
(Imagem: M./Pixabay)
A ascensão da esfera pública moderna, tal como descrita por Jürgen Habermas, ocorreu no contexto do Iluminismo europeu, quando a invenção da imprensa possibilitou a disseminação de ideias fora do controle direto das autoridades políticas e religiosas. Esse fenômeno gerou um espaço de debate crítico entre cidadãos informados, fomentando a emergência de uma opinião pública racional e autônoma. No entanto, com o desenvolvimento das indústrias midiáticas e do jornalismo profissional, esse espaço foi gradualmente reconfigurado. Hoje nos encontramos em um momento que se assemelha ao pré-jornalismo descrito por Ciro Marcondes Filho. Testemunhamos o que pode ser chamado de neopublicismo: um ressurgimento das condições anteriores ao jornalismo institucionalizado, no qual indivíduos e grupos exercem diretamente sua influência sobre a esfera pública por meio das novas tecnologias de comunicação.
O neopublicismo caracteriza-se pela ampliação do acesso à produção e à circulação de informação, algo que a internet e as redes sociais permitiram em escala global. Se, no período identificado por Habermas como pré-moderno, a impressão de panfletos, periódicos independentes e correspondências possibilitou a difusão de ideias políticas e filosóficas, hoje esse papel é desempenhado pelas plataformas digitais, que oferecem voz a qualquer indivíduo ou grupo que deseje se manifestar publicamente.
Esse fenômeno provoca uma descentralização da produção de informação, deslocando parte do poder que antes era exclusivo das grandes corporações midiáticas para cidadãos comuns, influenciadores digitais, movimentos sociais e até empresas privadas que operam fora do modelo tradicional do jornalismo. Nesse cenário, a intermediação jornalística perde força, gerando uma crise tanto econômica quanto epistemológica para a imprensa tradicional.
A crise do jornalismo contemporâneo está intimamente ligada à ascensão do neopublicismo. A informação deixou de ser um monopólio das grandes redações e passou a ser produzida em massa por indivíduos que não necessariamente seguem os princípios éticos e metodológicos do jornalismo profissional. Esse fenômeno gera dois desafios centrais: a perda de credibilidade dos meios tradicionais e a proliferação de desinformação.
Por um lado, há um crescente questionamento da legitimidade dos veículos de imprensa, que passaram a ser vistos, por segmentos da sociedade, como atores enviesados ou comprometidos com interesses políticos e econômicos. Esse ceticismo é alimentado pelo próprio neopublicismo, no qual influenciadores e produtores independentes de conteúdo promovem narrativas que desafiam o discurso jornalístico convencional, muitas vezes alegando oferecer uma “verdade alternativa”.
Por outro lado, a ausência de critérios editoriais rigorosos na produção de conteúdo digital facilita a disseminação de notícias falsas, teorias da conspiração e informações distorcidas. A lógica algorítmica das redes sociais amplifica esse problema, pois privilegia conteúdos que geram engajamento e emoções fortes, independentemente de sua veracidade. Esse modelo incentiva a polarização e dificulta o papel tradicional do jornalismo como mediador imparcial da realidade.
Outro impacto significativo do neopublicismo é a desprofissionalização do jornalismo. O modelo econômico da imprensa tradicional, baseado na venda de assinaturas e na receita publicitária, foi profundamente afetado pelo novo ecossistema digital. A publicidade migrou para plataformas como Google e Facebook, enquanto leitores se acostumaram a consumir conteúdos gratuitos, tornando inviável a sustentação financeira de muitos veículos jornalísticos.
Além disso, a abundância de informação gerada pelo neopublicismo desvaloriza a produção jornalística profissional. Se antes o jornalista detinha um status especial como mediador da informação, hoje sua autoridade é contestada por amadores que produzem conteúdo viral sem necessidade de validação factual. Esse fenômeno mina a percepção pública da necessidade de um jornalismo profissionalizado e reduz a demanda por investigações aprofundadas.
O jornalismo pós-industrial enfrenta uma crise estrutural que vai além da questão econômica, atingindo também a lógica da produção e da distribuição da informação. O modelo tradicional, baseado na organização hierárquica das redações e na mediação profissional dos fatos, está em declínio diante da fragmentação do consumo de notícias. O público passou a acessar informações por múltiplos canais, frequentemente sem distinção entre o jornalismo profissional e o conteúdo amador, tornando difícil a sustentação da autoridade jornalística.
Além disso, a aceleração do ciclo noticioso imposta pelo ambiente digital compromete a profundidade da apuração e incentiva um modelo de produção pautado pela instantaneidade. O chamado “clickbait” e a busca incessante por engajamento fazem com que até veículos tradicionais adotem estratégias sensacionalistas para competir por atenção. Esse contexto cria um dilema para o jornalismo: manter o compromisso com a qualidade e a veracidade ou ceder às pressões do mercado digital, comprometendo sua credibilidade a longo prazo.
O neopublicismo apresenta um paradoxo fundamental: ao mesmo tempo que amplia a liberdade de expressão e democratiza o acesso à informação, ele também gera uma crise de legitimidade e qualidade na esfera pública. Se no modelo jornalístico tradicional havia uma hierarquia de credibilidade baseada na checagem de fatos e no compromisso ético da profissão, o neopublicismo dissolve essa estrutura em um mar de vozes conflitantes e nem sempre confiáveis.
Diante desse cenário, surgem debates sobre a necessidade de regulação da informação digital. Alguns defendem políticas de checagem de fatos e controle da disseminação de notícias falsas, enquanto outros argumentam que qualquer intervenção nesse sentido poderia comprometer a liberdade de expressão e abrir precedentes para censura. Esse dilema reflete a complexidade do atual momento histórico, no qual a busca por um equilíbrio entre liberdade e responsabilidade informativa se torna um dos maiores desafios da era digital.
Para sobreviver à era do neopublicismo, o jornalismo precisará se reinventar. Algumas possíveis estratégias incluem:
- Valorização do jornalismo de profundidade: Investir em reportagens investigativas e análises aprofundadas que ofereçam algo que o neopublicismo não consegue replicar facilmente.
- Adaptação aos novos formatos digitais: Utilizar narrativas multimídia, podcasts, newsletters e outras formas inovadoras de contar histórias.
- Fortalecimento da transparência e da credibilidade: Reforçar práticas de checagem de fatos e tornar mais visíveis os processos internos de produção jornalística.
- Modelos de financiamento sustentáveis: Explorar novas formas de monetização, como assinaturas, doações de leitores e parcerias com instituições independentes.
O jornalismo não desaparecerá, mas sua relevância dependerá de sua capacidade de se diferenciar do ruído informacional e reafirmar seu papel como um pilar essencial da democracia. O neopublicismo representa um fenômeno ambivalente: por um lado, democratiza a produção e o consumo de informação; por outro, desestabiliza as instituições que tradicionalmente garantiam a credibilidade e a veracidade dos fatos.
A crise do jornalismo não é apenas econômica, mas também epistemológica, pois questiona os critérios de validação da verdade na esfera pública. O futuro da informação dependerá da capacidade do jornalismo de se adaptar a essa nova realidade sem perder sua essência. Nesse contexto, a luta pela qualidade e pela credibilidade da informação será um dos grandes desafios do século XXI.
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Silvio Demétrio é professor do curso de Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina e atualmente desenvolve a publicação da newsletter de cultura “Tanga, a verdade quase nua – aquilo que sobrou do jornalismo cultural”.