Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Brasil: entrevista com Caê Vasconcelos

“Toda vez que escrevo sobre o Brasil ser o país que mais mata pessoas trans e travestis, peço que seja o último ano”, diz. (foto: Allan Martin/Divulgação)

Caê Vasconcelos é um jornalista brasileiro formado pelas Faculdades Integradas Alcântara Machado (FIAM), em São Paulo. Com passagem pela Ponte Jornalismo, pela Agência Mural de Jornalistas das Periferias e pela ESPN Brasil, ele se dedica, sobretudo, à cobertura de temas ligados aos direitos humanos, segurança pública e assuntos LGBTQ+. Vasconcelos tem ocupado cada vez mais espaço na mídia brasileira pautando a temática da transexualidade e defendendo o tratamento adequado ao assunto na imprensa. O seu livro de estreia como jornalista, Transresistência: pessoas trans no mercado de trabalho (Dita Livros, 2021), conta histórias da luta desse grupo por direitos e inclui um depoimento sobre sua própria experiência como homem trans nascido na periferia de São Paulo. A obra é um marco do seu engajamento em defesa da visibilidade dessa parcela da população na sociedade. Leia mais na entrevista a seguir.

Enio Moraes Júnior – Você é um jornalista jovem, que está há menos de cinco anos atuando na profissão. Como você avalia o papel do jornalismo brasileiro na qualidade da democracia do país?

Caê Vasconcelos – Fundamental. Eu entrei na faculdade em 2013, quando todo esse movimento político que estamos vivendo agora começou. Foram justamente as manifestações de junho de 2013 que me fizeram perceber que eu queria ser jornalista. Fui aos atos em junho e em agosto estava começando a universidade. Tudo começou com uma inquietação de perceber um abismo entre o que acontecia nas ruas e o que aparecia nas páginas de jornais, nos sites e na televisão. Não era a realidade. Eu nasci como jornalista no mesmo momento em que a imprensa independente começava no Brasil. Tive a sorte de ter bons professores que traziam essas referências para as salas de aula, como a Mural, a Ponte, a Pública e, posteriormente, a Alma Preta e o Nós Mulheres da Periferia. Foi essa forma de fazer jornalismo que me conquistou. Nos quatro anos que fiquei na universidade, fui me preparando para começar a minha carreira dentro desses lugares. E deu certo. Não havia outra alternativa para o meu jornalismo que não essa, de contra-narrativas partindo das periferias, das pessoas trabalhadoras, das pessoas negras, das pessoas LGBTs. Foram as potências desse novo jornalismo que provocaram a imprensa dita tradicional a mudar o seu olhar, se atualizar e, com isso, ajudar a proteger a democracia, que foi tão atacada de 2018 para cá.

EMJ – Recentemente, o Brasil teve uma das suas mais importantes disputas eleitorais, marcada por denúncias de corrupção, fake news e, principalmente, extremismos. A saída de Jair Bolsonaro e a chegada de Luís Inácio Lula da Silva ao Governo Federal pode significar um novo momento para o jornalismo brasileiro? O que muda?

CV – Eu não sei o que é ser repórter em um país que respeita as instituições democráticas e valoriza o papel do jornalista. Quando me formei, em 2017, tínhamos acabado de passar por um momento delicado, que foi a retirada de Dilma Rousseff da Presidência da República. Dali em diante, tudo o que aconteceu foi resistência. Não acho que as coisas ruins da nossa profissão simplesmente vão sumir nesse terceiro mandato de Lula, mas, sem dúvida, teremos menos medo de estar nas ruas. Nunca imaginei que fosse viver isso, mas nas últimas eleições tive medo de estar identificado como jornalista, cobrindo manifestações, por exemplo. E o medo não era da repressão policial, como via desde o começo da minha entrada na universidade, mas dos próprios manifestantes que, impulsionados pelo discurso do antigo presidente, odiavam jornalistas.

EMJ – Você teve uma passagem profissional pela Agência Mural de Jornalistas das Periferias. Como avalia a qualidade do jornalismo local no Brasil, especialmente, na cidade de São Paulo? Quais os temas mais recorrentes?

CV – Fazer parte do time de jornalistas da Mural mudou minha vida em muitos sentidos. Nasci e morei durante 28 anos na minha quebrada, a Vila Nova Cachoeirinha, e só aos 26 anos comecei a olhar o lado bom do lugar de onde eu vim. Foi um processo muito doido, mas muito bom. Historicamente, a imprensa brasileira – e a imprensa independente também – só olha para as periferias para falar de coisas ruins. A violência apaga as potências e isso acaba moldando o olhar de quem mora nesses territórios, nos impede de olhar o lado bom das coisas. Estar na Mural me ajudou nisso, me fez olhar para os meus vizinhos e entender quanta potência havia ali, que era muito mais do que violência e falta da presença do Estado. Foi na Mural que entendi que não era normal o único ônibus que liga minha rua até o centro demorar mais de uma hora para passar, por exemplo. Então, os temas mais recorrentes acabam sendo esses: as potências de ser quem somos e a ausência do Estado nas nossas vidas, para além da violência. Com o surgimento da Mural, não era mais o olhar de fora falando das nossas vivências, não era o olhar estereotipado e distante. Era a gente falando da gente.

EMJ – Em 2021, você publicou um texto pelo Centro Knight para Jornalismo nas Américas em que reflete sobre a invisibilidade de pessoas trans e a maneira como elas são tratadas na mídia brasileira, muitas vezes relacionadas a violência e morte. Você afirmou também que a imprensa precisa acolher melhor esse grupo. Como construir isso dentro de uma grande mídia ainda tão conservadora?

