Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Abraji investiga morte de jornalistas do Brasil

 

É uma tarde chuvosa de sexta-feira e após duas tentativas frustradas no telefone celular, Bob Fernandes me passa o seu número fixo. É nosso primeiro contato e a sua voz me é familiar. Reconheço o ritmo de narração do repórter de texto econômico, desses que quase já não se fazem mais.

As palavras certeiras dizem muito, exploram contextos, expõem a clareza de um raciocínio de quem aposta as fichas na autonomia do jornalismo diante dos interesses políticos e econômicos.

É o mesmo estilo que encontro no último material publicado pela Abraji sobre o assassinato de jornalistas no Brasil. “Quem matou, quem mandou matar? – Política e Polícia no assassinato de jornalistas”.

As reportagens são de Bob Fernandes e Bruno Miranda e fazem parte do projeto “Programa Tim Lopes” da Abraji, com apoio da Open Society Foundations. O conteúdo inclui narrativas em texto e produções audiovisuais, como um documentário dirigido por Bob Fernandes e João Wainer.

O resultado pode ser descrito como uma grande reportagem transmídia: aprofundamento do tema, narrativa em formatos diversos. É a primeira vez que a Abraji produz conteúdo jornalístico. “Nesses 15 anos nossa opção estratégica sempre foi a de fomentar e estimular o uso de ferramentas e práticas que favorecem o exercício do jornalismo. Quebramos hoje, excepcionalmente, este paradigma, para tratar de um dos temas mais caros ao exercício da profissão, o assassinato de comunicadores pelo interior do país”, esclarece a associação em sua página no Facebook.

Dados do Committee to Protect Journalists (CPJ) apontam a morte de 39 jornalistas no Brasil desde 1992, sendo que 25 mandantes ou assassinos continuam impunes.

Para contar a história desses números, o projeto da Abraji percorreu 14.800 quilômetros pelo Brasil. E encontrou, sobretudo, a presença forte do radiojornalismo. O Brasil tem outorgadas 14.350 emissoras de rádio, com 9.973 outorgas para emissoras nas áreas comercial e educativa e 4.377 para rádios comunitárias.

Na apresentação do trabalho, a equipe do projeto fala da necessidade de prudência no levantamento dos dados de jornalistas mortos no exercício da profissão, principalmente pelas dificuldades em se definir com precisão se o assassinato se deu por motivos ligados ao jornalismo ou por ações pessoais alheias ao exercício profissional.

A partir desses critérios quatro lugares foram selecionados para as reportagens: Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, fronteira com o Paraguai; Ipatinga, no Vale do Aço em Minas Gerais; Conceição do Ferro, na região de Feira de Santana, na Bahia; e Camocim, no Ceará.

Bob Fernandes, relata na reportagem, outros motivos da escolha.

“Gleydson, em Camocim, Ceará, por ter sido assassinado dentro do estúdio, quando entrava no ar. Crime com repercussão mundo afora.

Rodrigo Neto e Walgney de Carvalho, em Ipatinga, pela reação exemplar do jornalismo aos assassinatos. Pressionado pelo trabalho de repórteres da região, e pelo Sindicato dos jornalistas de Minas, o governo estadual montou uma força-tarefa.

Os dois assassinos, um deles policial, foram condenados e presos. Acusados por outros crimes, 10 policias foram presos. Depois, pouco a pouco, foram libertados. Os mandantes seguem livres.

Em Conceição da Feira, na Bahia, o contrário. Ninguém preso. O delegado que investigou o crime já não está na cidade. Que seguia sem promotor, sem juiz, e sem Fórum.

Em Ponta Porã, Pedro Juan Caballero, a feroz disputa do narcotráfico, com a presença de ‘Comandos’ que, assim como Brasil afora, guerreiam e ocupam territórios.”

O trabalho de apuração comprovou, na prática, o que pesquisas apontam: entre 80 e 90% dos inquéritos abertos para investigar homicídios são arquivados sem determinação de autoria e circunstâncias dos crimes. A abordagem do projeto sugere uma meta reflexão sobre a cobertura da violência no jornalismo brasileiro, em grande parte refém de tratamentos sensacionalistas e comprometida com só um lado — o policial — e também fragilizada por um cenário em que a investigação e o aprofundamento podem ser punidos com a vida.

Ao buscar contextualizar as relações de poder por detrás dos assassinatos dos jornalistas, a equipe do projeto “Quem Matou, quem mandou matar” retrata a face real de um país violento e injusto.

A reportagem foi a primeira etapa do projeto. A segunda fase será formada por uma rede de jornalistas, empregados de redações de diferentes partes do país, que acompanhará in loco cada caso de assassinato, sequestro ou tentativa de assassinato de um colega. “O objetivo é dar visibilidade tanto ao crime quanto ao conteúdo que a vítima investigava”, informa o site da organização.

Pergunto à Bob Fernandes como esse trabalho o transformou. “Viajo o Brasil há muitos anos e essa reportagem foi uma atualização do Brasil profundo. Vi, de novo, pessoas passando fome, dormindo nas praças, cenas que a gente achava que estavam superadas.”

Encerramos a conversa dialogando sobre as relações de poder na política brasileira e sua influência no jornalismo. Depois da despedida, volto ao texto. “Se no topo o país vive monopólios na indústria de comunicação de massa, imagine-se a fragilidade no Brasil profundo. Emissoras e profissionais, muitas vezes em vão, se esforçam para não se tornarem reféns de anunciantes. Sejam eles de origem privada ou pública.”

“Quem matou, quem mandou matar” nos faz conhecer esse jornalismo real, ao mesmo tempo distante e próximo dos grandes centros e do congresso nacional.

Ficha técnica do projeto

Direção
Bob Fernandes
João Wainer

Roteiro e Montagem
André Felipe

Reportagem
Bob Fernandes
Bruno Miranda

Produção
Lucas Ferraz

Produção executiva
Thiago Herdy
Guilherme Alpendre

Fotografia
Bruno Miranda

Direção de fotografia
Bruno Miranda

Som direto
Bruno Miranda