Saturday, 27 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

‘Eu só tinha dois problemas: o governo e a imprensa’

Ex-assessor de Lula. Um dos maiores jornalistas do Brasil. Quarenta anos de profissão. Escreveu sobre as tensões de Serra Pelada e sobre os conflitos de terra no Araguaia. Repórter de vários veículos: Estado de S.Paulo, Época, Folha de S.Paulo, IstoÉ, TV Globo, Jornal do Brasil. Vencedor de prêmios Esso de Reportagem e Vladimir Herzog. Filho de imigrantes europeus do pós-guerra. Pai e avô.

A ideologia e a amizade falam mais alto para Ricardo Kotscho. No governo, como assessor do presidente, ganhava três vezes menos do que recebia na Folha, onde trabalhava antes de ir para a capital da política. Amigo do ex-sindicalista desde a campanha eleitoral para a presidência em 1989, quando foi seu assessor pela primeira vez, falou como Lula está nestes tempos de crise.

Animado a cozinhar para a mulher após a entrevista, contou a experiência na assessoria da presidência nos dois primeiros anos do governo petista. Não recomenda o cargo a ninguém. Declara que, quando no governo, sabia de alguns casos de corrupção menores. O repórter que sempre preferiu cobrir o Brasil, em vez de Brasília, também fala sobre o comportamento da mídia em relação às CPIs. A cobertura da Globo é citada por ele como a melhor nos dias que correm.

A esperança e o lado bom de um Brasil triste pela impunidade são exaltados em seu livro Cartas do Brasil, com crônicas sobre o país que derrubou o presidente Collor. Kostcho, agora, em 2005, está chateado. Não imaginava que a corrupção voltaria com tamanha dimensão. Mas não perde a esperança e destaca as cartas que faria sobre a terra brasilis de hoje. Por isso, bom apetite!

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No que você tem trabalhado ultimamente?

Ricardo Kotscho – Desde que eu saí do governo, estou trabalhando em casa. Pela primeira vez na vida, né… Tô escrevendo um livro de memórias, são 40 anos de jornalismo. É a primeira vez que realmente estou fazendo um livro como atividade principal e recebendo uma ajuda de custo para poder fazer isso. Também colaboro com o site NoMínimo, faço palestras e eventuais consultorias, estou trabalhando por conta própria.

Como foi a experiência na Secretaria de Imprensa e Divulgação da Presidência da República?

R. K. – Para mim foi uma experiência muito dolorosa e sofrida, pois nunca pensei em fazer isso na vida e, ao mesmo tempo, foi muito gratificante porque aprendi muito, convivi com muita gente e conheci o poder por dentro. Mas não é uma coisa que eu recomende a nenhum amigo fazer porque você trabalha muito, apanha muito, ganha mal e nunca consegue atender aos interesses do governo e da imprensa ao mesmo tempo. Eu costumava brincar e dizer que eu só tinha dois problemas em Brasília: o governo e a imprensa.

E as discussões que você teve com o amigo e colega Clóvis Rossi quando secretário?

R. K. – O Rossi é meu amigo há mais de 30 anos. Nós começamos juntos no Estadão, ele foi meu primeiro chefe lá, foi meu padrinho de casamento e sempre discutimos juntos e trabalhamos juntos. Sempre que um entrava num jornal, o outro também entrava. E, no governo (do Lula), ele é muito crítico e eu sou um defensor. Uma vez, escreveu um artigo e eu respondi na própria Folha de S. Paulo. Eu só soube, depois que voltei pra cá (São Paulo), que a mulher dele, a minha madrinha de casamento, não tinha gostado muito (risos). Mas com ele está tudo bem.

Por que você saiu do cargo?

R. K. – Eu ia ficar só um ano em Brasília. Eu tinha combinado isso porque fui sozinho, minha família não estava lá. Então, tive que ficar mais um ano, o ano de 2004 e, desde o começo, estava acertado que ia embora no fim do ano.

Inclusive, em entrevista à Caros Amigos, você disse que não podia deixar de entrar no governo depois da vitória do Lula. Você o está acompanhando desde as eleições de 89, né?

