Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um dia depois do outro

De vez em quando, o noticiário fragmentado dos diários permite ao leitor atento compor quebra-cabeças interessantes, com conjuntos de peças que aparentemente não têm relação entre si, mas que, encaixadas, formam um quadro esclarecedor sobre a sociedade que é retratada pela imprensa.

Vejamos, por exemplo, o caso criado pela iniciativa dos “rolezinhos”, encontros marcados em shopping centers entre jovens populares nas redes sociais e seus seguidores, e a informação de que 60% dos formados em escolas de medicina de São Paulo não alcançaram o índice mínimo no exame de qualificação do Conselho Regional de Medicina.

Segundo pesquisa Datafolha publicada na edição de quinta-feira (23/1) da Folha de S.Paulo, 82% dos paulistanos são contra o “rolezinho”, mas 73% acham que os shopping centers não têm o direito de selecionar os frequentadores. Na mesma reportagem, o presidente da associação dos lojistas desses centros de compras comenta que alguns shoppings têm “acordos de proteção” com líderes da periferia, para evitar assaltos e furtos. Esses acordos teriam como contrapartida, segundo o entrevistado, uma “política de ajuda” às comunidades próximas.

Fica implícita a possibilidade de que lojistas estejam pagando proteção a grupos criminosos, mas o jornal não avança nessa hipótese. De acordo com a Folha, a entidade representativa dos comerciantes pediu ao governo estadual que crie “rolezódromos”, espaços públicos para abrigar os encontros de jovens, ou seja, eles querem transferir para o Estado a responsabilidade de administrar o problema.

Acontece, ainda segundo a reportagem, que “rolezinho” só faz sentido dentro do shopping center – é onde o adolescente e o jovem da periferia se sentem à vontade, seguros e na companhia de suas tribos.

No Estado de S.Paulo, destaque para o movimento dos lojistas, que foram pedir socorro ao governador Geraldo Alckmin e saíram frustrados. Os representantes dos shopping centers agendaram também uma reunião com a presidente da República, para a próxima quarta-feira (29/1), e vão levar a mesma reivindicação – de que o governo federal crie normas para impedir os eventos ou estimule os governos estaduais a criarem áreas de lazer para os encontros marcados pelas redes sociais, como está sendo feito na capital paulista.

Médicos reprovados

Na reportagem sobre o desempenho desastroso de médicos recém-saídos das faculdades paulistas, está dito que a taxa de reprovação deste ano é mais alta do que a de 2012, quando o exame se tornou obrigatório. No entanto, mesmo os reprovados, que não atingiram a meta mínima de 60% de acertos, poderão praticar a medicina, porque a prova não tem caráter eliminatório: basta apresentar o certificado de participação no exame para obter o registro profissional.

Observe-se também que o pior desempenho ocorreu em áreas importantes, como clínica médica e pediatria: a maioria dos futuros médicos mostrou desconhecer questões básicas que aparecem com mais frequência em prontos-socorros e postos de saúde, como hipertensão e pneumonia, e não sabiam associar sintomas como tosse a diagnóstico de tuberculose. Segundo o coordenador da prova, o resultado foi “ridículo”, porque 70% das questões de múltipla escolha eram de nível médio e fácil.

Uma frase do coordenador define a realidade: “No Brasil, é médico quem pode pagar uma mensalidade”.

Agora, procure o leitor atento juntar os dois assuntos e entender o Brasil que está na imprensa: no primeiro caso, cria-se um salseiro porque jovens da periferia querem fazer festa nos lugares onde gastam seu dinheiro. A iniciativa privada, que vive de estimular o consumo, quer a ajuda do Estado para manter a multidão sob controle: tudo bem se os meninos fizerem fila para comprar os tênis de marca famosa, mas formar aglomerações para beijos e abraços está fora de cogitação, porque pode virar bagunça.

Os comerciantes têm motivos para proteger seus patrimônios, mas não é obrigação do Estado dar a eles, no ambiente de seus negócios privados, a segurança que nega aos seus clientes no espaço público.

No segundo caso, convém puxar pela memória recente e fazer a pergunta maldosa: quantos desses jovens saídos das faculdades de medicina, que não acertam o mínimo de um exame básico, foram às ruas com seus jalecos brancos, no ano passado, protestar contra o programa Mais Médicos?

Arrogância e preconceito ainda dividem a sociedade brasileira como uma linha horizontal.