Friday, 17 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1288

Mídia, religião e tecnologia

Embora o título sugira alusão ao premiado filme de Denys Arcand, no Festival de Cannes (2003), a abordagem que segue nele não se inspira, mas dele retira um certo modo de olhar o real. No filme citado, afora outras angulações, há uma tensão permanente entre a ética da sobrevivência e a razão cínica, revelando que, na atual modelagem societária, parecem inevitáveis as redes de contaminação, o que praticamente inviabiliza o ‘culto à pureza’ das coisas.

Antes de enfocar o tema propriamente dito, devo esclarecer – até perante outros – que havia prometido nada escrever a respeito da morte do papa, bem como sobre os percalços a envolverem a sucessão. A decisão tinha em vista a avalanche de noticiários, reportagens, artigos, entrevistas, filmes, documentários, livros, eventos e outros mais derivados que minha memória não recupera.

Diante de tamanha profusão de ofertas, o que poderia ainda restar à percepção de um modesto articulista sem que redundasse em repetições? Assim, a decisão de silenciar se manteve, resistindo à tentação de também integrar a legião de sequiosos observadores de um acontecimento que, segundo tudo indica, transformou (ou vai transformar) o mundo. A propósito, lembro-me da manchete de O Globo (7/4/05): ‘A maior notícia da História’. A pretensa objetividade jornalística justificava o retumbante fato, com o reforço do seguinte complemento: ‘Morte do Papa ocupa mais espaço na mídia que o 11 de setembro; um milhão de pessoas na fila do Vaticano’. Também não me perguntem por que, antes da morte do papa, os jornalistas de O Globo consideravam ser o 11 de Setembro ‘a maior notícia da História’. Eles é que, suponho, devam explicar. De repente, terão até razão, a despeito da discordância de minha tímida avaliação.

De tudo exposto, além do que ainda virá por conta da escolha do novo papa, fica uma constatação: é impressionante a força midiática agregada ao Vaticano. Não menos impactante é a demonstração do Vaticano quanto à capacidade de acionar mecanismos operatórios da indústria cultural. Efetivamente, a morte do papa serviu para redefinir, na geopolítica das religiões, o campo de correlações de força, tendo como pano de fundo as tensões entre Ocidente e Oriente. Por essa lógica – posso equivocar-me – é capaz de a eleição ser prolongada até o limite máximo de seu prazo, multiplicando a densidade dramática que sustenta o roteiro em questão. Nesse sentido, talvez, o que menos conte seja a vivência subjetiva da religião, bem como o significado de seu caráter formativo.

A força da mídia

Reiterando o óbvio, todos sabemos quanto, numa sociedade de massa, os meios de comunicação interferem na subjetividade dos diferentes segmentos populacionais. Se todos sabemos, o Vaticano também sabe. Assim, a roteirização se cumpriu no que podemos chamar de a ‘narrativa do martírio’ que, se não bastasse, teve o apoio do calendário fazendo cruzar a crucificação de Jesus com a martirização do papa.

Recordemos que a morte foi precedida por inúmeras idas e vindas do papa ao hospital, promessa/ameaça da bênção dominical. Sim ou não? Expectativas se sucediam. ‘Ele melhorou’ vs. ‘ele piorou’. ‘Ele apareceu’, ‘ele falou’. Tudo narrado, descrito, fotografado, filmado até a reta final. Não seria difícil imaginarem-se milhões de pessoas enfileiradas, em pé, por 18 horas, para cinco segundos de um aceno à distância e, no momento supremo do aceno de despedida, era imperioso lembrar-se de acionar o sofisticado celular para filmar o momento inesquecível. Por fim, o coro ecoante de ‘Santo já!’. Por favor, só não classifiquem esses acontecimentos como atos de devoção religiosa. Nenhuma religião merece tal tratamento.

No auge da quase ‘desrazão’ coletiva, a respeito do que ocorria na Praça de São Pedro, ocorreu-me perceber, naquela aglomeração de enfileirados, acampados e ‘sem destino’, outro filme cult, Easy Rider – fins dos anos 1960 –, somada à edição melancólica de um festival adaptado a um ‘Woodstock da fé’.

Sejamos justos. Nem tudo foi coberto com manto de ingênua santidade. A Folha de S.Paulo, aqui e ali, ofereceu pontuações críticas – a exemplo da manchete, em caderno especial (5/4/05), ‘Circo da mídia se arma no Vaticano’. Outra, na primeira página (10/4/05), sinalizava a crise financeira por que passa o Estado teocrático do Vaticano: ‘Contas da Sé e do Vaticano são deficitárias’. Nesta, a matéria chamava atenção para os recentes balanços, acusando déficit de 11,8 milhões de dólares da Santa Sé e 10,9 milhões de dólares do Vaticano. Arrematando a notícia: ‘Os recursos vêm de doações e de aplicações’.

Como se vê, ninguém escapa das atribulações da economia mundial, fazendo do mundo um imenso cassino. Nele, todos estão enredados. Todos montam redes e estratégias para darem conta das inevitáveis ‘invasões bárbaras’.

A fé em tempos de tecnologia

Além de matérias que exibiram, durante o velório e o enterro do papa, o comparecimento da tecnologia, acompanhando os fiéis para registro, em imagem viva, daquele momento tão intenso quanto fugaz, outra o jornal O Globo (14/4/05), a propósito da sucessão na Santa Sé, apresentava: ‘Tecnologias ameaçam 1ª eleição da era digital’. O foco principal se referia às possíveis ‘invasões bárbaras’ que, em nome do sagrado ofício de informar, pudessem, com auxílio dos mais recentes e sofisticados artefatos da tecnologia comunicacional, romper a privacidade requerida pela situação. Assim, a exemplo do que se faz em presídios, foi montado um sistema de segurança contra comunicações (ou piratarias) vetadas. Até aí, o Vaticano agiu com prudência, erguendo um muro contra a ação de espionagem. Todavia, a alturas tantas da matéria, há o seguinte e interessante parágrafo:

‘Muitos especialistas se perguntam se os muros da Santa Sé serão suficientes para proteger o segredo do conclave. Na dúvida, um ‘muro eletromagnético’ será ativado para que os cardeais não possam usar celulares dentro do Vaticano’.

Adiante, quem sabe para abrandar, a matéria menciona que, além de cardeais, também se somam, pelas funções, ascensoristas, motoristas, encarregados da limpeza e médicos, como freqüentadores dos aposentos privativos e, igualmente, fazem, a exemplo dos cardeais, ‘voto de silêncio’.

Sim, muito justa a cautela, em nome da preservação de um rito de origem medieval. Todavia, o trecho selecionado registra com clareza que a medida serve para inibir (ou vetar) o possível uso de celulares por cardeais. Ora, se eles fazem antes o ‘voto de silêncio’, conclui-se que, mesmo a médicos e outros mais, nada diriam. O que, portanto, fica exposto é que os cardeais não são plenamente confiáveis no cumprimento de seus deveres religiosos. Se, porventura, o são, assim não são avaliados pelo camerlengo, autoridade máxima do Vaticano durante o período de transição.

Por fim, ainda extraída da mesma fonte, a passagem que traça o perfil moderno do camerlengo, o cardeal alemão Joseph Ratzinger: ‘(O cardeal) tem até fã-clube online, que vende bonés e camisetas do ex-prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé’.

Aguardemos outras variantes das ‘invasões bárbaras’. Suponho que não haverão de faltar. Quem sabe, um grande filme venha a ser roteirizado. Tudo, afinal, pode tornar-se business e marketing. Por que não? O império da ‘razão cínica’ está em alta.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)