R. K. – Exatamente. Como eu já tenho uma certa idade, não era meu plano de vida ir sozinho pra Brasília. Estava sem a mulher, as filhas, minha mãe estava doente. Mas eu também não podia chegar pro Lula e dizer: agora, vire-se… Então, o nosso acerto sempre foi esse, ficar um tempo, organizar a área de imprensa e depois ir embora.

Qual a sua relação com o José Dirceu quando estava lá, no governo?

R. K. – Sempre foi boa, saíram muitas fofocas e tal. Eu briguei com um monte de gente no governo, menos com o Zé Dirceu. Na grande imprensa, eu comecei no Estado de S. Paulo, em 67. Ele era líder estudantil, eu cobri o movimento estudantil e era estudante da USP também [Kotscho foi estudante de Ciências Sociais e Jornalismo na USP. Também tentou o curso de Economia na Mackenzie]. Nós somos velhos amigos, falei com ele ainda ontem [7/9/05], nunca tive divergência com ele. Minhas divergências eram com o Luiz Gushiken [então secretário de Comunicação e Gestão Estratégica] e com o André Singer [porta-voz do governo].

O que houve com o Gushiken e com o Singer?

R. K. – Eles tinham uma visão bem diferente da minha. Eu achava que a gente tinha que ter uma boa convivência com a imprensa. Eu não a vejo como adversária, como inimiga. Isso é coisa histórica do PT, aquele negócio de imprensa burguesa… Eu achava que não e esse sempre foi o meu trabalho. O problema maior surgiu no episódio Larry Rohter [o jornalista americano que escreveu artigo dizendo que Lula tinha problemas com o álcool]. Eu achei uma bobagem aquele negócio de expulsar um cara que ninguém sabia quem era, que fez uma besteira. Acabou se tornando uma vítima da liberdade de imprensa, um grande erro político do governo, que foi consertado na mesma semana, graças à ajuda do meu amigo Márcio Thomaz Bastos [ministro da Justiça].

E o que você pensa sobre as denúncias que envolvem o Zé Dirceu e o Gushiken?

R. K. – Eu posso falar do período que estava lá e das divergências que tive com algumas pessoas, mas não do que aconteceu depois. Até dezembro do ano passado, não havia nada disso, estava indo tudo bem e isso foi um dos motivos pelos quais pude sair. Se estivesse acontecendo uma crise como hoje, nem poderia sair.

No período que estava lá, você soube de algum esquema de corrupção?

R. K. – Eu fiquei sabendo de muitas coisas, não na dimensão das que estão acontecendo hoje. A minha função era não só divulgar informações do governo para a imprensa, mas também trazer informações que eu tinha como jornalista, que, muitas vezes, eram transmitidas pelos próprios colegas jornalistas. Mas coisas menores, de funcionários, que eu passava para o governo investigar.

Que tipo de informações você recebia?

R. K. – De coisas erradas que aconteciam na Previdência. Eu tinha vários amigos que trabalhavam em vários lugares e falavam: está havendo um problema em tal lugar. E aí, geralmente, eu encaminhava para a Casa Civil tomar providências.

E você falava diretamente com o Zé Dirceu?

R. K. – Eu passava a denúncia a ele. Tudo que eu recebia de informação que interessava ao governo passava a ele.

E qual era o procedimento?

R. K. – Eu não sei. Eu passava a ele.

E se o Lula chamasse você, agora, novamente, para o apoiar neste momento de crise? Você voltaria?

R. K. – Eu acho que não há menor chance. Primeiro: ele não faria isso porque sabe todos os motivos para eu ter voltado [para São Paulo]. E segundo: não há a menor possibilidade de eu voltar. Eu fiquei três anos fora de casa e, agora, estou curtindo pra burro o que faço, trabalho por conta própria pela primeira vez na vida, vejo minha neta todo dia. Agora, se ele precisar de mim, sabe que vou a Brasília quando ele quiser, como já fui.

No discurso de sua despedida em 26 de novembro do ano passado, o Lula disse que você nunca vai embora definitivamente, que vai para um spa para ficar mais bonito e depois volta. Não volta?

