2] lhe atribuiu – é portadora de uma “servidão voluntária” [3], quase invisível, tanto quanto natural. A leitura do jornal mais citado fora da França, Le Monde, revela um panorama em que, em todos os domínios, o ponto de referência se situa entre Nova Iorque e Los Angeles. Além da manchete que ocupa a primeira página, o assassinato do influenciador norte-americano ocupa toda a página 2. Na página 13, pode-se ler um artigo sobre “o plano para devolver a saúde à América”, que “decepciona as expectativas”; na página 15, outro artigo dedicado à “inflação americana”; na página 21, uma reportagem sobre o Festival de Cinema Americano de Deauville, que “homenageia Kim Novak, o afável fantasma de Vertigo”. De forma quase invisível, ao longo dos anos, como analisou o sociólogo brasileiro Jessé Souza, “os Estados Unidos se tornaram o ‘espelho do mundo’”. Eles mantiveram “formalmente a democracia”, ao mesmo tempo que “fabricaram o consenso”.

Esse duplo contexto relegou a condenação do ex-presidente golpista brasileiro pela justiça de seu país, na melhor das hipóteses, ao inferno das páginas internas. Talvez se trate de uma espécie de denegação, mais ou menos conscientemente. O juiz Alexandre de Moraes, relator da ação penal movida contra Jair Bolsonaro e os outros sete acusados, alertou sobre os desafios de um julgamento que, no entanto, diz respeito a todos os democratas: “as lições da história nos dizem que a impunidade, a omissão e a covardia não são opções” [5].

Texto publicado originalmente em francês, em 30 de setembro de 2025 no site Fondation Jean Jaurès, Paris/França, com o título original: “Brésil: un 11 septembre maltraité par les médias français”. Disponível em: https://www.jean-jaures.org/publication/bresil-un-11-septembre-maltraite-par-les-medias-francais/. Traduzido por Andrei Cezar da Silva e revisado por Luzmara Curcino.

Notas

1]  André Malraux. Les voix du silence. Obras completas, Pléiade, t. IV, Paris: Gallimard, 1951, p. 771.

2] Raymond Aron. La République impériale. Paris: Calmann-Lévy, 1973. 

3] Título do livro de Étienne de la Boétie, publicado em 1576.

4]  Jessé Souza. O Pobre de Direita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2024, p. 21.

5]  Publicado na revista Carta Capital em 2 de setembro de 2025.

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Jean-Jacques Kourliandsky é  Diretor do “Observatório da América Latina” junto à Fundação Jean Jaurès, na França, especialista em análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014). Colabora frequentemente com o “Observatório da Imprensa”, no Brasil, em parceria com o Laboratório de Estudos do Discurso (LABOR) e com o Laboratório de Estudos da Leitura (LIRE), ambos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).