Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Brasil depois do Carnaval

Em sua edição de 12 de novembro de 2009, a revista The Economist, consensualmente considerada como um dos veículos jornalísticos de melhor qualidade no mundo (e um dos poucos impressos que têm visto sua circulação paga crescer neste século), decretou: “O Brasil decola”. Na ilustração da capa, em geral de bom gosto indiscutível, mas nesse caso duvidoso, o Cristo Redentor partia como um foguete do Corcovado em direção aos astros. No texto de introdução ao caderno especial sobre o país, o subtítulo dizia: “Agora, o risco para a grande história de sucesso da América Latina é o excesso de confiança”.

Em 9 de julho deste ano, o jornal Financial Times, outro ícone do bom jornalismo mundial (e outro raro exemplo de sucesso, mesmo nesta fase de declínio dos meios de comunicação em papel), foi também definitivo no julgamento do Brasil, mas na direção oposta: “Brasil: depois do Carnaval”. Será que o empuxo do Cristo Redentor-foguete era tão fraco que só o faria subir um pouco para logo cair e a Economist não havia se dado conta? Ou é o Financial Times que agora está vendo a Quarta-Feira de Cinzas que não chegou? Ou, ainda, podem os dois ter errado em seus diagnósticos e o que vem acontecendo com o Brasil não corresponderia nem ao imenso sucesso reportado em 2009 nem ao tremendo fracasso noticiado em 2012?

A imagem externa de uma nação depende de diversos fatores, a maioria dos quais bastante subjetivos. Quem a constrói são empresários e executivos, analistas de mercado, diplomatas, artistas, turistas, acadêmicos, esportistas e correspondentes internacionais, que em grande medida compilam opiniões e informações que recebem de outras pessoas, fazem uma síntese delas e a difundem à sociedade de seus países de origem.

Hipótese aceita

Sem dúvida, houve neste século claro ponto de inflexão na percepção do Brasil pelo mundo, especialmente nos principais centros do capitalismo. Isso é comprovado objetivamente em pesquisas globais de opinião pública sobre a atitude em relação a diversas nações, como a da BBC World Service. Em 2011, a opinião positiva sobre o Brasil em 26 outros países teve um avanço significativo (pulou de 40% para 49%), enquanto a negativa caiu para só 20%, segundo a BBC. Com exceção da Alemanha e da China, em todas as outras nações a visão do Brasil era mais favorável do que desfavorável. Nos EUA, 60% das pessoas consultadas avaliavam simpaticamente o Brasil.

Pesquisas mostram que os próprios brasileiros passaram a se ver com mais otimismo e a acreditar que o mundo os apreciava bem no fim da década passada e no início desta. Segundo o Pew Research Center em seu estudo sobre atitudes globais de 2010, oito entre dez brasileiros acreditavam que as pessoas de outros países gostavam do Brasil e só 18% achavam que ele era malvisto. Apenas a China, a Jordânia, a Índia e a Indonésia, entre os 22 países pesquisados, tinham uma autoimagem mais alentada do que a do Brasil. O trabalho do Pew também mostrou que, em 2010, 24% dos brasileiros achavam que seu país já era uma potência mundial e 53% acreditavam que o seria no futuro. Só 20% diziam que o Brasil nunca seria uma potência.

Até que ponto se pode atribuir essa opinião coletiva ao que os meios de comunicação de cada lugar divulgaram sobre o país é uma questão em aberto. As ciências sociais ainda não chegaram a um consenso sobre quanto de fato a mídia é capaz de influenciar a maneira como o público pensa e age. Mas seguramente há uma associação entre o noticiário favorável ao Brasil em diversos países no fim da década passada e a generalizada aceitação da hipótese de que aqui as coisas estavam indo excepcionalmente bem, em especial ao compará-las com o que ocorria no restante do mundo.

A contramaré começou

Em 2010, animado com os indícios de que algo significativo estava ocorrendo com a imagem internacional do país, o governo tomou iniciativas para, pela primeira vez, monitorá-la de modo sistemático. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) submeteu um questionário a centenas de entidades estrangeiras com presença no Brasil e a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) passou a fazer análise diária do noticiário sobre o país em veículos de comunicação internacionais.

Os resultados dos dois estudos divergiram entre si. O do Ipea mostrou uma percepção moderadamente favorável do país, mas o da Secom apontou que apenas 15% das matérias publicadas sobre o Brasil tinham viés negativo, o que indicava que a imprensa internacional tendia a ser mais otimista do que agentes externos que atuavam aqui, como notou a jornalista Cláudia Antunes em texto publicado pela Folha de S.Paulo na época. Nesse mesmo texto, informava-se que o governo brasileiro estava tomando a iniciativa de trazer ao país grupos de jornalistas internacionais para escreverem a respeito do Brasil, numa atitude proativa também sem similar.

