Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Uma aula de ignorância no debate sobre microcefalia

A pergunta que todo mundo se faz é: Afinal de contas, quantos casos de microcefalia há no Brasil? A resposta que teria que ser um número, mas não parece tão simples. E na procura do dado certo, o público ganhou uma aula de ignorância.

Tudo começou quando Lupa, uma agência de noticias especializada em fact checking (checagem de fatos) hospedada no  site da revista Piauí,  propôs se analisar os dados oficiais de casos de microcefalia no Brasil. Comparou tabelas  e os  números obtidos em distintas fontes analisadas não conferiam. Isso, em jornalismo básico é objeto de uma matemática simples: ou há falta de casos de um lado, ou há excesso no outro. E Lupa concluiu “governo e sete estados divergem sobre casos confirmados”.

Se há erro, exagero ou omissão em um dado tão importante para a sociedade como é o número de casos de microcefalia, é dever dos jornalistas procurarem a causa.mas a reportagem veiculada no Jornal das 16 horas,  da Globonews ,  superdimensionou as conclusões da Lupa , não conferiu os dados e tentou resolver o assunto logo numa única entrevista. E pelo tom, a conversa da apresentadora Christiane Pelajo com o ministro de Saúde esteve longe de ser cordial. No final do programa, a guerra estava declarada.

Longe das câmaras de TV, o blogueiro e comunicador científico Roberto Tamaka Takata entrou no assunto de uma outra maneira, com curiosidade acadêmica: “A Agência Lupa e a Globo News tiveram uma ótima ideia: conferir os dados oficiais de microcefalia comparando o boletim publicado pelo Ministério da Saúde com os dados das secretarias estaduais de saúde. A iniciativa é louvável, pois uma conferência independente aumenta a confiabilidade no sistema: permitindo detectar falhas que precisem ser solucionadas.”

Porem num texto,  cheio de números e datas, publicado no blog Gene Repórter com base nas mesmas planilhas citadas por Lupa,  Roberto Tamaka Takata chegou à conclusão de que não havia discrepâncias reais (ou havia diferenças mínimas). E a publicou no post “Zika e microcefalia: um olhar crítico ao olhar crítico.“ ( Ele escreve: “O que houve aparentemente foi uma interpretação equivocada por parte da equipe da Lupa a respeito de casos confirmados. As diferenças devem-se primordialmente que o entendimento da agência a respeito de “casos confirmados de microcefalia” e’ diferente do que o Ministério da Saúde quer dizer com “casos confirmados de microcefalia“. No primeiro caso e’ independente da causa, no segundo exige a possibilidade de ligação com o zika. Outras diferenças que ele analisa em detalhe, e que são fonte de diferenças nos resultados finais, são as distintas datas de atualização.

Seu post teve logo no início 430 visualizações, desempenho bom para seu blogue de ciência mais insuficiente para mostrar ao Brasil que não e’ brigando frente as câmaras que as dúvidas se resolvem. Nos corredores reais e virtuais, no entanto, a pergunta já era: a Globo errou? Vai se retratar?

Não foi o que aconteceu. O Ministério de Saúde divulgou uma nota reiterando as explicações dadas a jornalista e lamentando que os dados tenham sido colocados em dúvida. O programa de TV acolheu as explicações, mas entendeu que ofereceu excelente oportunidade para o público entender melhor de que forma são contabilizados os dados pelo Ministério da Saúde. A Lupa relatou que esperava “que os dados do ministério e os dados divulgados oficialmente pelas secretarias estaduais de saúde fossem convergentes, idênticos e exatos. Só assim, será possível construir uma política pública capaz de enfrentar de uma vez por todas a dolorosa realidade da microcefalia no Brasil”.   Há verdades e deslizes em vários lados, mas o que parece mais difícil é reconhecer os próprios equívocos.

“Apontar erros é importante, mas erros devem ser reais,isso ajuda a depurar o sistema. Quando falsos erros são apontados, isso tende a minar a credibilidade do sistema – ou do processo avaliado ou do avaliador ou de ambos.”- lamenta Tamaka Takata.

Estatísticas, uma vergonha nacional

É verdade que grande parte da imprensa se acostumou a semear dúvidas, porém é preciso levar em conta que  há situações em que uma estruturação deficiente de dados abre espaço para que eles sejam mal interpretados.  No Brasil há antecedentes históricos de ocultamento de informação epidemiológica e as estatísticas são uma das vergonhas nacionais. Somemos o fato que o atendimento hospitalar da grande maioria das gestantes é precário e que não há um sistema on line automático de coleta de dados fica fácil perceber como tudo isto contribui para um conhecimento epidemiológico deficiente.

Não é menos certo que as interpretações erradas podem gerar frequentemente efeitos indesejáveis e que os   números são o Tendão de Aquiles da imprensa. Também sabemos que a informação numérica é a que concentra maior quantidade de erros, o que aumenta a responsabilidade da imprensa na checagem de dados e fatos. O grande problema é que os números consomem mais trabalho dos jornalistas do que as discussões ou brigas, e exigem um tempo que a maioria não tem condições de dar, especialmente nas redações com pessoal reduzido ao máximo. Por deformação profissional ou experiências passadas, quando um jornalista se enfrenta a um número que não consegue explicar, suspeita o pior e procura culpados.

