Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os rescaldos de uma desilusão

A diretora de redação de Zero Hora, Marta Gleich, publicou no domingo (16/12) um editorial intitulado “Lulistas, antilulistas e a leitura apaixonada”, resumindo muito bem o que a imprensa tem passado desde que as primeiras denúncias sobre o mensalão surgiram. Uma das principais colunistas do jornal gaúcho, Rosane de Oliveira, havia escrito na semana anterior um texto em que criticava a postura do ex-presidente Lula e explicava como agora seria difícil continuar alegando total desconhecimento sobre os inúmeros casos de corrupção no governo federal. Segundo Gleich, a colunista despertou a ira dos lulistas e a aprovação dos antilulistas, num cabo de guerra em que a imprensa é sempre culpada de alguma coisa ou sempre está envolvida numa conspiração – contra o governo ou contra a oposição.

Na verdade, o que estamos vivendo no Brasil hoje não passa do rescaldo de uma desilusão. Se nos anos 1980 o PT era uma espécie de baluarte da política limpa, comprometido com os interesses do povo, as frequentes denúncias de corrupção no governo Lula apenas vêm mostrando que não há inocentes na política, aparentemente. O que mais deve doer, contudo, no coração de petistas históricos – e, principalmente, na base do partido, naqueles que vão às ruas de bandeira vermelha em punho – é assistir seus correligionários cometendo atos ilícitos para garantir certas regalias burguesas, antes relegadas ao universo que insistiam em condenar. Uma vez no poder, petistas como Silvio Pereira e Rosemary Noronha e seus respectivos carrões – o primeiro com a famosa Land Rover, a segunda com uma menos badalada Pajero TR4 – deixaram a ética de lado para viver sua própria versão de um sonho burguês: trafegar de SUV importada.

Discute-se muito sobre qual teria sido a verdadeira motivação por trás do mensalão. Estaria o dinheiro a serviço de um projeto de poder socialista imaginado por José Dirceu? Talvez, mas a verdade é que, para desilusão dos verdadeiros idealistas, a maioria dos companheiros sucumbiu aos prazeres de vinhos caríssimos e restaurantes finos, carrões importados e casas de luxo, ícones do capitalismo que antes eram condenados. Uma vez no poder, membros da dita “esquerda” adotaram práticas consideradas “burguesas” que antes desprezavam, ou melhor, invejavam. A fim de manter um restinho de ilusão e de idealismo, assistimos a governistas e simpatizantes da causa socialista bater mais uma vez na tecla de que tudo não passa de uma “conspiração de direita” e de uma “imprensa a serviço das elites”.

Ideologias caducas

No entanto, a corrupção entre petistas, motivada tão somente por ganhos individuais em vez de existir por uma causa nobre, não é a única origem dessa desilusão profunda. Há quem imaginasse que o governo Lula levaria os pobres às ruas, a um levante contra os “mais ricos” e contra “as elites”. O que o governo Lula e sua política econômica fizeram foi levar o povo a outro tipo de revolução: em vez de passeatas coloridas de vermelho, com a estrela petista em destaque, o povo se aglomerou nas lojas de eletrodomésticos, fazendo filas para comprar televisores e geladeiras a prazo. O consumo venceu. Em vez de se politizarem, os mais humildes se endividaram para comprar um carro financiado. Em vez de enxergarem o que há de errado com o capitalismo, ansiaram fazer parte dele com urgência. Esta é a maior desilusão: os mais pobres não queriam ser salvos, queriam apenas ter o naco mais superficial do que os mais ricos sempre tiveram, nem que seja por meio de um carnê de infinitas prestações.

Sobrou para os militantes petistas uma única ilusão: de que são melhores do que aqueles considerados de “direita” porque quem é de “direita” é “má pessoa”. Segundo esta lógica, na esquerda não há racismo, nem homofobia; há preocupação com o próximo, com as crianças carentes, com acesso universal à saúde e à educação. Mas, não se está mais falando de economia, e sim de ética. Será mesmo que todo capitalista é contra o casamento entre homossexuais? Será que toda pessoa que acredita no poder do indivíduo e é contra o apadrinhamento do Estado também será, automaticamente, um anticristo? Se os conceitos de esquerda e de direita sucumbiram juntamente com o Muro de Berlim, por que, no Brasil, há quem insista nesta dicotomia sociopolítica totalmente sem sentido?

Minha teoria é de que a insistência em exaltar um “pensamento de esquerda” como o lado dos bons, contra um “pensamento de direita” como o lado dos maus, é quase como dizer que todo comunista é “comedor de criancinhas”, que todo rico só tem dinheiro porque explorou alguém. Vivemos uma era em que não há espaço para simplificações e ideologias caducas. A globalização tornou o mundo muito mais complexo do que a mera realidade brasileira e a desilusão de alguns petistas com um projeto de poder socialista poderiam explicar. Os lulistas que atacaram a postura da colunista Rosane Oliveira, de Zero Hora, infelizmente, ainda não se deram conta disso.

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[Candice Soldatelli é jornalista e tradutora, São Marcos, RS]