CV – Diversificando os jornalistas. É o mesmo papo anterior: a periferia só começou a ser vista como realmente é quando jornalistas periféricos começaram a contar as próprias histórias. Com as demandas da população trans é a mesma coisa. Só com a nossa chegada as coisas estão começando, lentamente, a mudar. Mas ainda somos muito poucos e aí fica difícil fazer certas negociações. Antes de eu entrar na Ponte, por exemplo, mal se via histórias positivas na imprensa. Quando eu consegui esse espaço, mesmo em uma imprensa independente, as redações começaram a olhar que algo ali tinha que mudar. E eu não me silencio, sabe? Se eu vejo alguma matéria que reproduz alguma transfobia de alguma forma, eu aponto. Seja nos veículos que eu escrevo ou nos demais. Não estamos atuando como jornalistas para trazer conforto para esse olhar cisgênero sobre as nossas vivências, estamos aqui para incomodar. As redes sociais potencializam isso também. É imediato o retorno do público quando algo de errado vai ao ar. Hoje não existe mais a desculpa  – ainda usada – de que os erros acontecem por inocência, por não saber. Os jornalistas precisam, por si sós, ir atrás da informação. Seguir pessoas trans nas redes sociais, ler textos escritos por pessoas trans, acompanhar pessoas trans na mídia. E, claro, contratar pessoas trans para as redações, deixar que a gente conte as nossas histórias e tenha liberdade para pontuar os deslizes.

EMJ – As mídias sociais mudaram e têm reconfigurado a maneira como as notícias são produzidas no mundo todo. Quais são os aspectos positivos e negativos desse fato no Brasil?

CV – Não acredito que haja pontos negativos nas mudanças, pelo contrário. Mudar e evoluir é importante. O jornalismo digital mostrou para televisões e rádios que era possível ir além. O jornalismo digital mostrou para o impresso que é possível reconhecer os erros e mudar ali, na hora. O mundo mudou muito e o jornalismo precisa mudar com ele. Lembro muito de ouvir os professores falando que o jornalismo iria morrer. E realmente acho que morreu. Mas o jornalismo que morreu foi aquele jornalismo arcaico, feito por pessoas cis, hétero, brancas que sempre tiveram acesso às melhores universidades e herdaram nome de familiares jornalistas. Ainda vemos que as redações são compostas de uma maioria assim, como se fazia há 100 anos. Mas o barulho que fazemos tem sido cada vez mais difícil de se ignorar. Agora é o nosso momento. O momento das pessoas que foram contempladas pelas cotas raciais e sociais. O momento das pessoas negras, indígenas, LGBTs e periféricas.

EMJ – Você concluiu sua faculdade de jornalismo há pouco mais de cinco anos. O que você considerou importante nessa formação e do que você sentiu mais falta, levando em conta o conhecimento e as habilidades que o jornalista precisa ter?

CV – Em 2019, com dois anos de formação apenas, eu fui educador de um curso de jornalismo para jovens periféricos. Foi a chefia da Ponte que me escolheu para ser um dos educadores. Eu fiquei sem entender o que eu tinha para passar para aqueles jovens porque eu ainda estava aprendendo a ser repórter na prática. Lembro que a resposta que eu tive era que eles precisavam aprender além da técnica, do lead e tudo mais. Aqueles jovens precisavam aprender a importância de trazer as nossas vivências para o jornalismo. O que eu podia ensinar era algo que me diferenciava como jornalista: a humanização das histórias. A galera fala que eu tenho um olhar sensível para as histórias que eu conto e o único segredo é humanizá-las. Eu nunca saio para uma pauta com um olhar de jornalista apenas. Quem sai para ouvir as histórias é o Caê, que não é só jornalista, mas um cara trans, cria de uma das periferias de São Paulo. É o cara que sabe como é difícil ter acesso, que vai chegar nas periferias de bermuda e boné, que é como ele anda no dia a dia. Que vai chegar em uma delegacia com olhar crítico para a versão policial, porque sabe que muitas vezes a versão registrada ali não é a única que existe. Sou eu, olhando no olho das pessoas que se dispõem a me receber em casa depois que a polícia mata um jovem negro na periferia. Eu abraço, eu choro, eu agradeço o tempo e confiança que aquelas pessoas depositam no meu trabalho. E eu acompanho até o fim, ajudo no que estiver ao meu alcance enquanto jornalista. Foi isso que tentei passar como educador e é isso que eu tento passar diariamente no meu jornalismo. Nenhuma pauta é só uma pauta, é sempre sobre a vida das pessoas. Isso foi o que eu mais senti falta na universidade: ir além da técnica. Senti falta de saber que ser um cara trans e periférico não iria atrapalhar meu jornalismo, mas, potencializá-lo. Senti falta de aprender que a parcialidade e a vivência podem me tornar um jornalista melhor. Eu falava no primeiro ano de faculdade que eu queria mudar o mundo como jornalista. Hoje entendo que existem muitos mundos para mudar e que cada matéria minha que muda a vida de alguém é essa mudança.

EMJ – Como você imagina o jornalismo no Brasil daqui a dez anos, que temas e de que forma serão pautados?

CV – Espero que seja um jornalismo mais humano. Que as redações estejam cheias de pessoas periféricas, negras, indígenas, transgêneras e travestis. Que a violência não seja mais a regra e sim a exceção. Toda vez que escrevo sobre o Brasil ser o país que mais mata pessoas trans e travestis, peço que seja o último ano. Toda vez que escrevo sobre um jovem que teve a vida arrancada, peço que seja a última história. Espero que nos próximos dez anos essa utopia se torne menos irreal. Quero escrever mais e mais sobre potências, coisas positivas sobre a nossa realidade.

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Enio Moraes Júnior é jornalista e professor brasileiro. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (Brasil), vive em Berlim desde 2017. Acesse o portfólio do autor: Enio OnLine.