R. K. – Ele não falou isso, não. Foi um negócio que eu fiquei muito emocionado porque não estava previsto, foi uma surpresa. Tinha até salgadinho, chamou um monte de ministro, chorou. O Jornal Nacional passou isso. Mas ele não falou esse negócio de eu ficar mais bonito, não. Eu tinha falado para ele que a primeira coisa que ia fazer era passar uma semana num spa porque eu tava muito gordo (risos) e não tava bem de saúde. A brincadeira que fez comigo é que eu falei que queria escrever um livro e ele disse: ‘Vamos ver se você escreve um livro direito, porque você já escreveu tanto livro e nenhum presta. Vamos ver se agora você faz um livro bom’.

Quantos livros foram no total?

R. K. – 15. 14 ou 15. Eu nem sei direito.

Dos livros que fez até hoje, qual você mais gostou?

É difícil eu falar disso. Gostei de todos, mas as histórias para crianças gostei mais. São livros de ficção: um é Deixa comigo, que é história de um menino cujo pai vai para Serra Pelada e ele vai atrás do pai; o outro se chama Nas asas do destino, que é uma história romântica em que uma menina larga a família para fugir com o vizinho. Eu gostei muito de fazer isso porque na ficção você tem o controle da história, pode dar um final feliz, e no jornalismo não: você não pode brigar com os fatos e, geralmente, o final não é feliz (risos).

E o Lula? Como está nestes tempos de crise?

R. K. – No começo da crise, estava mal. Ele não esperava isso, como eu também não. Demorou a reagir, a perceber o tamanho da crise. Hoje, está melhor. Falei com ele ontem [7/9]. Acho que já superou a fase pior.

A Secretaria de Imprensa foi falha no combate à crise?

R. K. – Olha, é a mesma questão ética de eu falar sobre algo depois que eu saí. O que eu posso te dizer é o seguinte: um dos motivos pelos quais continuei em 2004 foi preparar alguém para ficar no meu lugar. E, quando saí, acertei com o Lula que ficaria o Fábio Kerche, meu adjunto, um cientista político, e que continuaria meu trabalho. E eu continuava falando com ele, todo dia, mesmo a distância, continuava trabalhando para o governo como até hoje, nunca parei de trabalhar. Mas houve uma questão política, ele acabou saindo, o André Singer ficou no lugar e, aí… é uma outra história.

Que conselhos você tem dado ao Lula?

R. K. – Esse negócio de assessor dar conselho é bobagem. Muita gente fala que as pessoas fazem a cabeça do Lula. A verdade é que ele fez a nossa cabeça, da minha geração, de muita gente, de jornalistas, políticos, religiosos… A gente conversa como amigo. Por exemplo: quando eu acho que ele está falando demais, eu peço para ele falar menos (risos). É isso.

Acha que ele realmente foi traído?

R. K. – Eu não gosto dessa palavra. Eu acho que aquele discurso dele não foi legal. Não gostei, falei isso a ele. Acho que a política não é por aí. O de ontem [7/9] foi muito melhor. Eu achei que foi mais firme, falou direto para a câmera, não ficou olhando para cima, falou da situação do país de maneira mais forte, mais direta, mais curta. Eu sempre defendi isso: falar menos. Então, acho que esse foi um discurso bom. O outro não, o do ministério não ajudou a combater a crise.

Você acredita que o Lula está sofrendo um golpe branco, para não ser reeleito, como o Mino Carta pensa?

R. K. – Não. Eu não acredito nesse negócio de complô das elites, conspiração, nada disso. Eu acho que os problemas surgiram na base aliada do governo e ele demorou a reagir em relação a isso. É claro, a oposição vai se aproveitar, como o PT, quando era oposição, também se aproveitava de crises do governo. Não acho que seja uma coisa orquestrada, que a grande imprensa está se organizando para derrubar o governo. Alguns setores têm essa ilusão, mas eu não acredito nisso.

E a cobertura da imprensa sobre a crise?

