Saturday, 05 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

A nova prisão, agora refém da mídia

Por um dia, as manchetes que anunciavam os cinco anos dos ataques às Torres Gêmeas do World Trade Center deram lugar a uma história digna de filmes de ação – ao menos, nos jornais da Áustria e da Alemanha. Na quarta-feira (6/9), os holofotes da mídia do mundo inteiro se voltaram para a entrevista da jovem Natascha Kampusch, de 18 anos, ao canal de TV austríaco ORF (Österreichischer Rundfunk). Clique aqui para assistir à entrevista (em alemão).

Em 1998, com apenas 10 anos, Natascha foi seqüestrada a caminho da escola, em Viena. Ficou encarcerada durante oito anos, com direito de sair do cubículo que ocupava no porão do algoz Wolfgang Priklopil, de 44 anos, apenas para passar algumas horas com ele. Em 23 de agosto último, Natascha conseguiu fugir: sete horas depois, Prilopil cometeu suicídio se jogando na frente de um trem.

A história é mel para as moscas da imprensa mundial. Trezentos veículos manifestaram interesse numa exclusiva com a jovem, que voltou à reclusão, junto à familia. Cento e vinte haviam conseguido até quinta-feira (7/9). Relatos em revistas e jornais da Alemanha dão conta de que a emissora RTL pagou uma soma de seis dígitos (cerca de 200 mil euros, ou quase 600 mil reais). A ARD, outro monstro midiático alemão, desembolsou 5.500 euros por cinco minutos de conversa com Natascha Kampusch.

O responsável pelas negociações com jornais e canais de TV é o relações-públicas Dietmar Eckerist, conhecido na Áustria por suas qualidades de conselheiro de mídia. Eckerist, 42 anos, assumiu o posto gratuitamente. O canal ORF, que afirma não ter pago nada pela entrevista de Natascha, deverá organizar as vendas internacionais do relato da jovem daqui em diante. Todos os ganhos recebidos pelo ORF serão investidos num fundo criado para a garota, que quer ajudar mulheres vítimas da violência no México e a combater a fome, na África. A moradia e a educação de Natascha serão garantidas pelo dinheiro pago pelos primeiros veículos vencedores da concorrência pela entrevista, a exemplo do diário austríaco Kronen Zeitung e da revista semanal News. Os dois veículos teriam oferecido uma renda vitalícia à jovem.

Tratamento exaustivo

O grande interesse pelo drama de Natascha, segundo Eckerist, se deve a uma identificação relacionada ao medo que o ser humano tem do cárcere. “Fantasias masculinas” e, principalmente, a “ressurreição” da jovem também desempenham papéis fundamentais na atratividade do caso. O site de Eckerist informava, antes da entrevista, que falar à mídia era “desejo expresso” de Natascha.

Houve controvérsias, principalmente por parte dos pais da garota. O jornal Österreich deu conta de que eles acionaram os advogados para tentar proibir a entrevista. Destacado pela edição online da revista semanal Der Spiegel, o Österreich cita os pais de Natascha: “Ela está sendo manipulada por essa gente que a está orientando”.

É certo que a negociação do “pacote midiático” tem aparência benevolente, principalmente por causa das ações humanitarias que Natascha quer apoiar. O “voluntarismo” de Eckerist e o “altruísmo” do canal ORF reforçam essa imagem.

Não que a atitude dos veículos de comunicação não seja louvável. Nada mais justo, aliás, que encaminhar para causas sociais os lucros obtidos com a atenção mundial despertada pelo caso. No entanto, mais uma vez se chega ao limite entre o que é de interesse público e um tratamento exaustivo do caso. Natascha, livre do seu algoz, se tornou refém da pressão da mídia. De acordo com o colunista Herbert Kremp (Die Welt, 7/9), “venceu o voyeurismo”.

“Complexo publicitário-fiscal”

O argumento da imprensa é o fato de Natascha ter se tornado uma pessoa de interesse público. Mas, na verdade, a jovem deve satisfações, se tanto, apenas à policia. Com a morte do seqüestrador Priklopil, toda a atenção se concentra nela. Mesmo que ela tenha manifestado vontade de contar sua história, de início pediu calma à imprensa. O psiquiatra que cuida da garota falou em trauma profundo – que era, obviamente de se esperar. A começar pela relação de Natascha com Priklopil. Apesar de ter “sonhado em decapitá-lo”, ela não quer que ele seja atacado “porque não está aí para se defender”.

Talvez por efeito da liberdade recém-conquistada, a desenvoltura e o vocabulário elaborado de Natascha surpreenderam o público e os jornalistas. Quem sabe, como diz Herbert Kremp, ela se aproveite de sua “nova prisão” – “uma indústria, um complexo publicitário-fiscal”. Pode ser que tome a dianteira da “empresa” para fundar ou dar continuidade a projetos sociais, como demonstra estar fazendo. “Ou talvez, ela ‘quebrará’. Lamentarão, ao seu redor: ‘Ela não conseguiu voltar à vida, se reintegrar à sociedade’”, escreveu Kremp.

Seja como for, agora ela tem liberdade para escolher.

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Jornalista, pós-graduada em Ciências da Informação e da Comunicação pela Sorbonne (Universidade Paris IV)