Saturday, 18 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1288

Direito ou delito?

No mês de maio, poucos dias depois de a imprensa americana revelar que o governo federal havia monitorado os registros telefônicos de jornalistas da Associated Press e Fox News no bojo de uma investigação sobre vazamentos de informações de seus órgãos de segurança, o presidente Barack Obama não apenas admitiu que seu Departamento de Justiça poderia rever os critérios de apuração em casos do tipo, mas também sinalizou o apoio da Casa Branca a um projeto de lei federal que garanta e regulamente o sigilo da fonte para jornalistas.

Talvez cause estranheza o fato de que essa legislação ainda não exista nos Estados Unidos no plano federal, muito embora tenha havido diversas iniciativas no Congresso americano nas últimas décadas. Para entender um pouco melhor o estado atual dessa discussão, é importante resgatar alguns capítulos da história de proteção ao sigilo da fonte naquele país – uma história de roteiro complexo e um tanto confuso.

Lá, a demanda de jornalistas por prerrogativas próprias alcançou proeminência na década de 1970, marcada pela pioneira relevância social do jornalismo investigativo, simbolizado pelos casos Watergate (marco nas relações entre o Estado e a mídia, deflagrado pela invasão do Comitê Nacional do Partido Democrata localizado no edifício Watergate, em Washington, para a instalação de escutas ilegais no local, e que culminou com a renúncia do presidente Richard Nixon) e Papéis do Pentágono (sobre o vazamento de documentos que revelaram a verdadeira situação dos americanos na Guerra do Vietnã). O sigilo da fonte certamente era a mais relevante dessas demandas, que incluíam também o direito de entrevistar detentos e resistir a mandados de busca e apreensão.

Até então, apenas 17 dos 50 Estados daquele país reconheciam a proteção ao sigilo. No federalismo americano, a maior parte dos casos é julgada sob as leis dos Estados, que têm ampla competência para legislar sobre as mais diversas matérias – inclusive direito criminal e processo penal, áreas nas quais as informações a que os repórteres têm acesso são de interesse para autoridades.

Diante desse cenário de proteção jurídica garantida pela minoria dos Estados, a estratégia seria argumentar que a liberdade constitucional de imprensa (freedom of the press), prevista pela Primeira Emenda da Constituição americana, asseguraria por si só e diretamente esse sigilo.

Precedentes judiciais

Em 1972, a Suprema Corte decidiu o caso Branzburg versus Hayes. Trata-se do único em que aquela corte constitucional se debruçou sobre a questão do sigilo da fonte para repórteres, tornando-se a principal referência jurisprudencial para as cortes inferiores nas décadas seguintes.

A decisão abarcava recursos de três casos distintos. Paul Branzburg, repórter do jornal Louisville Courier, havia escrito matérias nas quais narrava o processo de produção e consumo de haxixe, após ter tido contato com traficantes e usuários da droga. Depois da publicação dos textos, autoridades conseguiram uma ordem judicial para compeli-lo a identificar suas fontes. A decisão tratou também de casos de outros dois repórteres – Earl Caldwell, do New York Times, e Paul Pappas, de uma televisão de Massachusetts – que haviam feito longas entrevistas com membros do grupo revolucionário Panteras Negras. Eles também foram intimados a identificar suas fontes no curso de investigações criminais. Todos se recusaram a cumprir as ordens judiciais, invocando a liberdade constitucional de imprensa, e foram considerados como incursos (sujeitos a penalidades) no delito de desobediência.

Dividida em uma votação de 5 a 4, a corte não acolheu os recursos dos jornalistas e negou a tese de que o sigilo da fonte decorre diretamente da proteção constitucional à imprensa.

No entanto, a composição da decisão deixou um caminho livre para que a controvérsia jurídica continuasse instalada. Seu resultado é comumente classificado como confuso. Isso porque o próprio lado vencedor foi substancialmente dividido: foram quatro votos capitaneados pelo juiz Byron White e um quinto voto redigido à parte pelo juiz Lewis Powell – este último, causa de significativa controvérsia interpretativa.