R. K. – Não dá para generalizar. Não dá para falar da imprensa brasileira. Varia muito de um veículo para outro e dentro do mesmo veículo, de um colunista para outro, de um profissional para outro. Não existe a imprensa brasileira, existem jornais, jornalistas, revistas, televisões…

Qual a melhor e a pior, então?

R. K. – Eu já dizia isto antes da crise e vou continuar dizendo: eu acho que a cobertura mais profissional do país, não da crise nem do governo, parte de todos os veículos das Organizações Globo. Eles se profissionalizaram mais, é onde há menos interferência da direção, dos donos da empresa, por incrível que pareça…

Mesmo com o histórico da ditadura?

R. K. – Em anos passados foi o contrário, é isso é o que eu quero dizer. Eles se profissionalizaram, os donos se afastaram do dia-a-dia dos veículos e eu sei disso. Hoje, a cobertura mais profissional é feita por todos os veículos das Organizações Globo.

Você disse, num texto, há dois anos, que Vladimir Herzog morreria pela segunda vez caso voltasse às redações. Se ele voltasse agora, morreria pela terceira vez?

Eu nunca trabalhei com ele, muita gente até nos confundia, nós somos muito parecidos pelo histórico de vida, de família (os pais de Vlado também são imigrantes). Certamente, ficaria muito triste com tudo o que está acontecendo, aliás, como toda a esquerda está. Esse foi nosso grande sonho, de um governo de esquerda, de um presidente como o Lula, e a gente não poderia imaginar tudo o que está acontecendo. Agora, quando eu disse que o Vlado poderia morrer pela segunda vez é que, nas redações, já não se estava cobrindo o Brasil como se deveria, estava todo mundo cobrindo Brasília. A imprensa de hoje, de uma forma geral, cobre Brasília, coisa oficial. E o Vlado, como eu, sempre gostou de viajar pelo Brasil, de contar histórias, descobrir personagens, lugares. E, certamente, ele ficaria triste de ver a situação da imprensa de hoje e a situação política do Brasil.

O jornalista virou um ‘mero preenchedor de formulários, um lavrador de boletins de ocorrência’? É o que você afirma em ‘Esse bicho estranho chamado de repórter’, no livro Cartas do Brasil

R. K. – Essa é a regra, mas há exceções, como em tudo. Em cada redação, você encontra gente disposta a brigar para fazer uma matéria, uma reportagem, viajar, sonhar, insistir… De uma forma geral, acho que as pessoas estão muito acomodadas, estão muito burocráticas, falta tesão. E o grande lance da imprensa de hoje é a denúncia. Qualquer coisa é papel, qualquer dossiê, qualquer fita. Eu nunca fui disso. Sempre gostei de sair com um fotógrafo, um motorista e ir atrás…

Aliás, a questão do denuncismo já acontecia em 92. Você chega a citar em Cartas do Brasil

R. K. – É que isso é muito preguiçoso. É muito fácil. As pessoas te procuram e entregam um papel, uma fita. Eu não. Eu gosto de descobrir as coisas sozinho. Nunca gostei muito de cobrir política. Não sou o que chamam hoje de repórter investigativo. Para mim, quem faz investigação é polícia. Nós, repórteres, somos contadores de histórias e temos que descobrir novas histórias. Eu sinto que está todo mundo cobrindo a mesma (risos). Não que não deva cobrir, é muito grave o que está acontecendo… Eu até falei isso no aniversário de 80 anos do Globo, dois meses atrás, quando começou a crise: há outras coisas para se contar, há outras coisas acontecendo de bom e de ruim, independentemente do governo. Um país não é só governo.

Está pensando em parar de ler jornais, como sugeriu na crônica ‘1994’, no livro Cartas do Brasil?

R. K. – (Risos). Eu sempre falei isso e continuo com esse plano. Mas minha mulher sempre briga comigo: eu não consigo ficar um dia sem ler jornal e agora é pior porque tem internet, notícia a toda hora. Só acho que faria bem para a saúde mental ficar um tempo ser ler notícia, mas eu confesso que não consigo.

Segundo Gabriel García Márquez, os repórteres precisam reaprender a contar as histórias de forma mais humana. O que você pensa sobre isso?

