Saturday, 05 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

A vitória da cítara

Quem acompanhou a cobertura dos dois fóruns (Davos e o de Porto Alegre) feita pelos grandes jornais brasileiros viu que o direcionamento era claro. No primeiro, a razão instrumental dos dirigentes de grandes corporações era apresentada como encarnação máxima da sensatez. No segundo, grupelhos nostálgicos produziam uma atração turística de gosto duvidoso. Com o advento da crise sistêmica do capitalismo, um silêncio desconfortável se instalou nas redações. O encanto promovido por elas se esfarelou como um castelo de areia.

O fracasso do neoliberalismo condensa a tragédia de um pensamento utilitarista que considerava boa a democracia que estivesse adequada ao mercado, que consagrava a liberdade econômica como superior à liberdade política e, para não obstar o processo acumulativo, entregava os postos-chave do Estado aos carcereiros de qualquer aspiração republicana.

O ideal era a fragilização da esfera pública, o esmagamento de qualquer forma de auto-organização da sociedade incompatível com as práticas de negociação da empresa monopólica moderna. Isso era Davos e sua lógica binária pretensamente tranqüilizadora. Uma solene encenação da única ópera de Beethoven, Fidelio, para os menestréis da ‘boa gestão’ corporativa. 

Caminho correto

A melhor descrição desse cenário foi feito por Marilena Chauí, em texto para a revista Desvios, em 1984: ‘Tanto o mercado propriamente dito quanto a política são tratados como barganha num espaço competitivo constituído por indivíduos, grupos ou pela massa’.

Se Kierkegaard descreveu a angústia como experiência propriamente humana do ser livre, a ‘Montanha Mágica’ das finanças jamais a levou em conta. Sua realidade ‘transparente e apaziguadora’ estava livre de qualquer pulsão dialética, apascentando administradores racionais e gerentes científicos.

O Fórum Social Mundial era o oposto disso. Representava uma aposta na política como ferramenta para construção de novas estruturas que funcionassem de forma relativamente igualitária, relativamente não-hierárquica, efetivamente democrática. O outro mundo só possível pela práxis dos que não desistiram de se assenhorearem da própria história.

O colapso do capitalismo era visto não como mais um ciclo de destruição criativa, mas como ruína da ordem social em escala planetária, com desdobramentos políticos absolutamente imprevisíveis. As estradas, ao contrário do que rezava o credo neoliberal, não mostravam o caminho correto para o desenvolvimento. De forma oposta, cabia aos movimentos anti-sistêmicos criar transversais, resgatando o Estado do arcabouço institucional que levava à supressão de direitos e a inserções subalternas.

Prognósticos contrariados

Por tudo isso, o FSM foi visto pela grande imprensa como um ‘Woodstock’ dos trópicos, um desfile de batas e slogans que não escondiam o ‘clima retrô’ das propostas. Em Davos, o substantivo. Em Porto Alegre, o anedótico. Era a lógica editorial de quem reproduzia mantras como se fossem discursos próprios.

Como disse Oded Grajew em entrevista à Folha de S.Paulo, ‘o colapso financeiro confirmou as previsões que o fórum fazia. É só recuperar toda a nossa história. Sempre falamos isso. Mas a gente não fica feliz e contente com a crise. Queremos é um mundo com qualidade de vida’.

Com um maestro desnorteado pela perda da partitura, a iluminação do Fidelio de Davos está cada vez mais precária. As cordas da cítara de Ravi Shankar, no entanto, voltam a vibrar com intensidade. Contrariando prognósticos, Woodstock parece ter vencido. E o que parecia ‘retrô’ agora é adivinhado como possibilidade, como angústia do devir, como história que teima em não terminar.

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Professor titular de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro, RJ