Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

“Meteu a cabeça preta na bola branca…”

……o Koulibaly. Quando ouvi isso ao vivo da primeira vez, confesso que fiquei meio paralisado, quase em choque. “Lógico que ele não falou isso”, pensei. Era Real Madrid x Napoli, um jogo danado de bom pela Liga dos Campeões, que acabou sendo vencido pela equipe espanhola, de virada. O lance em questão aconteceu quase no final da partida, com o placar definido. Ah, Koulibaly joga no Napoli e na seleção do Senegal. É africano, portanto, apesar de ter cidadania francesa. E negro.

Kalidou Koulibaly . Foto Wikimedia / CC

Kalidou Koulibaly . Foto Wikimedia / CC

Mas hoje não tem isso de não de perder algo ou não acreditar que foi dito, não é mesmo? Retrocedi a transmissão ao vivo e ouvi uma, duas três, quatro vezes. E o André Henning disse mesmo isso.

Na hora só pensava: “Mas caramba, qual o motivo do sujeito dizer isso?” Sim porque, primeiro a bola não é tão branca assim, com aquelas estrelas todas, enormes; e também ela foi cabeceada um zilhão de vezes por cabeças de várias cores, inclusive negras. Europeias, orientais, latinas, escandinavas etc. E a cor da pele ficou fora disso, simplesmente porque não importa.

O único cenário que consegui imaginar como relevante seria esse: o futebol é proibido para negros. Aí acontece a primeira partida em que eles podem jogar e o primeiro contato com o esférico, histórico e libertador. Seria emocionante, não? Principalmente se o narrador usasse negro no lugar de preto. Mas seria emocionante, de qualquer maneira.

Corporativismo e racismo

Só que, ainda bem, negros colocam suas cabeças nas bolas brancas e de outras cores há muito tempo. E, em geral, com muito talento. Então a intervenção de André Henning continuava sem sentido e ofensiva, e não só para os negros. Se fosse um zagueiro japonês, a versão “toca a cabeça amarela na bola branca”, por exemplo, seria igualmente inaceitável.

Nossa profissão, para o bem e para o mal, costuma ser extremamente corporativista. E não me surpreendi quando um velho homem de imprensa (assim como eu) defendeu o narrador com “suponha que a bola de futebol fosse preta.E que um locutor narrasse: ‘Meteu a cabeça branca na bola preta o Cristiano Ronaldo.’ Seria racismo?”

Sim, seria, se os brancos tivessem sido escravizados por 400 anos e tivessem que conviver com a limitações do preconceito a cada dia depois disso. Seria racismo, garanto. E, já me adiantando, se um dia um narrador de uma partida de futebol feminino disser “mata nos peitos” só porque mulheres tem seios, não será engraçado, apenas escroto. É isso.

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João Carlos Pedroso é jornalista