A contramaré nos veículos de comunicação com artigos, reportagens, entrevistas e análises negativas sobre o Brasil começou há apenas alguns meses, e só será possível verificar seu possível efeito em termos de opinião pública no fim deste ano ou, mais possivelmente, em 2013 e 2014.

19 novos milionários por dia

Mas já se pode perguntar se os correspondentes estrangeiros e demais observadores do Brasil estão percebendo bem o que ocorre no país agora. Richard House, atualmente consultor em comunicação na Europa, que foi correspondente do Washington Post no Brasil e trabalhou na Economist e no Financial Times, acha que sim, os correspondentes retratam bem o país. Confrontado com a perplexidade com que alguns brasileiros veem o conceito de seu país despencar na mídia internacional, ele diz: “Eles é que não estão conseguindo acomodar ou tolerar uma perspectiva outside-in num momento importante do crescimento de seu país.”

House acha que o Brasil está passando por “uma fase Château Pétrus com Coca-Cola”: muitos se deslumbram com os avanços obtidos sem dúvida pelo país, mas não aceitam que sejam mostradas as muitas deficiências que ainda existem; o país quer tomar sempre vinho fino, mas às vezes não tem como escapar do refrigerante barato.

Estrangeiros sempre tiveram do Brasil imagem predominantemente negativa (favelas, miséria, crianças pobres pelas ruas, devastação ambiental), com alguns elementos exóticos positivos (samba, mulata e futebol). Esse foi o estereótipo brasileiro no mundo durante a maior parte do século 20. De repente, descobriram que no Brasil aparecem 19 novos milionários por dia, que brasileiros controlam grandes empresas mundiais, que aqui o desemprego é bem menor que na Europa, que há uma imensidão de petróleo em suas costas, que seu PIB cresceu 7,5% num ano em que o de quase todo o resto mundo estagnou ou caiu.

Interesses localizados

Ao mesmo tempo, o Brasil passou a dar sinais de querer aproveitar esse bom momento para se comportar de modo que para muita gente pareceu arrogante e presunçoso (“como muitos no Brasil achavam que se comportavam os argentinos quando o país deles estava em alta e o Brasil em baixa, há 20 ou 25 anos”, lembra House). “Correspondentes – ainda que inconscientemente – procuram sinais de que esse garoto novo no pedaço, atrevido, petulante e espertinho, continua tendo os seus problemas? Claro que sim. Mas a mídia e seus clichês refletem questões que os próprios brasileiros ainda não responderam. Sim, a economia é enorme; sim, há muita prosperidade; sim, o Brasil está tendo o seu lugar ao sol. Mas qual é o projeto nacional? Quais são os valores que guiam o Brasil moderno?”, argumenta House. “Minha resposta é que não são os correspondentes e os veículos internacionais que estão confusos. Eles estão simplesmente transmitindo os sinais da confusão interna de um recentemente enriquecido Brasil, que ainda não chegou a uma conclusão sobre qual é o seu lugar no mundo.”

Outro veterano correspondente internacional, Paulo Sotero, que cobriu os EUA para importantes jornais brasileiros e agora é diretor do Brazil Institute do Wilson Center em Washington, afirma que “a percepção de que o Brasil era um sucesso e agora virou um fracasso vem do noticiário econômico e reflete opiniões de analistas do mercado”.

Em sua visão, analistas de mercado em geral emitem juízos de valor que têm “um tom definitivo, vêm geralmente acompanhados de preleções, são invariavelmente tardios, para o bem ou para o mal exageram e não constituem análises neutras ou isentas, pois refletem os interesses imediatos das instituições que as divulgam de produzir resultados para seus clientes”.

O mensageiro e a mensagem

Como exemplo, ele cita que “a euforia do mercado com o Brasil virou zanga quando o governo reintroduziu controles de capitais para fazer frente à valorização do real e o Banco Central passou a executar uma estratégia agressiva de redução dos juros, sem produzir os efeitos inflacionários que os analistas previram”.

Sotero também lembra o artigo de Ruchir Sharma, publicado na edição de maio/junho da revista Foreign Affairs, no qual, além de cometer vários erros factuais, o economista do Morgan Stanley anuncia em tom definitivo o fim do ciclo positivo que o país vive desde 1999, e as declarações neste mês de Jim O'Neill, do Goldman Sachs, que inventou a sigla Bric em 2001, para quem o Brasil, se não retomar taxas de crescimento fortes, poderá deixar de ser o B dos Brics.

Na avaliação de Sotero, “os exageros dos prognósticos negativos de hoje terão o mesmo destino dos suscitados no mercado financeiro pelo anúncio do Plano Real, da tese de que o Brasil deveria seguir a Argentina de Domingo Cavalo e Carlos Menem e dolarizar sua moeda, ou das previsões de que o PIB brasileiro cairia 4% em 1999, com a desvalorização do real”.