Roberto Tamaka Takata, o blogueiro científico que está fora da máquina de fazer notícias e tem o saudável hábito de atualizar os seus posts no blog Gene Repórter,  escreveu dias depois do bate boca no Jornal das 16 horas : “Espero que o caso sirva de estimulo a equipe do telejornal e a agência Lupa para um aperfeiçoamento no trabalho de conferencia de dados”… “Um efeito positivo da confusão é que o Ministério de Saúde resolveu detalhar um pouco mais a tabela. Mais ainda há melhorias a serem implementadas.” No entanto, a história continuou num outro plano, bem menos prometedor.

O site Notícias da TV, publicou uma matéria com um título bem pouco amigável: “Estreia “desastrosa”: Christiane Pelajo bate boca e toma desmentido. . Desastrosa, definitivamente, não é palavra que muitos deixariam passar sem reagir, e a Globo replicou: O número de manifestações que os espectadores enviaram para a emissora foi imenso, e muitos diziam que aquele foi o painel mais esclarecedor sobre a epidemia de zika que tinham visto. Foi graças ao programa que o público pôde saber como o ministério faz seus relatórios sobre a doença, relatórios que trazem discrepâncias com os de muitas secretarias de saúde estaduais. Ficou esclarecido por quê: a data de fechamento dos relatórios difere de órgão a órgão. O programa liderado por Christiane Pelajo foi um sucesso, sob todos os ângulos que possa ser analisado. Inclusive quando se leva em conta a discussão com o ministro da Saúde. Jornalismo ao vivo se faz assim, com debate explícito de divergências, para que se esclareçam os fatos.

A defesa da jornalista esqueceu de dizer que pela complexidade do tema dos indicadores epidemiológicos, teria sido desejável e necessário ter um equipe de pessoas gastando seu tempo para fazer um trabalho de interpretação prévio a emissão. Os jornalistas e os encarregados da checagem de dados não teriam que ter medo em admitir a própria ignorância.

Polêmica antiga.

A polêmica sobre o número real de casos de microcefalia é parte de uma discussão que começou no ano passado. No dia 30 de dezembro a ECLAMC (Estudo Colaborativo de Malformações Congênitas na América Latina) divulgou um relatório no qual revisava os dados históricos próprios (1967 a 2015) e os do Sistema de Informação dos Nascidos Vivos- SINASC mais recentes, (2013-2015). O ECLAMC não descartava que o aumento de casos divulgado pelo governo brasileiro se devesse em grande parte à publicidade dada ao tema, o que gerou uma intensa procura por informações. “As bases de dados da SINAC registravam 1% de mal formações em nascidos vivos quando o esperado era um índice de 3%,” . Trata-se  de um dos exemplos que mencionados pelo ECLAMC.

Ou seja, se o medo ao zika nos leva agora a caprichar bem nos registros, isso já daria um grande aumento nas notificações, o que configuraria um aumento estatístico e não um crescimento real de casos. O “efeito consciência” é bem conhecido e inevitável. Em janeiro, a polêmica brasileira já tinha chegado até a  a revista científica, considera a mais importante do mundo, a britânica Nature.  Com os dados que existem é impossível saber o verdadeiro tamanho. São necessários estudos prospectivos em áreas que tenham surtos de zica. Uma epidemiologista da Irlanda admitiu que a conclusão da ECLAMC era “possível, em princípio, mas somente seria possivel confirmá-la depois da obtenção de mais dados”. No mesmo artigo é citada a pesquisadora Lavínia Schüler-Faccini, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Genética que afirma: “minha impressão pessoal é que houve um aumento, mais não tanto como diz o ministro de saúde”. No artigo da da Nature, Thomas Jaenisch, da  Universidade de Heidelberg,  alertou que a posição extrema do ECLAM podia gerar incerteza na mídia. Ele estave certo.

Há muitas incertezas ainda, contando apenas as puramente médicas. Infelizmente, os jornalistas abandonam, as vezes, a procura da verdade por pressa, despreparo ou falta de equipe para investigar em profundidade. O tamanho da cabeça dos bebês suspeitos de microcefalia também foi um assunto que deu muito para fala. Se o certo para definir microcefalia era um perímetro craniano menor de 33 cm, ou de 32 cm, ou ainda se o tamanho não era o mais importante. Demorou muito a ser esclarecido que estas medições são apenas aproximações ao diagnostico: a confirmação exige estudos mais complexos sobre o crescimento do cérebro.

A notificação exata dos casos de microcefalia (apenas um dos problemas que hoje se associa ao vírus) fica mais complexa se as autoridades médicas pretendem incluir apenas os casos que tenham relação direta com o virus Zika. A microcefalia, aliás, também pode estar associada a sífilis, toxoplasmose, diabetes, epilepsia, citomegalovírus e até gripe. E, para complicar mais as coisas, é um problema está ligado também a questões como baixa educação materna e paterna.

O caso Lupa/ Globo News/Ministério da Saúde foi uma aula de ignorância, não apenas para os envolvidos. O bom é que depois do barulho, alguns acabaram aceitando que a verdade não sai de forma automática e impositiva mais colocando o olhar no local certo. Foi necessário errar, para melhorar a formulação das  perguntas. Agora sabemos mais porque temos onde que procurar as respostas.

Nas palavras do professor do curso de Ignorância Científica da Universidade de Columbia (EUA), o neurocientista Stuart Firenstein : “Muitos fatos não são sólidos nem imutáveis, pois estão destinados a serem desafiados e revisados por sucessivas gerações

Voltando ao início. No final, quantos casos de microcefalia há no Brasil? Ainda não temos a resposta.

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Roxana Tabakman é bióloga e jornalista. Autora de “A saúde na mídia- Medicina para jornalistas- jornalismo para médicos”