Friday, 17 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1288

Órgão ministerial

Recebi um alerta online sobre a indignação do ministro da Cultura. Diante da declaração do alto funcionário do Governo Federal, fui me informar melhor sobre a celeuma. ‘Meu pinto, meu estômago, meu coração e meu cérebro são uma linha só. Não são fragmentados. Fui desrespeitado pela imprensa que reverberou sem investigar’, disse Juca Ferreira.

Acusem-me de pudica, mas a ideia de um ministro de Estado arrolando seu pênis como vítima de difamação me pareceu, para começo de conversa, inédita. Para continuar a conversa, de mau gosto. E para terminar a conversa, alarmante. Se o cérebro do ministro está numa ‘linha só’ com o seu instrumento reprodutor, há que temer pela política ministerial.

Vamos supor que um aposentado Joaquim Maria Machado de Assis vivesse entre nós e requisitasse uma bolsa federal para concluir Dom Casmurro. A literatura do nosso romancista maior provoca êxtase, mas não poderia depender da tal linha direta. Ou seja, seria preciso tomar Viagra para ter uma reação fulminante ao ler Bentinho confessar que ‘andava cosido às saias’ de Capitu. Dom Casmurro seria desprezado para dar lugar a O Caminho das Borboletas, da pneumática Adriane Galisteu? Teriam feito um gato na anatomia ministerial?

Salto alto

No século 16, o médico francês Ambroise Paré, pioneiro no tratamento cirúrgico de feridas de guerra, declarou que o sêmen vinha do cérebro. Literalmente. Nos séculos seguintes, o comportamento masculino refletiu um esforço para comprovar a teoria no plano metafórico.

Deixo claro que reservo a minha solidariedade para qualquer vítima da publicação de um rumor como fato. Assassinato de reputação é um esporte em voga não só na nossa imprensa, como em qualquer mídia, livre ou sob restrição autoritária. Sou a primeira a saltar do bonde do corporativismo profissional. Não acredito que jornalistas tenham um talento congênito para defender a liberdade, embora a profissão seja essencial para o sistema democrático. Tanto quanto os ocupantes do poder, jornalistas podem ser vaidosos, pusilânimes e dispostos a privilegiar versões de fatos.

Confesso até que sempre me preocupei em frequentar socialmente ambientes profissionais diversos porque notei, ainda estagiária, uma certa insularidade, uma ilusão de superioridade moral entre meus pares.

Mas precisava invocar o pinto, ministro? Precisava convocar a nação a ‘relaxar e gozar’, ex-ministra? Precisava se gabar de engravidar a dona Marisa na primeira noite, presidente?

O acato à formalidade do cargo é uma forma de respeito ao público que elege seu governo. Sim, somos uma cultura tropical, calorosa. Distribuímos beijinhos para estranhos. Sem justificativa, ficamos de mãos dadas com ditadores sanguinários como Mahmoud Ahmadinejad.

Na semana passada, um veterano jornalista indiano comentou que era uma tortura para o primeiro-ministro Manmohan Singh ser o homenageado do primeiro banquete de Estado da Casa Branca de Barack Obama. ‘Ele não vê a hora de voltar para o hotel e afrouxar o colarinho’, disse o editor. ‘Detesta pompa e formalidades.’

Eu também. Não vejo a hora de correr para casa e descalçar o salto alto. Em ocasiões formais e entediantes, não é raro me distrair e começar a ter visões de um pijama de algodão pele-de-ovo, estalando de limpo. Mas isso não me leva a chegar à festa já de pijama ou de usar, em público, a linguagem que usaria na intimidade.

Do avesso

A decisão arbitrária sobre quando e como romper com o protocolo sugere autoritarismo. Pressupõe que o interlocutor – no caso, o povo brasileiro – deve ser submetido à informalidade do poder, sem que tenha a opção da contrapartida. Se eu for convocada para uma coletiva e perguntar sobre a anatomia de um ministro, serei enxotada pela segurança. Como não poderia cobrar do Ministério do Turismo meu fracasso em chegar a um orgasmo depois de passar dez horas presa em Congonhas. Perguntar à gentil dona Marisa como foi sua primeira noite me levaria a considerar seriamente a cidadania canadense.

Há algo de elitista na derrubada de fronteiras de convivência pública. O respeito ao protocolo de um cargo não é um tique ideológico. Usar corretamente a língua portuguesa não é uma indulgência de direita. Evitar palavrões em público, manter privada a vida privada não são decisões peemedebistas ou petistas.

Uma das bombas de efeito retardado da ditadura militar é a atitude de toda uma geração que iguala hierarquia a ilegitimidade. Quanto custou ao Brasil o niilismo tão bem exemplificado quando a câmera registrou o espontâneo top, top, top palaciano diante uma tragédia com quase 200 mortos? Ao se instalar no poder, essa geração, não importa o partido, leva para os gabinetes um desprezo pela etiqueta jamais perpetrado por brasileiros humildes que diz representar.

Já ouvi especialistas em oratória para executivos recomendar a quem tem medo de falar em público: imagine que as pessoas na audiência estão de calcinha e cueca. É um recurso imaginário para o palestrante se sentir no controle dos ouvintes. Parece que a estratégia foi virada ao avesso em Brasília.

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Jornalista