R. K. – Estou plenamente de acordo com Gabriel García Márquez. Até escrevi um artigo na CartaCapital sobre o que se poderia esperar do governo, da imprensa e da mídia neste ano. E eu tinha lido um texto dele. Ele criou um grupo em Cartagena de Índias, na Colômbia, com velhos jornalistas que faziam oficinas para jovens profissionais. Isso falta no Brasil. Eu acho fantástico o Gabriel García Márquez, que é um pouco mais velho do que eu e com uma história riquíssima, ainda se preocupar com isso, com o futuro do jornalismo. E eu não sinto isso no Brasil, não vejo gente como ele, com a idade dele, com disposição para fazer essa passagem de uma geração para outra.

E o jornalismo de blogs?

R. K. – Eu acho ótimo. Eu gosto de jornalismo de todo tipo. Existe o bom e o ruim. Existem coisas bem feitas e picaretagens, nos blogs, nos sites, em todo lugar. É um novo caminho. Nunca poderia imaginar que fosse trabalhar na internet e minha principal atividade, hoje, é colaborar num site.

Por que o jornalismo de blogs é um novo caminho?

R. K. – Porque tudo é informação. Eu sou a favor da democratização da informação. Quanto mais gente estiver informando, mais gente está sendo informada. Mas não é tudo igual. O Noblat é um cara que, apesar de ser muito crítico ao governo e muitas vezes eu discordar dele, é um jornalista profissional que faz um trabalho profissional. E também há picaretas que, evidentemente, usam o espaço na internet para ganhar dinheiro, como existe na imprensa em geral, no Brasil inteiro.

E blog de políticos como César Maia, por exemplo?

R. K. – Tudo bem… Tem o direito de fazer desde que não pare de trabalhar como prefeito do Rio. Quanto mais gente estiver escrevendo, melhor.

O que você pensa da cobertura do Jornal Nacional em relação à crise? Afinal, 50 milhões assistem ao telejornal por dia.

R. K. – Eu conheço muito bem todos os que dirigem o Jornal Nacional. Respeito todos que trabalham lá. Eles têm plena consciência da importância do que fazem, do peso que tem uma notícia do Jornal Nacional. Em alguns dias, durante a crise, deram peso exagerado, o jornal inteiro praticamente só falou disso. E cometeram alguns erros, foram um pouco longe demais. Mas estão voltando ao ponto de equilíbrio de uns 15 dias para cá.

E o Ibope? Na crônica ‘Sonhos de Campos de Jordão’, você chega a duvidar de uma pesquisa, feita pelo Ibope, veiculada pelo Jornal Nacional, sobre um pronunciamento do Collor em 92. O que você acha do Ibope hoje em dia?

R. K. – A mesma coisa que eu acho dos blogs, que eu acho da imprensa. Existem institutos sérios e outros que não são. Tanto o Ibope quanto a Globo cometem erros às vezes. Mas é um instituto sério, tem mais acertos do que erros. Não é uma ciência exata.

E no livro Cartas do Brasil, que é da Editora Globo, não quiseram barrar essa crônica?

R. K. – Não. Eu vou te contar um episódio que aconteceu comigo. Eu trabalhei na revista Época, que também é das Organizações Globo. E, um dia, o Bial (Pedro Bial) apareceu para me entrevistar sobre o debate do Lula com o Collor no segundo turno em 89. Aquela história toda, polêmica… A Globo favoreceu visivelmente o Collor. O Bial estava fazendo alguma coisa sobre os 20, 30 anos do Jornal Nacional, alguma comemoração, e ouvindo personagens da época. Aí, eu disse pro Bial: ‘Se falar o que penso, nós dois vamos perder o emprego ou, então, não vai sair nada e nós vamos perder nosso tempo’. E ele me disse: ‘Não, Kotscho, conte tudo que você quiser que me garantiram que vão pôr tudo no ar’. Falei o que pensava e foi tudo pro ar.

O que você falou?

R. K. – O jogo foi dois a um para o Collor. O Collor ganhou aquele debate. Mas a Globo fez uma edição de 10 a 0.

Você acreditava que o ciclo de impunidade tinha acabado após os rumos de 92. O que aconteceu?