No noticiário sobre outros assuntos que não os econômicos, Sotero vê o reflexo de informações divulgadas e debatidas por veículos brasileiros de comunicação de massa: “As reportagens sobre cultura são geralmente positivas. As demais, sobre política e sociedade, são mistas. Diria que tendem para o negativo, refletindo exatamente como acontece na imprensa brasileira, que é a fonte primária dos correspondentes e das agências internacionais.”

Para House, a cobertura que foi feita da Rio+20, predominantemente negativa para o Brasil, foi apenas um prenúncio do que virá na Copa do Mundo de 2014 e na Olimpíada de 2016. “Os enviados especiais escreveram sobre as favelas, os congestionamentos de tráfego, o desflorestamento da Amazônia, a guerra por babás na classe média alta.”

É muito comum responsabilizar o mensageiro pela mensagem, quando esta é desagradável ao receptor. Por mais problemas que a cobertura do Brasil feita pela mídia internacional possa ter, no entanto, em geral ela se apoia em fatos, ainda que possa ser exagerada ou mal fundamentada em diversos casos específicos.

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Correspondente estrangeiro, um combate de todos os dias

A função de correspondente internacional tem sido historicamente uma das mais cobiçadas no jornalismo e das mais reconhecidas pelo público, mas é também uma das com maior nível de dificuldade para ser bem cumprida. O correspondente tem de tentar compreender a fundo o sistema político, econômico, social e cultural da nação que o hospeda e da sua. Diferentemente do que ocorre na sede do seu veículo, onde em geral o jornalista se especializa numa só área e a ela se atém pelo menos por algum tempo, o correspondente internacional quase sempre trabalha sozinho e tem de fazer e saber de tudo.

Além das diferenças culturais e da falta de conhecimento implícito do contexto histórico, econômico e político da sociedade em que vive (em geral, por pouco tempo – algo em torno de três a cinco anos), o correspondente em outro país costuma ter uma limitação muito grande de fontes. Por exemplo, o jornalista de língua inglesa que está num país em que a maioria não a domina, pode se tornar presa dos que ali conseguem se expressar bem em inglês, quase sempre pertencentes todos a um grupo social específico, o que pode provocar distorções na sua apreensão da realidade.

Leão Serva, em seu livro Jornalismo e Desinformação (Senac, 2011), mostra como alguns vícios estruturais do modelo de jornalismo hegemônico nos países ocidentais, que criam no público um estado que ele chama de “desinformação funcional”, se tornam mais agudos no caso de correspondentes internacionais, especialmente os que cobrem situações de conflito. “O jornalismo tal como o conhecemos hoje omite as circunstâncias determinantes dos fatos” por estar sempre empenhado na prioridade ao que é mais novo, surpreendente, numa linguagem que seja a mais rapidamente compreensível pela maioria absoluta (numa busca de mínimo denominador comum), argumenta Serva.

Mais ajuda que atrapalha

A fim de tornar os fatos algo “simples, claro e objetivo”, pratica-se uma redução que frequentemente transforma uma história complexa em algo maniqueísta, diz. “A redução do fato no jornalismo contemporâneo muitas vezes reflete inadvertidamente adesões históricas que superam o papel de cada repórter e o remetem para histórias longínquas do país […]. Esse comportamento pode ser involuntário da parte de cada repórter isoladamente, mas revela que nas operações de redução também operam elementos culturais e ideológicos arraigados, e não só a observação de campo.”

O trabalho de Leão Serva lida mais especificamente com a atividade do correspondente de guerra. Mas pode ser aplicado de algum modo ao de todo correspondente estrangeiro. As “adesões históricas” e os “elementos culturais e ideológicos arraigados” também se manifestam na cobertura econômica. Assim como a dependência excessiva em relação a algumas poucas fontes.

Há, de fato, dificuldades sistêmicas no trabalho do correspondente internacional no sentido de produzir relatos capazes de fornecer a sua audiência um retrato aceitável dos assuntos de que trata. Ou seja, é plausível a tese de que as características intrínsecas do jornalismo talvez o impeçam de produzir material que efetivamente permita ao público compreender o mundo.

No entanto, não há muita alternativa viável. O público em geral não pode se informar apenas com teses e livros que levam anos para serem pesquisados e editados. A maioria das pessoas não tem o tempo e as condições intelectuais e materiais para ler esses livros. Os fatos ocorrem em ritmo muito mais rápido do que se leva para produzir esses livros. Assim, embora o jornalismo diário tenha vícios estruturais graves, ele é imprescindível, e o melhor que se pode fazer é tentar aprimorá-lo.

Não obstante todas as limitações inerentes à atividade, mais as que cada correspondente individualmente carrega consigo, a correspondência internacional, em especial em veículos jornalísticos de qualidade, mais ajuda a informar bem do que atrapalha a percepção que as sociedades têm dos acontecimentos que ocorrem fora de seu país.

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[Carlos Eduardo Lins da Silva é livre-docente e doutor em comunicação pela USP, mestre em comunicação pela Michigan State University e editor da revista Política Externa]