Saturday, 11 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Barulho na ditadura, silêncio na democracia

Quem não foi torturado, preso ou incomodado durante a ditadura militar (que se prolongou de 1964 a 1985) foi conivente com ela, se acomodando e deixando de lado o compromisso político? Ou, conforme palavra-chave da época, se alienando?

Responder que sim é tão equivocado quanto presumir que os perseguidos, pelo fato de terem se oposto radicalmente ao regime de exceção, estavam certos. Havia também canalhas do lado da oposição.

O eixo da resposta está na opção pela luta armada contra a tirania imposta, de forma mais intensa, de 1969 a 1977. Antes e depois as gradações foram no sentido do alívio da violência e da repressão, na busca pela normalidade democrática. Frustrada no primeiro coletivo. Realizada, no segundo momento.

Muitos prosseguiram na defesa dos seus ideais sem aceitar a tese da revolução pelas armas. Foram corajosos, se arriscaram muito e ajudaram o país a não mergulhar mais profundamente – nem mais demoradamente – nas trevas do Leviatã estatal, com sua contrapartida no sectarismo de esquerda.

Graças a servidores públicos e cidadãos em geral decentes e ativos, o país se manteve num nível mínimo de dignidade e civilidade. Sem essas fontes, o jornalismo teria sido reduzido a um eco da voz do dono, um aliado compulsório do poder.

Altas horas

Muitas das minhas fontes surgiram nesse período, tão desfavorável à coleta de informações e à transmissão de verdades. Até conversar com essas pessoas era arriscado. O Grande Irmão orwelliano (não é o Big Brother da TV Globo) estava sempre com seus muitos olhos bem abertos. Seus braços também podiam alcançar os recalcitrantes como os tentáculos de um polvo.

Ainda assim, contra todas as expectativas dos censores e controladores da opinião pública, a imprensa conseguia surpreender com reportagens fortes, substanciais, bem informadas. Graças a fontes situadas às vezes em posição de destaque dentro da estrutura do poder, tanto no governo como nas grandes empresas privadas.

As fontes se arriscavam muito. Mas se arriscavam por confiarem nos seus interlocutores da imprensa, que se comprometiam em manter completo sigilo – se necessário e em qualquer circunstância. E a serem corretos no uso das informações fornecidas.

Em algumas situações o contato com elas ocorria de uma forma tão tensa quanto os encontros de Bob Woodward com “Deep Throat”, segundo na hierarquia, seu informante secreto no FBI (a polícia federal americana), durante o escândalo de Watergate, que obrigou o presidente Richard Nixon a renunciar para não sofrer o primeiro impeachment da história dos Estados Unidos.

Hoje sabemos que as cenas do repórter do Washington Post com o agente Mark Felt, reproduzidas no filme Todos os Homens do Presidente, foram dramatizadas de forma exagerada. Mas o padrão em momentos semelhantes no Brasil era esse.

Foi circulando à noite por Belém no carro particular do meu interlocutor que obtinha as informações do tenente-coronel Nivaldo de Oliveira Dias. Comandante do 2ª Batalhão de Infantaria de Selva, a principal unidade do Exército na capital paraense, ele foi o único militar que se rebelou contra a versão oficial do atentado terrorista de direita ao Riocentro.

Num boletim à tropa sob seu comando, o oficial (de currículo brilhante) disse não ter dúvida que o capitão e o sargento conduziam bombas para explodir durante a realização do show de motivação política no Rio de Janeiro. Foi preso e passou para a reserva, mas não se calou. Como sabíamos que ele era monitorado, conversávamos enquanto o carro rodava pela cidade, altas horas da noite. No dia seguinte um homem do DOI-Codi ia à redação fazer intimidação ao repórter.

Dúvida e esperança

Outro exemplo, na iniciativa privada, era um técnico canadense que chefiava a fábrica de celulose do milionário americano Daniel Ludwig na sua vasta propriedade no Jari, entre o Pará e o Amapá. Marcávamos encontro do outro lado do rio, no Beiradinho, uma cidade sobre palafitas. Caótica, mas livre.

Lá, tomando cervejas, o engenheiro se libertava do autoritarismo da fábrica e conversava sem limitações sobre o empreendimento, que era o modelo de investimento de capital estrangeiro propagandeado pelo governo militar como necessário para desenvolver a Amazônia.

Por que conto essas histórias? Porque me surpreendo com as dificuldades para a circulação de informações em plena democracia no Brasil.

Criei um blogpara que empregados da Vale pudessem participar de um debate franco e sério sobre a empresa. Para que também se expressassem moradores das áreas nas quais a poderosa companhia atua. Para que criássemos um contracanto ao canto orquestrado pela Vale e seus parceiros, que tantos dados nos sonegam. Para que pudéssemos reunir informações suficientes para uma avaliação dos 15 anos de privatização da estatal do minério, no próximo dia 15 de maio.

Não sei o que acha o leitor, mas temo que esse debate fértil e denso não vá se estabelecer. Dizem os céticos (ou iniciados) que isso é impossível via internet. Essa é uma mídia da rapidez e da superficialidade, refratária à análise e à reflexão. Será?

Fica minha dúvida. E minha esperança contra ela. Por isso continuo com o Jornal Pessoal no papel.

***

[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]