Friday, 26 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

Realidade sob medida

Enquanto escrevo, um espectador sentado na sua casa em Moscou descobre, pelo noticiário da TV russa, que bravas forças de autodefesa na Crimeia tomaram pacificamente uma importante base aérea ucraniana, onde radicais fascistas se recusavam a acatar o resultado do referendo que corrigiu um erro histórico.

Na minha sala, vejo, pela BBC, cujo cinegrafista evadiu a intimidação de trogloditas mascarados confiscando imagens nos cartões de memória, um tanque russo destruir o portão da base de Belbek, onde soldados ucranianos passaram três semanas num limbo assustador. O corajoso de verdade da invasão, o comandante da base, coronel Yuliy Mamchur, foi levado preso por forças especiais russas e sumiu, depois de um discurso eloquente que terminou com seus comandados cantando o hino nacional da Ucrânia, em meio à cerimônia humilhante da rendição.

A popularidade de Vladimir Putin dispara com a invasão da Crimeia que, a União Europeia teme, é o começo de uma aventura militar mais ambiciosa. Ele diz – e a grande maioria da população acredita – que forças neonazistas ameaçavam a população étnica russa na Ucrânia. Lá em Kiev e aqui em Manhattan nós sabemos que é mentira, mas de que adianta? A Ucrânia tem movimentos nacionalistas de direita há anos. Os russos étnicos no Leste da Ucrânia são insatisfeitos desde o colapso da União Soviética.

Mas a fabricação de uma realidade para justificar a invasão de um país é um triunfo que ninguém pode tomar do presidente que reimaginou um regime semiditatorial sob a marca “democracia soberana”.

Na bolha imperial do Vladimir, um âncora de TV goza de liberdade para sugerir que os Estados Unidos podem ser reduzidos a pó. Pó radiativo. O mesmo “jornalista” ensina ao público: a independência americana da Grã-Bretanha não é legítima. O Kremlin divulga uma petição pela retomada do Alasca. Seria cômico se não fosse trágico, num país onde Stalin matou de 20 a 60 milhões, dependendo do historiador, e, graças a Putin, foi reabilitado em livros escolares.

Confirmação de preconceito

O que me leva a um fracasso, não de propaganda, mas de jornalismo. A cobertura do desaparecimento do Boeing da Malaysia Airlines adquiriu um tom quase pornográfico, à medida que canais de notícias americanos passaram a dedicar a maior parte das horas no ar ao evento que, até o momento em que fecho a coluna, tem poucos fatos comprovados. A culpa maior recai sobre a CNN, que nomeou um ex-executivo de entretenimento da NBC para aplicar respiração boca a boca no seu desempenho de audiência, em declínio há anos.

Enquanto Vladimir Putin virava ao avesso a ordem internacional do final da Guerra Fria, a CNN nos trazia a noiva de um passageiro cujo sexto sentido lhe informava que o avião pousou em segurança em algum lugar e seu amado está vivo.

Deixemos de lado, por um momento, a crueldade de explorar o luto de uma pessoa visivelmente abalada, estimulando a exposição gratuita ao voyeurismo internacional. Deixemos de lado a nossa curiosidade natural com um mistério desta dimensão. No século 21, não esperamos que um Boeing 777 possa desaparecer. Tenho dificuldade de imaginar a mídia pré-ruptura digital relegando a queda do Muro de Berlim ao segundo plano por causa dos números de audiência. Sim, boa parte da cobertura exclusiva e de qualidade na Crimeia partiu de repórteres intrépidos trabalhando para a mídia digital. Mas, ao abrir mão de destacar a importância do que acontece na Ucrânia, de articular uma narrativa acessível para uma situação complexa, parte da mídia americana se torna cúmplice de Vladimir Putin. A propaganda precisa de um vácuo para triunfar.

Mas a propaganda precisa de algo mais e isto vale para qualquer país onde governantes respondem aos fatos esperneando com slogans. O historiador de Stanford Michael McFaul ocupou a embaixada americana em Moscou de 2012 até o começo deste ano. Lá, proibido de aparecer na mídia controlada pelo Kremlin, ele foi testemunha da demonização de tudo que é associado aos Estados Unidos na era Putin. Um exemplo: O tunisiano que se imolou no evento inicial da Primavera Árabe foi coagido pela CIA.

Difundir qualquer narrativa conspiratória é possível, mesmo na era da internet e da divulgação instantânea via mídia social. Fazer um inimigo de espantalho é fácil. Mas a reação à propaganda é, por natureza, não reflexiva, responde ao que chamam hoje de confirmação de preconceito. Ao longo do tempo, quando a realidade adversa atinge o público e não pode ser enfrentada com slogans, a retaliação é inevitável. E isto vale tanto para Caracas como Moscou.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York