Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

‘O Estado precisa criar um líder para depois matá-lo’

Elisa Quadros Sanzi, a Sininho (como a personagem de Peter Pan), é, segundo as investigações policiais, uma espécie de mestre de cerimônias dos Black Bloc. Uma investigação policial de 2.000 páginas a acusa de liderar um grupo criminoso armado que semearia o caos nas mobilizações populares do último ano no Rio de Janeiro e em outras capitais do país. Durante a recente operação Firewall 2, Sininho foi detida em sua cidade natal, Porto Alegre, sob a acusação de planificar um grande boicote no final da Copa do Mundo no Rio e de negociar a compra de material pirotécnico com esse objetivo. A morte, meses antes docinegrafista Santiago Andrade, alvejado por um foguete manipulado durante uma manifestação de rua, abriu a temporada de caça definitiva de Quadros e seus correligionários, agrupados em vários grupos de linha revolucionária e, inclusive, radical. Desde então, a polícia segue de perto seus movimentos com o propósito de desvendar a organização interna de um coletivo tão etéreo como gelatinoso.

Profissional da produção audiovisual, desde junho de 2013 Sininho se entregou totalmente ao que ela mesma denomina como “luta”, a secas. Uma luta que, por enquanto, deixou a marca indelével do cárcere, onde já esteve por duas vezes. Sob o fogo cruzado da imprensa e recém libertada, depois de treze dias de prisão preventiva no inferno carcerário de Bangú, o mesmo presídio que acolhe criminosos perigosos de toda índole, a jovem de 28 anos recebeu o EL PAÍS no escritório de seu advogado. Com o gesto sereno, ora risonha, ora sombria, afirma que a imprensa, sob a batuta dos políticos, criou uma espécie de monstro midiático. Nega veementemente ser líder de qualquer movimento social, assegura não se arrepender de nada e afirma que seguirá na batalha nas ruas pela igualdade social.

Pergunta: Como se sente após os últimos treze dias na prisão?

Resposta: Por ser filha de militantes e ter estudado as lutas revolucionárias entendo muito bem que a partir do momento em que se entra em uma luta contra um Estado, se assume uma série de consequências. Quanto mais se enfrenta as consequências, mais estas se manifestam com força. Isso foi o que me aconteceu. Desde agosto do ano passado, quando entrei de cabeça nessa luta, não pararam de crescer a pressão midiática e as ameaças. Atualmente não posso sair na rua sem um acompanhante. O Estado está usando todos os seus braços, principalmente os meios de comunicação, para me criminalizar.

“As presas me mandavam mensagens às escondidas. Mensagens de apoio e solidariedade”

P. O que passou em sua cabeça durante sua estadia na prisão?

R. Meu maior medo foi que, por ser uma das pessoas mais criminalizadas pelos meios de comunicação hoje em dia, a população acreditasse nessas versões e me deixassem abandonada na prisão. Foi o contrário, já que essas detenções voltaram a levar as pessoas para as ruas para protestar. Minha passagem pela prisão foi tensa já que ali dentro as carcereiras me diziam diariamente que ninguém se lembrava de mim, que não tinha advogado e que os meios de comunicação só falavam mal de mim. Mas as presas me mandavam mensagens às escondidas. Mensagens de apoio e solidariedade. Escondiam porque se fizessem abertamente eram castigadas, passando frio e fome. Foi uma tortura psicológica até o último minuto.

P. A investigação policial de 2.000 páginas afirma que você é a líder de um grupo criminoso armado.

R. A arma é uma pistola 38 milímetros que pertence ao pai de uma garota que tem porte de armas e que é segurança. Os investigadores sabiam disso e ainda assim disseram que esta arma era minha. Somos 23 pessoas perseguidas que apenas se conhecem. Eu conheço pouco mais da metade de vê-los nos atos. E só tenho o telefone de quatro deles. Existe gente nessa lista que nunca vi na minha vida. Se você ler a investigação vê que é incrível a forma desrespeitosa com que penetraram na minha vida. Fuçaram a minha vida pessoal, as discussões com a minha mãe e em mensagem íntimas de meu companheiro.

P. Você tem alguma conexão com os Black Blocks?

R. Não. Mas não serei eu quem vai criminalizar as atitudes dos Black Blocks. São jovens, a maioria negros e moradores de bairros de periferia que toda a vida foram criminalizados e maltratados. Eu nunca cobri a cara nem incentivei a violência.

