Friday, 10 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

O jogo dos simulacros

 

O Brasil está passando por um período de grandes mudanças, produziu recentemente um dos mais impressionantes processos de mobilidade social de que se tem notícia, comemora a longevidade do regime democrático, mas segue sendo o país das fantasias.

Enquanto completa apressadamente os preparativos para a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, o país assiste passivamente a ação subterrânea de parlamentares que se dedicam a tornar letra morta a legislação de proteção do patrimônio ambiental.

Ao mesmo tempo em que representantes do que há de mais atrasado na economia rural se movem no escuro para fazer valer seus interesses, outros personagens das sombras tentam evitar que a Justiça altere o jogo de favores que transformou a política nacional em um grande negócio.

Discute-se na imprensa as circunstâncias em que serão julgados os acusados no escândalo que ocupa permanentemente o noticiário há sete anos, enquanto outros casos de corrupção envolvendo autoridades importantes vêm e vão nas primeiras páginas e nos noticiosos de maior destaque.

Interesses particulares

Na luta por convencer o público, personagens polêmicos são chamados a expor suas razões, o que acaba compondo um quadro ainda mais confuso para quem não acompanha em detalhes cada um desses acontecimentos.

Apresentando as visões parciais de cada um dos interesses envolvidos, a imprensa parece contemplar todas as versões, mas na verdade o que produz é um mosaico irregular, que será lido conforme as crenças preexistentes.

Assim, a edição de segunda-feira (11/6) da Folha de S. Paulo, por exemplo, traz duas entrevistas que, cruzadas pelo leitor, criam mais desconfianças do que compreensão dos fatos.

Numa delas, o governador de Goiás, Marconi Perillo, pressionado pelas evidências de seu envolvimento com o bicheiro Carlos Cachoeira, tenta empurrar para o ex-presidente Lula da Silva a causa de suas angústias, insinuando de maneira explícita que as acusações que lhe fazem são parte do jogo político, do qual ele seria apenas uma vítima.

Em outra reportagem, na mesma edição, o ex-ministro da Justiça Marcio Thomaz Bastos, que como advogado defende um dos réus do processo do “mensalão”, acusa a imprensa de haver tomado partido no caso, fazendo “publicidade opressiva” contra os acusados.

Tanto Perillo como Bastos verbalizam uma circunstância que todo leitor atento de jornais e revistas e toda a audiência de telejornais que não esteja alienada pode perceber: o chamado espaço público, onde se desenvolvem as relações de comunicação, está contaminado por filtros que desviam a verdade, como os raios de luz que atravessam os líquidos.

O filtro é a mídia, e os personagens que têm algo a perder ou a ganhar nesses jogos se tornam mais ou menos relevantes conforme a habilidade que possuem de movimentar essas lentes. Assim, o que chega ao público é quase sempre uma combinação de interesses muito particulares.

Brasil real

Ao insinuar que o ex-presidente Lula da Silva pode manipular ministros do Supremo Tribunal Federal em favor dos acusados no caso “mensalão”, o governador Perillo está contribuindo para minar a credibilidade do Judiciário.

Quando afirma que a imprensa pressiona o STF e reduz o espaço de defesa dos acusados, o ex-ministro Bastos acaba amplificando a crença de que os magistrados podem ser influenciados pela mídia, embora formalmente faça questão de elogiar os ministros da Suprema Corte, afirmando que são capazes de fazer um julgamento técnico que se aproxime o mais possível da justiça.

Os jogos de poder são sempre conduzidos por uma retórica que deixa a verdade de fora. Para os protagonistas dessas disputas, falsear os acontecimentos é parte das regras: na política brasileira, há muito se sabe que tudo é dissimulação. Até mesmo as disputas partidárias, nas quais entram em confronto supostas representações da diversidade ideológica, passaram a ser um simulacro sob o qual se escondem interesses muito particulares.

Se a imprensa há muito deixou o papel da neutralidade – se é que algum dia chegou a cumpri-lo – é de se questionar se ainda existe a possibilidade da mediação.

O Brasil oficial estará discursando na Rio+20, enquanto o Brasil real recompõe seus interesses nos gabinetes de Brasília.