Em linhas gerais, o voto do juiz White – acompanhado por outros três juízes – negou que o sigilo da fonte decorra da proteção constitucional à imprensa. Entre outros argumentos, ele recusou a ideia de que o Estado possa diferenciar juridicamente os jornalistas de demais cidadãos: “a função informativa referida pelos representantes da imprensa organizada (…) é também desempenhada por palestrantes, políticos, escritores, pesquisadores acadêmicos e dramaturgos (…). Mais cedo ou mais tarde, seria necessário definir as categorias de jornalistas que fariam jus ao privilégio – um procedimento questionável à luz da tradicional doutrina de que a liberdade de imprensa é direito de um panfletário solitário que usa papel-carbono ou um mimeógrafo tanto quanto é de um grande publisher metropolitano”.

No entanto, o juiz Powell, apesar de unir-se à posição do juiz White, declarou em voto separado que o alcance daquela decisão deveria ser “naturalmente limitado”. Ele defendeu a realização de um teste “caso a caso”, a ser aplicado pelo Judiciário, para sopesar o princípio de proteção à liberdade de imprensa e a obrigação de cidadãos de fornecerem informações sobre atividades criminosas. Os outros quatro juízes vencidos acolheram a tese de que há um direito constitucional de sigilo da fonte para a imprensa.

O voto de Powell foi o pendor que levou ao indeferimento dos recursos. Mas, ao possibilitar uma maioria apresentando esses argumentos, ele abriu caminho para que cortes inferiores posteriormente invocassem, assim como ele, o alcance limitado daquele precedente.

Desde então, a corte nunca mais enfrentou essa questão, apesar de ter sido provocada algumas vezes – nos Estados Unidos, a Suprema Corte possui ampla liberdade para decidir quais casos submetidos a ela serão apreciados ou não.

Ao longo das décadas seguintes, contudo, formou-se uma linha jurisprudencial que reconhecia em casos concretos a prerrogativa do sigilo da fonte. “A Suprema Corte se pronunciou apenas uma vez, e o que ela disse foi ambíguo o bastante para deixar as cortes inferiores criarem as proteções que entendiam necessárias e, ao mesmo tempo, encorajar legislativos estaduais a aprovarem leis de proteção (shield statutes)”, anota o professor David Anderson, no artigo “Confidential Sources Reconsidered”, publicado na Florida Law Review nº 61, de 2009.

No campo jurisprudencial, desde Branzburg, a maior parte das cortes federais passou a entender, com fundamento no voto do juiz Powell, que a Primeira Emenda conferia uma prerrogativa qualificada (ou seja, não absoluta) de sigilo da fonte para jornalistas em casos cíveis. Em casos criminais, em especial de competências de grand juries, a maior parte das cortes americanas entende que essa prerrogativa não existe – embora haja exceções, inclusive em sede de cortes de apelações.

No geral, porém, mantém-se um quadro controvertido. Atualmente, 40 Estados americanos e o distrito federal possuem leis que conferem proteção ao sigilo das fontes para jornalistas. Em outros nove Estados, precedentes judiciais protegem esse sigilo de alguma forma. Isolado, apenas o Wyoming não oferece nenhuma forma de blindagem jurídica expressa, como é possível verificar em State-by-State Guide to the Reporter’s Privilege for Student Media (Student Press Law Center, 2010) – uma versão eletrônica está disponível aqui. As leis variam bastante: algumas se aplicam a processos civis, excluindo expressamente processos criminais; outras protegem apenas a identidade das fontes, mas não outras informações correlatas; há casos que apenas formalizam proteções já garantidas pelos precedentes judiciais do respectivo Estado.

Custo zero

É na esteira desse desenvolvimento histórico que subsiste o debate sobre a conveniência de uma lei federal sobre o assunto. Em 2010, por exemplo, um projeto de lei que parecia caminhar para aprovação retrocedeu em função dos rumorosos vazamentos publicados pelo Wikileaks. Esse episódio foi um marco, porque colocou sob os holofotes a questão sobre como o sigilo da fonte seria aplicado em um mundo no qual qualquer pessoa ou organização fora da imprensa tradicional pode publicar informações obtidas por vazamentos na internet.