“Gostaria que nas manifestações não houvesse violência, mas não é possível”

P. Então, você justifica de alguma forma o uso da violência por parte dos manifestantes?

R. Mais uma vez. Não posso criminalizar aqueles que formam a ponta do iceberg. Vivemos em um sistema extremamente violento que acaba gerando atitudes violentas. A violência da polícia é permanente, e não começou em junho de 2013, é histórica no Brasil. Os policiais entram nas favelas, matam e torturam, e não acontece nada. Entram nas manifestações de forma violenta. E claro, ninguém apanha calado.

P. Você entende, portanto, que os atos violentos dos Black Blocks são uma consequência…

R. Sim, são a consequência de uma sociedade opressora e assassina. Gostaria que nas manifestações não houvesse violência, mas não é possível.

P. Não acredita que possam existir outras formas de lutas nas quais não seja necessário recorrer à violência?

R. Sim, existem, e nós as fazemos, mas os meios de comunicação não contam. Não contam que quando existem inundações, muitos mortos e o Estado não está presente para ajudar, os militantes organizam campanhas e entram com água até a cintura para ajudar. Tampouco contam o trabalho que fazemos com os moradores de rua. Há anos não contam tudo o que fazemos.

P. Que sequelas o último ano deixou?

R. Como militante me deixou a melhor experiência da minha vida. Não me arrependo de nada e voltaria fazer tudo de novo. Agora, vou continuar trabalhando com a cabeça erguida. Como ser humano, a destruição da minha imagem está sendo muito complicada de enfrentar. Se fosse hostilizada na rua, sofreria muito já que estou pagando as consequências de lutar por um mundo melhor. Pagaria o que fosse para ter um dia normal, sair na rua, ir na padaria, ir ao cinema e não ser reconhecida.

P. Sente-se mais agredida pelo Estado ou pela imprensa?

R. Os meios de comunicação estão me perseguindo muito e me dói demais, mas sei que é o Estado que os ordena que me persigam. Os jornalistas que assinam artigos me acusando são maus profissionais, mas não é culpa deles. A culpa vem de cima: de um Estado opressor.

P. Que imagem você acredita que a sociedade tem de Elisa Quadros?

R. Foi criada uma identidade que não existe. Mas isso não é novo. O Estado precisa criar um líder para depois matá-lo. Nesse caso escolheram mulheres. Não fui desqualificada apenas politicamente, mas também como mulher. Entretanto, nunca fui insultada na rua, pelo contrário. As pessoas têm muita curiosidade de saber quem eu sou. Me perguntam de tudo, até o que penso sobre o que acontece na Faixa de Gaza. Se nosso movimento teve repercussão e força é porque não tem líderes. Não faz sentido que tudo isso seja personificado em mim.

P. Mas às vezes os líderes são escolhidos sem que eles queiram, quase de forma natural. Não pensa que isso pode ter acontecido com você?

R. Posso lhe dizer que participei de todas as manifestações e nelas nunca fui vista como uma líder, porque nunca fui. O único momento no qual posso ter tido uma voz mais relevante foi na ocupação “Ocupa Cabral – Ocupa Câmara” por ter sido um acampamento que requeria uma certa organização. Por ser produtora tenho mais facilidade organizacional, mas em outros movimentos e greves nunca apareci como uma líder. Para começar, não falo bem em público e tenho vergonha de falar em assembleias. Não sou cientista política nem tenho um discurso articulado clássico.

P. Então, quem é a Sininho?

R. A Sininho é a Elisa Quadros. Me colocaram o apelido de Sininho carinhosamente na ocupação Ocupa Cabral para que entre nós não soubéssemos nossos nomes reais. Foi uma espécie de jogo. Entrei de cabeça nos protestos de junho de 2013 porque questionei durante muito tempo o estilo de vida que a sociedade nos impõe: casar, ter filhos, ganhar um bom salário, ter um horário de trabalho rígido e ter uma vida familiar convencional. Já fui casada quatro anos e tive tudo isso, mas via tanta injustiça nas ruas que cheguei à conclusão que tinha coisas mais importantes para fazer. Não aguentava mais, chorava de angústia e me sentia egoísta enquanto tanta gente sofria. Cheguei ao limite de não aceitar essa vida burguesa que a sociedade nos impõe. Acredito na luta pela igualdade, por uma vida digna, ainda que não viva o suficiente para ver essa mudança.

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Francho Barón, do El País