R. K. – Não sei explicar. Não consigo nem entender, muito menos explicar. Não que a corrupção pudesse acabar em 92, mas não imaginava que ela voltaria com a dimensão que tem hoje. Eu, como todo mundo e o próprio presidente Lula, estou muito chocado com tudo isso.

E a postura dos políticos em relação à crise? Em Cartas do Brasil, em 92, você acreditava que todos os políticos agiam como se tivessem o passado limpo e que faziam papel de bonzinhos. Chegou até a citar o Bornhausen, por exemplo. E hoje?

R. K. – (Risos). É a mesma coisa. É uma enorme hipocrisia para quem assistiu a algumas sessões da CPI. Nem todos aqueles que sentam para depor são bandidos e nem todos aqueles que estão no plenário para interrogar são santos. É muita hipocrisia. Quem definiu isso muito bem foi o Chico Buarque numa entrevista. Ele disse que está com a alma ferida e não sabe o que é pior: se a tristeza dele ou a alegria dessa oligarquia toda, com Bornhausen e ACM (Antônio Carlos Magalhães) posando de grandes moralistas, defensores da ética. Isso tudo é um grande circo. Mas, da vida, sempre tiro lições. Mesmo numa situação difícil, dramática como essa, você entende melhor a situação brasileira. Um fato positivo é que tem mais gente discutindo política e, talvez, votem melhor nas próximas eleições.

Em Cartas do Brasil, Lula faz a apresentação. Afirma que você sustenta um Brasil que tem jeito e que ele assina embaixo. O Brasil tem jeito?

R. K. – Tem que ter. E quando eu digo que tem, independe do partido que está poder, independe dos políticos. Tem jeito pelo país que é, pelo povo que tem. Vai ter jeito se a gente der.

Em 92, você achava que o Brasil era ‘um país movido a ‘caixinhas’ de todos os gostos e tamanhos, vendo se multiplicar a turma do ‘e quanto é que eu levo nisso?’’, na crônica ‘Dois anos de destruição’. Que carta você faria sobre o Brasil de hoje?

R. K. – Infelizmente, muito do que escrevi em 92 continuou acontecendo no Brasil. A grande diferença é que, hoje, está tudo mais aberto, muito mais transparente. Algumas pessoas imaginam que a corrupção tenha aumentado. Acho que não. Aumentou a percepção da corrupção. Ela está sendo combatida em todos os níveis e eu não falo só dos órgãos do governo. Falo do Ministério Público e acho que a Polícia Federal nunca trabalhou tanto. Quando você vê muitas denúncias é porque tem alguém combatendo a corrupção. Não consigo deixar de acreditar neste país. Conheço o Brasil de ponta a ponta. É impossível um país como este, com a potencialidade que tem, não dar certo. Um dia vai dar. Não sei se na minha geração ou na sua. Mas eu continuo acreditando nisso.

Você tem alguma história para contar, que tenha presenciado nos últimos tempos, uma carta não tão ruim?

R. K. – Eu procuro contar histórias boas, que também existem. Tempos atrás, fui para Mossoró, no interior do Rio Grande do Norte, que já conhecia, mas não sabia de uma história de lá, os xeiques do sertão. A Petrobras faz exploração de petróleo em terra entre Natal e Mossoró e gente pobre está ganhando dinheiro porque lá foi encontrado petróleo. Os filhos dessas pessoas estão podendo estudar em faculdades, coisa em que nunca pensaram. E eu imagino: se fiquei sabendo disso numa tarde que passei por lá, quantas outras histórias como essa existem? O pessoal mais novo deveria ir atrás disso. Sair das capitais, sair dos grandes centros, da política de Brasília e mostrar o Brasil real, que foi o que eu procurei fazer a vida inteira.

Só assim o Brasil vai ter jeito?

R. K. – Tem jeito de mil maneiras. Como jornalista eu gosto disso. Uma maneira de mudar a realidade é denunciar o que está errado e a outra é mostrar o que há de bom para que outras pessoas possam seguir.