Além disso, após setembro de 2001, uma proposta de legislação federal ganhou especial relevância porque as investigações na área de segurança nacional estão a cargo de autoridades e tribunais federais. Ou seja: é exatamente no âmbito federal que argumentos de defesa de segurança nacional contrapõem-se com frequência à proteção ao sigilo da fonte.

A jornalista Judith Miller que o diga. Em 2005, Miller, então do New York Times, ficou presa por 85 dias após se recusar a identificar sua fonte em uma investigação federal sobre o crime de divulgação de identidade de uma agente da CIA, Valerie Palmer. Ela não havia publicado a informação em nenhuma reportagem sua (o que por si só levantou dúvidas sobre se poderia invocar a prerrogativa de sigilo), mas foi arrolada como testemunha pelo procurador responsável pelo caso.

Ao final, descobriu-se que o responsável pelo vazamento criminoso era o chefe de gabinete do vice-presidente, que passou a informação para vários jornalistas. Miller foi solta após aceitar fornecer seu depoimento, o que fez somente depois de ter obtido a concordância de sua fonte. A Suprema Corte já havia se negado a analisar seu recurso. O caso é comentado por Floyd Abrams no livro Speaking Freely: Trials of the First Amendment (New York, Penguin Books, 2005). Ainda em 2005, Miller, por outro lado, beneficiou-se de uma decisão de outro juiz federal de Nova York que, ao reconhecer a prerrogativa de sigilo da fonte da jornalista nos moldes propostos pelo juiz Powell, negou um pedido daquele mesmo procurador de abrir o sigilo de todas as comunicações dela e de um colega do New York Times, referente a um período de três meses, no âmbito de uma investigação de extremistas islâmicos, que teriam sido avisados sobre a realização de uma futura operação de busca e apreensão. O juiz apontou que não havia justificativas suficientes por parte do governo para superar o privilégio. No ano seguinte, no entanto, a decisão seria revertida em segunda instância, pelo placar de 2 a 1, como divulgado na reportagem “U.S. Wins Access to Reporter Phone Records”, publicada em 2 de agosto de 2006 no jornal The New York Times.

O projeto de lei atualmente debatido não prevê proteção absoluta ao sigilo, pois reserva a possibilidade de juízes superarem essa garantia e determinarem a exposição de fontes e informações, ainda que de modo excepcional. Algo bastante controverso, que leva alguns a expressarem dúvidas sobre se uma eventual lei efetivamente intensificaria a proteção aos jornalistas ou se juízes seriam facilmente seduzidos pelos apelos de segurança. O tema foi discutido em diversos artigos publicados na imprensa americana nos últimos meses. Entre eles, o de Bill Keller, “Secrets and Leaks”, publicado no New York Times em 2 de junho, traduzido pela Folha de S.Paulo no dia 4; o de Walter Pincus, “A Federal Shield Law, Potentially a Slippery Slope”, divulgado pelo Washington Post em 29 de maio; e o de Matthew Cooper, “Why a Media Shield Law Isn’t Enough to Save Journalists”, que saiu por The Atlantic, também em 29 de maio.

No Brasil, a Constituição prevê a proteção ao sigilo “quando necessário ao exercício profissional”. Mas esse tema não parece provocar muitos conflitos jurídicos conhecidos. Na realidade atual, em que a internet permite a disseminação instantânea de informações a custo quase zero – e na qual os blogs parecem ser o centro de diversas disputas judiciais –, é razoável se perguntar como aplicar essa garantia constitucional em um mundo no qual é cada vez mais difícil diferenciar “quem é” a imprensa.

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Rodrigo Vidal Nitrini é mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) e defensor público. Este artigo reproduz parte da dissertação “Liberdade de Informação e Proteção ao Sigilo de Fonte: Desafios Constitucionais na Era da Informação Digital”.